Mensagem de erro

User warning: The following module is missing from the file system: standard. For information about how to fix this, see the documentation page. in _drupal_trigger_error_with_delayed_logging() (line 1143 of /home/abrilabril/public_html/includes/bootstrap.inc).

|Ciência

Fusão Nuclear: o lado sombrio de uma proeza tecnológica

A notícia de que a proeza tecnológica conseguida pelos cientistas do Lawrence Livermore nos aproxima significativamente do momento em que o mundo poderá dispor de uma fonte abundante, limpa, de energia eléctrica é manifestamente exagerada.

Créditos / CC BY-SA 3.0

Em meados de Dezembro último, a comunicação social deu conta do anúncio em conferência de imprensa da senhora Jill Hruby, subsecretária para a Segurança Nuclear do Departamento de Energia dos Estados Unidos da América (DOE), do resultado pioneiro de uma experiência de fusão nuclear realizada no Laboratório Nacional Lawrence Livermore (LLNL). 

Na estrutura do governo federal estadunidense o DOE é equivalente a um ministério e o LLNL é um laboratório de Estado que depende daquele. A mesma senhora é também administradora da Administração Nacional para a Segurança Nuclear (NNSA). A NNSA, braço semi-autónomo do Departamento de Energia, tem como responsabilidade «promover a segurança nacional através das aplicações militares da ciência nuclear».

A subsecretária considerou que os investigadores do LLNL abriram um novo capítulo no Programa, dito de base científica, da Administração Nacional para a Segurança Nuclear, designado em língua inglesa por «Stockpile Stewardship Program», tornando possível aos cientistas modernizar a arma nuclear e abrindo novos caminhos à investigação em ciência nuclear.

Importa dizer o que é este «Stockpile Stewardship Program». Trata-se de um programa de testes de fiabilidade e de manutenção do armamento nuclear americano, designadamente dos explosivos nucleares usualmente referidos como ogivas ou cabeças nucleares. O lançamento desses explosivos sobre os alvos a atingir pode ser feito por meio de mísseis, bombardeiros pesados ou mesmo aviões de combate. Para o governo norte-americano, o interesse do programa reside no facto de vir a permitir verificar a operacionalidade dos explosivos sem recorrer a ensaios reais. Para além disso, tem em vista criar condições mais favoráveis ao desenvolvimento de armas com melhores características técnicas e melhor desempenho operacional.

No período da chamada «guerra fria» as características dos explosivos nucleares foram testadas em rebentamentos na atmosfera a diferentes altitudes, rebentamentos submarinos, subterrâneos e no espaço exterior. 

Os Estados Unidos e a União Soviética, sobretudo, mas também o Reino Unido, levaram a cabo nesse período um número de ensaios reais que, no total, ascendeu a cerca de 1800 rebentamentos. A França realizou 210 ensaios entre 1960 e 1996. As explosões na atmosfera e subaquáticas têm consequências ambientais extremamente significativas que perduram no tempo.

No Pacífico, ilhas inteiras foram incineradas por explosões levadas a cabo pelos Estados Unidos e muitas permanecem inabitáveis. Em 2019, um estudo realizado em áreas afectadas mostrou que em alguns casos — cerca de meio século depois — o nível de radiação era mil vezes superior ao encontrado em Chernobyl ou em Fukushima. As consequências ambientais de longo prazo mais sérias são a contaminação dos solos e lençóis freáticos, a modificação do perfil do terreno com a abertura de crateras e o colapso de elevações causado pelas explosões a baixa  altitude e, ainda, a contaminação radioactiva de sedimentos nos fundos marinhos.

Em 1963 foi assinado o tratado internacional que proíbe os ensaios nucleares na atmosfera, os ensaios subaquáticos e no espaço exterior. O tratado, que está em vigor, não foi assinado por três potências nucleares: China, Coreia do Norte e França. Destes, apenas a Coreia do Norte não violou até hoje o Tratado de Proibição Parcial já que todos os ensaios foram subterrâneos e estes não são proibidos pelo Tratado.1

Em 1996, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou o Tratado de Proibição Total dos Ensaios Nucleares que veio alargar o âmbito das limitações impostas pelo anterior Tratado. Pode perguntar-se porque razão os Estados Unidos, que assinaram este último Tratado, não o ratificaram até hoje. A razão, aparentemente, será mais de ordem política do que técnica. Designadamente a desconfiança relativamente aos mecanismos de verificação do cumprimento das obrigações impostas pelo Tratado, por parte de outras potências que, possuindo já ou podendo procurar desenvolver explosivos nucleares, não possuam meios técnicos que dispensem a necessidade de realizar ensaios reais no terreno. Por outro lado, uma coisa é garantir a operacionalidade ou verificar a integridade dos explosivos nucleares existentes, outra, é desenvolver novos e mais sofisticados explosivos. Neste caso, provavelmente, nem sempre poderá ser de todo dispensada a realização de ensaios reais e duvida-se que o referido Stockpile Stewardship Program, que tem aliás sofrido muitos atrasos, possa vir a alterar a situação.

