Dia 7 de Novembro de 2022 cumpriram-se 105 anos da Revolução de Outubro. Os Bolcheviques conquistaram o poder. Lembremos a imagem icónica da tomada do Palácio de Inverno e a forma como o cineasta Eisenstein, dez anos depois, em 1927, recriou este episódio, com a entrada de outros corpos e outros sujeitos políticos no espaço do poder e dos czares, que até então se entendia como restrito, fechado.
Proclamava-se, então: Viva a revolução dos operários, soldados e camponeses!
Há dias assim. Raros, mas há dias assim. Dias que abalaram o mundo – em rigor, podemos perguntar se não continuam a questionar o mundo. Que criam uma cesura no quotidiano, que rompem o dia-a-dia. Que iniciam um tempo novo. A construção do novo. Processos coletivos, partilhados. Dias que marcaram a História do século XX. E qual a sua importância neste século XXI?
Há que usar a palavra: Revolução.
Da Rússia, naquele ano de 1917, quando ainda se lutava na Primeira Guerra Mundial, em tempos de fome e de dificuldades, em tempos de guerra e de morte, chegaram notícias extraordinárias. Inusitadas – não era o local onde se previa que ocorresse a revolução. Raras. Em certo sentido, singulares.
Para muitos, abria-se um tempo de esperança e de novas possibilidades. Era possível. De Petrogrado, defendia-se que teriam o apoio da maioria dos trabalhadores e dos oprimidos – os da Rússia e os do mundo. Afinal, a sua causa, argumentavam, era a causa da justiça. Em Portugal, se os republicanos que tinham tomado o poder em 1910 manifestaram a sua simpatia pela Revolução de Fevereiro, foi Outubro que causou entusiasmo entre os trabalhadores. De facto, pensando apenas no território europeu, podemos surpreender a ofensiva revolucionária do pós-guerra. Mais tarde, esmagada, é certo, mas existente, importante e significativa. Convoquemos o caso da Alemanha ou ainda o da Hungria. Ou o Biennio Roso, em Itália.
«A forma como refletimos sobre a revolução, sabemo-lo, não está relacionada apenas com o passado. Provavelmente, nem sobretudo com o passado. Antes com o presente e com as formas de imaginar o futuro.»
Mas, para outros, a revolução russa significava a subversão, quase um mundo às avessas e tal não deixou de constituir um acontecimento e um processo preocupantes. Mais do que isso, existia receio, medo que essa onda vermelha, uma espécie de incêndio, se difundisse e engolisse o mundo da forma que conheciam e queriam manter.
Em Portugal, também a esperança e o medo. Podemos relembrar a greve geral de novembro de 1918 (dinamizada por uma sensibilidade política afeta ao sindicalismo e ao anarco-sindicalismo) durante o consulado de Sidónio Pais (1917-1918). Também aqui, a opinião pública conservadora e o campo político de direita temiam a ameaça vermelha, identificada de uma forma genérica, e o sidonismo não se fez rogado na tentativa de mobilização de um campo contra a greve que também estivesse na rua.
Esta evocação dos acontecimentos do passado, desse ano de 1917, é um pretexto. Para relembrar a forma como dividiu e continua a dividir as opiniões. Mas, para trazer outras questões.
Há que pensar sobre a palavra: Revolução.
Enzo Traverso, em obra recente (Revolution: an intellectual History, 2021), leva-nos a pensar criticamente as revoluções. E analisar o conceito de revolução como chave interpretativa da história moderna.
Há que pensar sobre a palavra e sobre os sentidos que encerra. Sobre as diferentes formas de a entender. Porque, afinal, a forma como refletimos sobre a revolução, sabemo-lo, não está relacionada apenas com o passado. Provavelmente, nem sobretudo com o passado. Antes com o presente e com as formas de imaginar o futuro.
É ainda Traverso que, explicando porque não tem um capítulo neste seu longo ensaio dedicado à questão da violência, aponta algumas posições historiográficas. Assim, relembra os historiadores conservadores que estigmatizam, frequentemente, as revoluções como a fonte do totalitarismo moderno.
A ideia de revolução, mas também as imagens dos revolucionários e das revolucionárias, são apresentadas de outra forma. Estes homens e estas mulheres, os seus combates, passaram a ser vistos, por uma parte do campo político, com suspeita, de forma crítica, muitas vezes acentuando apenas a violência destes processos e tantas vezes obliterando a violência e a opressão dos contextos que foram parte das suas causas. Mas afinal, não são violentas as margens que oprimem esse rio? para voltar a Brecht. Não se pode retirar a agência dos homens e das mulheres que se constituíram como sujeitos políticos, subsumindo-os a massas controladas por líderes. Ou a forma como, em certos casos, a revolução e os processos revolucionários são entendidos como incómodos, as interrupções de processos que iam chegar a bom porto – eventualmente. Chegariam? Parecem dizer-nos que há repertórios de ação que não são legítimos. Afinal, o que se pode fazer?
Não se pode ter como objetivo político a ruptura, a transformação?
Também em torno da ideia de Revolução há batalhas a serem travadas. Em torno da possibilidade de mudar o mundo. Afinal, não continuam a existir Palácios de Inverno?