Uma das últimas malfeitorias de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos, assumida já depois de ter perdido as eleições, foi mais uma atrocidade contra o direito internacional: o reconhecimento «da soberania marroquina sobre a totalidade do território do Saara Ocidental». Significativamente, a decisão passou quase despercebida; não consta que o secretário-geral da ONU, a União Europeia ou o ministro português dos Negócios Estrangeiros tenham manifestado publicamente qualquer reserva em relação a tão flagrante ilegalidade.
Considerou Trump, ainda em nome dos Estados Unidos da América e contra tudo o que está decidido na ONU, que a criação «de um Estado independente não é uma opção realista para resolver o conflito». A solução parece ser, portanto, uma restauração colonial ditada pela potência imperial mesmo que seja à revelia do volumoso processo que as Nações Unidas têm em seu poder e que aponta os passos a dar para a descolonização do Saara Ocidental. Passos esses que nunca foram cumpridos, confirmando a reconhecida ineficácia das Nações Unidas em matéria de autodeterminação dos povos e que deixa o campo aberto para o exercício do autoritarismo imperial e colonial.
A anexação do Saara Ocidental por Marrocos «decidida» por Trump veio na esteira de outras agressões contra o direito internacional como o reconhecimento da anexação de Jerusalém Leste e dos Montes Golã por Israel e a declaração de que a colonização israelita dos territórios palestinianos ocupados é admissível. Nestes casos, a União Europeia ainda esboçou uns protestos, logo silenciados, e o secretário-geral da ONU declarou-se compungido. Na situação de Marrocos nem isso. A subserviência ao diktat de Washington é total.
Não surpreende, portanto, que o ministro português dos Negócios Estrangeiros se tenha fingido de morto perante todas estas aberrações – tal como aconteceu, aliás, com o golpe fascista da Bolívia que derrubou um chefe de Estado legitimamente eleito. O povo boliviano foi mais lesto a anulá-lo do que o ministro a dar por ele.
Aliás, as Necessidades ainda não agiram perante as recentes eleições parlamentares absolutamente legítimas na Venezuela, preferindo continuar a dar aval ao terrorista Guaidó como presidente de faz-de-conta. No Ministério português dos Negócios Estrangeiros a Constituição da República está no índex.
O referendo que continua por fazer
Para a Organização das Nações Unidas, o Saara Ocidental é «um território não autónomo» desde 1963, quando estava ainda sob domínio colonial espanhol. E em 1979, depois do abandono por parte de Espanha e da invasão de áreas do território por tropas marroquinas, a Assembleia Geral da ONU considerou-o «sob ocupação», situação que hoje se mantém. Segundo uma frase muito batida, mas sem efeitos práticos, o Saara Ocidental é o último território por descolonizar em África.
A exemplo do que sucede com Israel em relação à Palestina, o caso do Saara Ocidental está balizado por sucessivas resoluções da ONU que estabelecem o caminho para a autodeterminação do território.
O marco fundamental desse caminho é, desde finais dos anos setenta do século passado, a realização de um referendo no qual o povo saaraui se pronuncie sobre o seu destino, designadamente a independência.
A história dos últimos 40 anos é a de uma sabotagem permanente da realização desse referendo pela monarquia autoritária de Marrocos, que mantém um clima de terror e de perseguição das populações nos territórios ocupados. As Nações Unidas, por inércia e pela incapacidade de organizar o referendo, permitem a Marrocos ir ganhando tempo e, a exemplo de Israel, impor sucessivos factos consumados. Não é coincidência que Donald Trump tenha declarado a independência do Saara Ocidental como uma «opção não realista» na ocasião em que Marrocos e o Estado sionista normalizaram relações – no quadro da estratégia de Washington para o Médio Oriente alargado.
Conseguindo protelar a realização do referendo, o regime de Marrocos acelerou a colonização do Saara Ocidental por populações marroquinas, exigindo entretanto que esses colonos sejam inscritos no recenseamento para o referendo sobre o futuro do território. Mais uma vez, a exemplo do que acontece com Israel em relação à Palestina, foram violadas as convenções internacionais de Viena, que impedem a realização de alterações demográficas nos territórios sob ocupação. E a chamada «comunidade internacional» olha para o outro lado.