Esta posição é defendida por responsáveis dos grandes laboratórios envolvidos na área nuclear para fins militares e tem o apoio dos círculos políticos mais radicais que condicionam as decisões do congresso norte-americano. Importa entretanto dizer que mesmo os países que não assinaram ou ratificaram o Tratado não realizaram ensaios subterrâneos desde a sua entrada em vigor, em 1996, à excepção da Coreia do Norte. Os Estados Unidos não procedem a qualquer ensaio subterrâneo desde 1992.

«Em 1996, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou o Tratado de Proibição Total dos Ensaios Nucleares que veio alargar o âmbito das limitações impostas pelo anterior Tratado. Pode perguntar-se porque razão os Estados Unidos, que assinaram este último Tratado, não o ratificaram até hoje.»

Voltemo-nos agora para a experiência de fusão nuclear realizada em Dezembro passado no Laboratório Nacional Lawrence Livermore. A fusão dos núcleos dos átomos de deutério e trítio, dois isótopos do elemento químico hidrogénio, liberta energia, pois a massa total das partículas que resultam da fusão — um núcleo de hélio e um neutrão — é inferior à soma das massas dos dois núcleos que se fundiram. A massa perdida é transformada em energia.2

A fusão só se dá quando estão reunidas condições físicas particulares, designadamente, temperaturas de pelo menos 100 milhões de graus centígrados, cerca de dez vezes a temperatura no centro do sol. A essas temperaturas, o deutério e o trítio, que são gases à temperatura ambiente, encontram-se num estado a que se dá o nome de plasma. 

No plasma, por vezes designado por «quarto estado da matéria», os núcleos são despidos dos electrões que orbitam à sua volta e deslocam-se a muito alta velocidade. Quando chocam entre si dá-se então, com alta probabilidade, a reacção de fusão. A criação do plasma e a sua manutenção após ter sido criado é um problema técnico de resolução particularmente difícil. É necessário à partida fornecer energia, aquecer, se quisermos, a mistura de deutério e trítio, utilizando uma fonte de energia exterior, esperando-se que quando se inicia o processo de fusão a energia libertada por este permita que o plasma se mantenha por si, quer dizer, se auto-sustente.

No caso do projecto internacional ITER —  International Thermonuclear Experimental Reactor3 — estão previstos vários processos que contribuem para o aquecimento prévio da mistura gasosa deutério-trítio contida na câmara de reacção onde se forma o plasma. Um dos problemas mais delicados do ponto de vista técnico, neste tipo de reactores, é o desenho e construção da câmara de reacção pois o plasma nela contido não pode tocar nas paredes devido às elevadíssimas temperaturas que estão em jogo. Usa-se a técnica de confinamento do plasma por meio de campos magnéticos intensos numa câmara de forma toroidal a que foi dado o nome de Tokamac. 

O Tokamac foi concebido por físicos soviéticos em finais da década de 50 do século passado e construído no Instituto Kurchatov, em Moscovo. O volume da câmara de plasma do ITER tem um valor recorde de 840 m3.4 A potência prevista do reactor é de 500MW. Dez por cento desta potência será consumida no aquecimento do plasma.

Com o ITER espera-se abrir caminho a um futuro protótipo de reactor de fusão que converterá energia nuclear em energia eléctrica, em condições particularmente favoráveis do ponto de vista ambiental. Nas experiências realizadas no Laboratório Nacional Lawrence Livermore, o confinamento do plasma a alta temperatura, passo necessário para chegar à fusão nuclear, é obtido por um processo dito de confinamento inercial no qual o alvo que contem a mistura deutério-trítio é «aquecido» por feixes de radiação laser de alta intensidade dispostos simetricamente em torno do alvo. Na mais recente dessas experiências, incidiu sobre o alvo a radiação de um conjunto de 192 feixes de luz laser de alta intensidade. 

«O Tokamac foi concebido por físicos soviéticos em finais da década de 50 do século passado e construído no Instituto Kurchatov, em Moscovo.»

