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|Um outro Mundial

Catar 2022, narrativas e consequências

Um Mundial que tornou global a discussão do papel do futebol na nossa sociedade e que abre portas para uma conversa que tem que ser mantida. Catar 2022, as narrativas que gerou e as consequências deste evento.

CréditosNOUSHAD THEKKAYIL / EPA

Quando em dezembro de 2010 o Catar foi escolhido como país organizador do Mundial 2022, poucos se atreveriam a adivinhar como essa opção teria enormes consequências na forma como a FIFA se organizava, na maneira como a opinião pública mede as escolhas de uma grande organização de direito privado e no peso que essa transformação pode ter em toda a sociedade. Ao mesmo tempo, a forma como se festejou, no momento da decisão, a realização do primeiro Mundial no Médio Oriente, parece hoje toldada pelas diferentes leituras desse facto e o seu impacto na realização do mesmo em território catariano. 

Todo este processo teve enormes custos e não creio que seja possível vê-lo como totalmente positivo - a transformação estará longe de ser concreta, muito menos global - mas indica suficientes graus de leitura para que possamos enquadrar o Mundial do Catar como um ponto de viragem. A narrativa da FIFA tende a ignorar boa parte do seu real potencial transformador, ignorando os territórios de leitura sociais e culturais de análise ao evento, para se focar nas pequenas vitórias do concreto, apostando sobretudo nos feitos que tenta correlacionar com mudanças reais no Catar. Mas se ao nível das leis de trabalho a situação sofreu ligeiras alterações, a realidade genérica do país manteve-se inalterada. A FIFA não detém o mesmo poder transformador do futebol.

É esse o custo que a opinião pública pode e deve medir. O Catar fez um enorme investimento para garantir a realização desta competição e para montar todas as estruturas que o permitiram levar até ao fim com a sensação do dever cumprido. No entanto, esse aposta sobretudo financeira careceu de verdadeiros sinais de pertença a uma nova realidade. Os direitos dos migrantes no território continuam a levantar enormes questões, bem como os direitos das mulheres e os homossexuais. É bom ter em conta que durante este torneio se percebeu que a aposta feita numa seleção feminina no Catar foi abandonada a meio do processo, entendendo-se como uma medida de maquilhagem que foi largada assim que os seus intentos foram alcançados. 

Por outro lado, é bom não esquecer que o Catar transposta em si contradições - quer na forma de ser, quer na forma de ser visto - que colocam em choque duas visões do mundo. Para o mundo árabe, a conquista alcançada pelos catarianos é uma prova de poder e capacidade para organizar grandes eventos mundiais. O Catar é visto, em comparação com países vizinhos, como uma sociedade mais aberta e com mais respiro económico, não deixando, ao mesmo tempo, de ser encarado como uma sociedade contraditória, onde o aspeto religioso e o comportamento social dos seus mais ricos nem sempre parece afinar-se com as expetativas dos seus compatriotas. Nesse sentido, o Catar acaba por ver falhar parte dos seus objetivos. Se por um lado a forma como o mundo olha para este país garante a aceitação da sua existência - algo que na sua história recente continuou em causa - por outro o seu reconhecimento leva a uma cada vez maior exigência sobre o seu papel no mundo. 

O Catar aproveitou o Mundial para anunciar acordos de fornecimento de gás natural com a Alemanha e a compra de material militar com os Estados Unidos da América. Nessa linha, consegue enquadrar-se numa comunidade internacional que sente como vital para manter a sua posição geopolítica defendida. Mas também foi neste período que saíram a público denúncias de corrupção de eleitos no Parlamento Europeu, com uma investigação que agora decorre, mas que já levou à prisão de quatro pessoas, incluindo uma vice-presidente desta instituição, exigindo cada vez mais clareza sobre os objetivos definidos pelos elevados investimentos feitos pelos catarianos - não só em clubes de futebol e em eventos, mas também em organizações privadas, instituições académicas e empresas. 


Um outro Mundial será possível?

Todas as questões levantadas pela organização deste evento pelo Catar e a evolução, no mundo atual, de uma opinião pública mais disponível para colocar questões e para procurar esclarecimentos, acabou por tornar este Mundial o mais político de sempre. As investigações de jornalistas ingleses e norte-americanos iniciadas desde o momento da escolha do Catar sobre a forma como a mesma tinha sido realizada, levou a uma pequena transformação na maneira como os Mundiais são definidos, bem como na descoberta de vários processos de corrupção a envolver pessoas com altas responsabilidades na FIFA e nas confederações continentais. Por outro lado, foi também o Mundial onde mais foram questionados os investimentos e a forma de execução de obras públicas de enorme envergadura e o legado que estas deixam no país - lembrando processos já vistos, mas com menor impacto mundial, nos Jogos Olímpicos de Atenas ou no Europeu de futebol realizado em Portugal. Finalmente, as investigações sobre os direitos humanos nos territórios organizadores deste tipo de eventos levou a uma consciencialização sobre as lutas e sobre a maneira como estas são vistas pelo mundo. 

O Mundial 2026, que será co-organizado pelos Estados Unidos da América, o México e o Canadá levará a nova discussão sobre os direitos humanos, o racismo e o tratamento da população migrante nestes territórios. A escolha do Mundial 2030, marcada para daqui a dois anos, terá que ter em conta todas estas situações, não esquecendo que entre as candidaturas estão territórios em guerra, como a Ucrânia, candidata em conjunto com Portugal e Espanha, ou países como a Arábia Saudita, conjuntamente com Egito e Grécia, que levantará, de forma geral, o mesmo tipo de questões com que o Catar foi confrontado este ano. A FIFA não se transformou e o poder do dinheiro continuará a ser essencial na definição de uma realidade que tenta seguir incólume aos protestos das populações. No entanto, 2022 criou vias de conversa que dificilmente serão abandonadas num futuro próximo. 

É esta, eventualmente, a narrativa mais forte que encontro neste Mundial 2022. A forma como o mesmo terá libertado a maneira como falamos de futebol e do seu peso na sociedade. Não como um elemento que perturba o entendimento das realidades das nossas vidas, mas como um espaço onde encontramos forma de nos esclarecermos sobre as mesmas. O futebol e tudo o que o rodeia permite-nos assistir à formação, enquanto campo de experimentação, de muitas das situações que nos tocam diretamente, a nível social, político, cultural. Como um evento de massas, permite-se a essa experiência, ao mesmo tempo que nos pode servir de alerta para a maneira como nos podemos defender daquilo e daqueles que tentarão atacar os nossos direitos. Falar abertamente deste tipo de problemas é uma conquista da qual não devemos largar a mão. Para que de uma série de más decisões possa nascer, finalmente, um campo de reflexão e renovação da forma de funcionar do mundo.

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