A eternização das discussões sobre «quem é Saaraui» e a incapacidade da ONU para completar o recenseamento indispensável para o referendo – fazendo assim o jogo de Marrocos – facilitou o pronunciamento ilegal de Trump, sendo óbvio que não deve esperar-se um passo da nova administração de Washington para o anular. A cumplicidade do establishment norte-americano com o regime autoritário de Marrocos e a sua política criminosa no Saara Ocidental tem encorajado a política de factos consumados imposta por Rabat, independentemente dos titulares das administrações.
Negócios valem mais que os direitos humanos
O silêncio hipócrita da União Europeia perante a franqueza trauliteira de Trump confirma que os 27 são tão cúmplices como Washington na cobertura da política colonial e anexionista de Rabat. Bruxelas e os governos dos Estados membros não querem que se ouça falar do Saara Ocidental e evitam mesmo que o assunto chegue à comunicação social corporativa.
Para todos os efeitos, a questão do Saara Ocidental não existe para a União Europeia. Parte do princípio, não assumido em termos públicos, de que o problema resolver-se-á por si próprio através da estratégia criminosa de Marrocos, com as ajudas pontuais de Trump e de outros e sem que Bruxelas necessite de sujar directamente as mãos em mais um assalto ao direito internacional.
No entanto, as mãos europeias e dos governos dos Estados membros da União estão sujas e bem sujas na questão Saarauí e no sangue vertido pelas multidões de vítimas do terrorismo marroquino.
Enquanto o problema da antiga colónia espanhola se arrasta a União Europeia faz negócios e serve-se, a seu belo prazer, das riquezas do Saara Ocidental facultadas pelos dirigentes marroquinos através de acordos bilaterais que não deveriam abranger, obviamente, os territórios ocupados.
A União Europeia alega que a exploração dos recursos do Saara Ocidental no âmbito de acordos económicos e comerciais com Marrocos não significa o reconhecimento da anexação do território por Rabat.
Trata-se de uma maneira capciosa de contornar o problema. O que está em causa é o facto de a exploração de recursos territoriais através de acordos com a entidade colonial ser uma atitude de cumplicidade com o colonialismo marroquino e com tudo o que isso implica, designadamente em termos de violação dos direitos humanos.
O Tribunal de Justiça da União Europeia sentenciou em 21 de Dezembro de 2016 que os acordos económicos de Bruxelas com Rabat, nomeadamente em termos de agricultura, pescas e transportes aéreos, não podem ser aplicados «no território do Saara Ocidental, no seu espaço marítimo e aéreo sem ignorar o direito à autodeterminação». De acordo com o tribunal, a União Europeia necessita do consentimento dos legítimos representantes do povo do Saara Ocidental reconhecidos internacionalmente, ou seja, a Frente Polisário. Que nunca foi consultada para o efeito: tudo se processa através de Marrocos.
Apesar deste parecer – e num desprezo absoluto pelo seu próprio tribunal – a União Europeia estabeleceu novos acordos com Marrocos já depois disso, aplicados explicitamente ao território do Saara Ocidental. Fosfatos, legumes, pesca, crustáceos e outros bens pertencentes ao povo Saaraui entram nos Estados da União Europeia com rótulos designando-os como produtos marroquinos. Além de um reconhecimento óbvio da soberania ilegal de Marrocos sobre o Saara Ocidental, tais práticas correspondem a actos de pilhagem.
O Tratado da União Europeia defende o respeito estrito pelo direito internacional, que deve estar no centro da política externa comum. Ao mesmo tempo, os 27 estabelecem parcerias privilegiadas com países como Israel e Marrocos, que negam ostensivamente o direito dos povos palestiniano e Saaraui à autodeterminação, violando múltiplas normas internacionais básicas. Ao fazê-lo, a União Europeia, na esteira dos Estados Unidos, dá cobertura a práticas ilegais desses Estados, desde o terrorismo à pilhagem, e torna-se cúmplice de tais actividades.
No vale-tudo pela procura de vantagens económicas e comerciais, pela apropriação de matérias-primas e outros recursos naturais, os dirigentes dos governos europeus privilegiam os negócios em detrimento dos direitos humanos e do direito internacional enquanto os seus discursos dizem precisamente o contrário. E como nada acontece que ponha em causa estes comportamentos, procedem com absoluta confiança na impunidade. É mais uma grande farsa europeia.
É cada vez mais essencial que as opiniões públicas de cada país confrontem os seus dirigentes com essas contradições e os façam pagar democraticamente o abandono cruel a que submetem povos indefesos e praticamente silenciados como são o palestiniano e o Saaraui.
José Goulão, Exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril
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