O alvo era uma pequena cápsula cilíndrica de ouro contendo uma mistura de  deutério e trítio «congelada», no estado sólido, com a forma e as dimensões aproximadas de uma ervilha, a energia depositada na cápsula provoca uma forte compressão e a elevação de temperatura, simultaneamente necessárias à formação do plasma, criando-se assim as condições para o arranque da reacção de fusão. 

Tudo isto se passa, inicia e termina, num intervalo de tempo da ordem do milionésimo de segundo Quando a energia libertada pela fusão nuclear é superior à energia que foi necessário transmitir à cápsula onde se formou o plasma, diz-se que se atingiu a «ignição». A ignição é assim uma reacção de fusão nuclear em cadeia que se auto-sustenta. Foi este resultado que foi conseguido pela primeira vez na experiência de que falamos, resultado que não tinha ainda sido alcançado naquele ou noutro laboratório.

Se, no caso do ITER, o objectivo do enorme investimento que representa tem por finalidade criar condições para que, num futuro mais ou menos distante, a energia da fusão nuclear possa vir a satisfazer as necessidades energéticas das sociedades humanas, em paz e não para fins militares, outra foi a razão de ser decisiva do também significativo investimento feito na construção da chamada Nuclear Ignition Facility (NIF) do Laboratório Nacional Lawrence Livermore, como se deixou entender no início deste artigo.

Tem interesse referir que o fenómeno da «ignição» se dá nas bombas termonucleares ou de hidrogénio, onde o dispositivo de arranque é um explosivo «auxiliar» de plutónio, ou seja, o tipo de explosivo que foi lançado sobre Nagasaki em 1945. A «bomba» de plutónio, que explode primeiro, cria as condições de compressão e temperatura que espoletam a fusão da mistura de deutério e trítio contida na cabeça nuclear.

O conhecimento aprofundado dos parâmetros físicos associados à explosão de uma bomba termonuclear é de extrema importância, quer para o aperfeiçoamento dos explosivos nucleares, quer para garantir que as cabeças nucleares armazenadas continuam operacionais. Daí a importância da National Ignition Facility. 

No alvo em que incidem os feixes de radiação laser reproduziu-se uma explosão termo-nuclear, tal como nas bombas de hidrogénio, mas em laboratório, em condições controladas.

O investimento na National Ignition Facility, que ocupa uma área equivalente a cerca de três campos de futebol, ascendeu a 3800 milhões de dólares americanos.5">https://www.bilan.ch/story/les-etats-unis-avancent-sur-la-fusion-nucleai...

A notícia de que a proeza tecnológica conseguida pelos cientistas do Lawrence Livermore nos aproxima significativamente do momento em que o mundo poderá dispor de uma fonte abundante, limpa, de energia eléctrica é manifestamente exagerada.6

Bob Rosner, físico da Universidade de Chicago, antigo director do Laboratório Nacional de Argonne e membro do Conselho de Ciência e Segurança do Bulletin of Atomic Scientists7, afirmou em recente entrevista, referindo-se à possível importância do passo dado por aqueles cientistas para a almejada descarbonização da economia pela via da conversão da energia nuclear de fusão em energia eléctrica «limpa», que o resultado obtido tem, «na melhor das hipóteses, uma relação distante e tangencial com o que poderá ser uma fonte de energia». Entretanto, acrescentamos, foi montada à sua volta uma operação de propaganda que dava a entender não estar longe o dia em que a energia da fusão chegaria às tomadas eléctricas das nossas casas. O físico atrás citado, chama a atenção para que na experiência de ignição pioneira do Lawrence Livermore a mistura combustível estava contida numa cápsula de dimensões milimétricas. 

«O conhecimento aprofundado dos parâmetros físicos associados à explosão de uma bomba termonuclear é de extrema importância, quer para o aperfeiçoamento dos explosivos nucleares, quer para garantir que as cabeças nucleares armazenadas continuam operacionais.»

Acontece que a instalação montada para gerar o impulso, brevíssimo, de luz laser que vai provocar a «ignição» da mistura deutério-trítio encerrada na cápsula-alvo, apenas permite um «disparo» por dia. Tomando o valor do saldo energético positivo obtido, Bob Rosner calcula que, para fins úteis, na perspectiva do abastecimento energético à comunidade a partir de uma central de fusão, seria necessário que o sistema de lasers permitisse dez disparos por segundo. Não existem lasers que o permitam. Por outro lado a improvável central de fusão assente neste processo tecnológico iria consumir por dia em regime de operação contínua, à volta de um milhão de cápsulas de combustível feitas especialmente. Entretanto, o fabrico de uma tal cápsula demora uma semana e importa em cerca de dez mil dólares americanos.8

