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Rapina colonial: da pesca no Saara ao ouro da Venezuela

Da pesca subtraída aos sarauis ao petróleo e ao ouro expropriados aos venezuelanos, passando pela fruta colhida em terras palestinianas roubadas por Israel, se nutre a economia europeia chancelada por Trump.

Parlamento Europeu e Tribunal de Justiça Europeu. Foto de arquivo.
Créditos / jornal O Tornado

O Parlamento Europeu não vê qualquer inconveniente em que a União Europeia tenha um acordo comercial com Marrocos que inclua os direitos de pesca nas costas do Saara Ocidental, território violentamente ocupado e aguardando que as Nações Unidas procedam a um processo de descolonização.

Quer isto dizer que a maioria dos membros do único órgão da União Europeia eleito directamente pelos cidadãos não se limita apenas a aceitar como parceiro preferencial de negócios um Estado que viola grosseiramente o direito internacional; ainda admite que se tire proveito da situação, roubando riquezas alheias sem que os legítimos proprietários possam defender-se – porque lhes foram retirados os mais elementares direitos humanos e nacionais.

Esta história tem ainda elementos de um cinismo cruel, envolvendo outros órgãos da União Europeia. O Tribunal Europeu de Justiça recomendou, por exemplo, que o acordo seja aplicado com o «consentimento da população» do Saara Ocidental; e o Conselho Europeu, a estrutura onde estão representados os governos dos Estados membros, determina que a delapidação da riqueza pesqueira do território seja feita em benefício da população saaraui.

Ora como obter o «consentimento» de uma população a quem tem sido vedado, em mais de 30 anos, pronunciar-se, ao menos em referendo, sobre se quer ser independente ou continuar sob a violenta arbitrariedade marroquina? Como irá a União Europeia assegurar o «consentimento» dos saarauis, um dos povos mais desprotegidos e esquecidos do planeta?

E que garantias tem o Conselho Europeu de que a população usufrua de benefícios da pesca feita por embarcações estrangeiras, sendo certo que, se por absurdo, estes fossem disponibilizados, teriam de passar pelos filtros dos ocupantes marroquinos?

Longa cumplicidade colonial

O episódio registado agora no Parlamento Europeu é apenas mais um na longa saga de cumplicidade colonial das instituições europeias com a ocupação marroquina.

Marrocos e a União Europeia têm relações económicas preferenciais e o acordo comercial é de longa data, como velho é o assalto europeu às riquezas pesqueiras do povo saaraui, obviamente sem o consentimento deste e também sem que lhe seja permitido usufruir de qualquer benefício.

«a União Europeia é, nesta matéria, como um livro aberto onde se lê uma tendência muito especial para incluir Estados ocupantes entre os parceiros preferenciais de negócios»

Acontece que, na própria linguagem dos parlamentares responsáveis por estas medidas, o acordo comercial com Marrocos, já existente, foi agora «liberalizado» e formalmente estendido às águas territoriais do Sara Ocidental. Isto é, o que já acontecia na realidade foi agora explicitado, com o aval do Tribunal Europeu de Justiça e do Conselho dos governos, sempre muito escrupulosos, ainda que só por palavras, com o respeito pelos direitos dos povos e dos seres humanos.

Dedo para a parceria com ocupantes

Aliás a União Europeia é, nesta matéria, como um livro aberto onde se lê uma tendência muito especial para incluir Estados ocupantes entre os parceiros preferenciais de negócios.

Israel tem acordos comerciais e económicos preferenciais com a União Europeia; em muitos casos é como mais um membro da irmandade, não constituindo problema de relevo o facto de, tal como Marrocos, bloquear os direitos elementares de um povo, o palestiniano.

A União Europeia convive muito bem com a importação de produtos israelitas fabricados em territórios usurpados a palestinianos há muito tempo ou mesmo mais recentemente, pois conhece-se a existência de laços económicos comprometedores – porque estão teoricamente vedados – com colonatos sionistas na Cisjordânia, estruturas que violam o direito internacional.

Também em relação a Israel haverá quem diga oficialmente, na União Europeia, que está acautelada a vontade dos palestinianos, tirando até benefícios da situação. De facto, as «ajudas» europeias ou quaisquer «compensações» com negócios processam-se sob o controlo de Israel – que tem sempre a última palavra sobre o seu destino final. Quando não é jogado nas manobras chantagistas que são o dia-a-dia da ocupação sionista, mesmo quando mitigada sob o rótulo de autonomia.

Quanto à questão essencial – o reconhecimento dos direitos nacionais e humanos dos palestinianos – a União Europeia continua a garantir que está permanentemente no seu horizonte de preocupações, como se verifica pelos conteúdos do discurso oficial, aquele que o mainstream difunde até à exaustão, para logro dos crédulos e, sobretudo, das principais vítimas, os palestinianos.

Negócios e direitos humanos têm tempos paralelos

Mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa; e se Bruxelas continua a batalhar, através de palavras desgastadas, pelos direitos fundamentais dos ocupados, que isso não obste à fluidez dos negócios com os ocupantes. Negócio é negócio e tem os seus timings próprios e de oportunidade, que não devem ser prejudicados pelos timings políticos e diplomáticos, por norma muito mais longos, quiçá até infinitos. E a economia não pode esperar, tem de crescer, sobretudo nos tempos anémicos em que se arrasta.