Na referida entrevista, Bosner chama ainda a atenção para o facto de que os cientistas que realizaram a proeza de atingir a «ignição» da mistura deutério-trítio e, assim, uma reacção de fusão auto-sustentada, não faziam parte do programa de energia de fusão do Departamento de Energia norte-americano. Trabalhavam, em vez disso, para Administração Nacional de Segurança Nuclear (NNSA), que tem a seu cargo a manutenção do stock ou inventário das armas nucleares dos Estados Unidos, em armazém. Salvo melhor opinião, tudo leva a crer que o caminho mais curto para chegar à exploração comercial da fusão nuclear como fonte de energia eléctrica livre de carbono, abundante e com aceitável viabilidade económica, será o que está a ser seguido pelo consórcio internacional envolvido no projecto ITER referido acima.

É, contudo, improvável que uma central eléctrica nuclear de fusão possa ver a luz do dia antes de duas ou três décadas. Entretanto, o mundo vive uma emergência climática que acreditamos ser a ameaça mais grave que hoje pesa sobre as condições de vida das sociedades humanas sobre a Terra e sobre o próprio destino dos seres vivos que habitam o planeta. A necessidade de reduzir drasticamente as emissões de gases de estufa mantendo, ao mesmo tempo, a possibilidade de satisfazer necessidades básicas, designadamente de energia, não pode ser remetida para um horizonte temporal a décadas de distância.9

A energia da fusão nuclear não responde a essa necessidade. Em nosso entender, para lá do recurso às chamadas energias renováveis — hídrica, eólica, solar, geotérmica, ondas e marés — cujo aproveitamento importa acelerar, deverá reconhecer-se a importância do recurso à energia nuclear de cisão como fonte energética de transição para um futuro de economia descarbonizada.

Para seguir esse caminho importa vencer o obstáculo representado por poderosos interesses ligados à exploração dos combustíveis fósseis que condicionam as decisões políticas dos países produtores. Está-se, há algum tempo, a assistir a uma espécie de renascimento da engenharia e da indústria nuclear dos reactores de cisão em vários países, na Europa, na Ásia e na América. Após um longo período de recessão perderam-se competências técnicas que dificultam a retoma. Portugal é um exemplo dessa involução.

  • 1. Entre 1960 e 1996, a França realizou 50 explosões nucleares na atmosfera. No caso da China, as explosões nucleares na atmosfera foram em número de 23 e tiveram lugar entre 1964 e 1996.
  • 2. A famosa equação de Einstein, E=mc2, permite calcular o valor da energia libertada na reacção.
  • 3. No projecto ITER participam a Coreia do Sul, os Estados Unidos da América, a Federação Russa, a Índia, o Japão, a República Popular da China, e a União Europeia (https://www.iter.org/proj/inafewlines)
  • 4. Há numerosos Tokamacs operacionais em diversos países e em vários continentes. O Instituto Superior Técnico possuiu um pequeno Tokamac – o IISTTOK – para fins de ensino e investigação no domínio da Física dos Plasmas que hoje se encontra inoperacional
  • 5. Fusion. Really?, Karl Grossman, Counterpunch, Dez,16, 2022 (https://www.counterpunch.org/2022/12/16/fusion-really/). Ver também: 6.  A energia de fusão é limpa no sentido em que no processo ulterior de conversão em energia eléctrica não haverá intervenção ou emissão de compostos carbonados, designadamente, CO2. No caso da fusão deutério-trítio, há, no entanto, a formação de elementos radioactivos em materiais estruturais provocada pela emissão de neutrões de alta energia que acompanha a reacção.
  • 7. A iniciativa da criação do simbólico «Relógio do Juízo Final» — o «Doomsday Clock» —  deve-se ao grupo fundador do Boletim dos Cientistas Atómicos. Desde 1947 que a posição dos ponteiros do Relógio é determinada pela avaliação do risco de catástrofe global que pesa sobre a Humanidade devido à existência de armas nucleares, ao desenvolvimento de outras tecnologias com aplicações militares e ainda às alterações climáticas. (https://otc.pt/wp/2022/01/31/hora-do-relogio-do-juizo-final-2022/)
  • 8. The Energy Department's fusion breakthrough: It’s not really about generating electricity, entrevista de Bob Rosner conduzida por John Mecklin, publicada no «Boletim dos Ci, 12, entistas Atómicos», Dezembro 16, 2022 (https://thebulletin.org/2022/12/the-energy-departments-fusion-breakthrou...)
  • 9. Here's a reality check for nuclear fusion, Arianna Skibell, POLITICO, Dezembro 12, 2022

Tópico

Contribui para uma boa ideia

Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.

O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.

Contribui aqui