«Os princípios democráticos e humanistas estão lá, nunca são nem foram esquecidos; mas que não entorpeçam os negócios, porque senão nem direitos, nem lucros»

A pesca sonegada ao povo saraui – e quem diz pesca pode acrescentar urânio e fosfatos – alimenta os cidadãos europeus e a economia europeia, do mesmo modo que a fruta, os produtos tecnológicos, produtos de beleza e o próprio festival da Eurovisão israelitas.

Pois que aprendamos com a maioria do Parlamento Europeia e a autocracia da Comissão e do Conselho, garantidas sempre pela produtiva aliança entre as direitas e a social-democracia, para que os negócios não sejam prejudicados pelos direitos dos povos e dos seres humanos, que correm na sua faixa própria e diferenciada, num tempo paralelo.

Os princípios democráticos e humanistas estão lá, nunca são nem foram esquecidos; mas que não entorpeçam os negócios, porque senão nem direitos, nem lucros. Se a democracia, entretanto, for enviesada, distorcida ou até mesmo posta entre parêntesis, paciência, será um dano colateral desde que o discurso oficial e as eleições, como um calendário religioso, continuem a cumprir-se para que tudo continue na mesma e se respeitem os rituais neoliberais.

A lição da Venezuela

Por isso mesmo é que a União Europeia não poderia permitir a continuação na Venezuela da situação política e económica sufragada eleitoralmente muitas vezes nas duas últimas décadas.

A União Europeia não pode tolerar, por exemplo, que os negócios prometidos pela existência das maiores reservas mundiais de petróleo – e são 300 mil milhões de barris – não tenham de submeter-se ao «mercado livre e soberano» e sejam mantidos ao serviço prioritário dos venezuelanos.

Torna-se obrigatória, por consequência, a realização de eleições que garantam os resultados que sirvam o «mercado» e não os que aconteceram há oito meses, que mais uma vez afirmaram a soberania da Venezuela.

«eleições que garantam os resultados certos e adequados para que prolifere o “mercado livre” [são] as únicas eleições que valem»

E enquanto se aguarda que as eleições produzam o que devem produzir, devem os venezuelanos ser educados pela fome até aprenderem a comportar-se, nem que seja tendo como mestres os psicopatas Bolton e Abrams, os fascistas Leopoldo López e Juan Guaidó. Tempos houve, por exemplo durante os governos do «social-democrata» Carlos Andrés Perez, em que os opositores eram lançados de aviões para as águas do oceano. Reinava então a «democracia» que ora se pretende restabelecer, enviando Maduro para o campo de concentração norte-americano da Guantánamo.

Para que isso volte a ser possível, as receitas da exportação do petróleo venezuelano foram agora entregues aos meios financeiros dos Estados Unidos, que sabem por natureza o que corresponde verdadeiramente aos interesses do «mercado livre».


E «expropria-se internacionalmente» o ouro venezuelano entregue por Caracas ao Banco de Inglaterra e que servia ao governo da Venezuela para comprar medicamentos, alimentos e outros produtos de primeira necessidade, de modo a ultrapassar as consequências das sanções assassinas decretadas em Washington, seja por democratas, seja por republicanos.

Roubar o ouro até nem foi difícil. O secretário norte-americano do Tesouro, Steven Mnuchin de seu nome – que antes foi figura de topo do Goldman Sachs, o «banco que governa o mundo» – inteirou-se do ouro venezuelano depositado no Bando de Inglaterra: 31 toneladas, no valor aproximado de 900 milhões de euros. Desse total, 14 toneladas estavam cativas há cerca de quatro meses, quando o Reino Unido se recusou a devolvê-las a Caracas, alegando «problemas logísticos»; e 17 toneladas transitaram recentemente do Deutsche Bank, onde serviram de garantia a uma dívida do Estado venezuelano já totalmente resgatada.

«Presume-se […] que o governo de Portugal e o Banco de Portugal são também responsáveis por este assalto aos bens do povo venezuelano. O que é próprio de uma verdadeira democracia que pretende «restabelecer a democracia» em terra alheia»

Revela o próprio Mnuchin que entrou em contacto com os governos e os bancos centrais dos países da União Europeia, com os quais acordou retirar ao governo venezuelano qualquer legitimidade sobre essa fortuna em lingotes.

E assim aconteceu. Fácil, simples, rápido, expedito. Presume-se, pois, fazendo fé na revelação do senhor Mnuchin, que o governo de Portugal e o Banco de Portugal são também responsáveis por este assalto aos bens do povo venezuelano. O que é próprio de uma verdadeira democracia que pretende «restabelecer a democracia» em terra alheia.

Da pesca subtraída aos sarauis, ao petróleo e ao ouro expropriados aos venezuelanos, passando pela fruta colhida em terras palestinianas roubadas por Israel se nutre pois a economia europeia, politicamente gerida pela sociedade neoliberal socialistas & direitas, limitada. Sempre com o aval democrático e agora, pelo sim pelo não, sob a chancela de Donald Trump.

Um aval democrático obtido em eleições que garantam os resultados certos e adequados para que prolifere o «mercado livre». As únicas eleições que valem.

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