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Ainda a memória

É preciso estar nestes combates que se travam. Há que reconhecer a forma seletiva como se quer difundir no presente – porque há, claro está, agendas políticas – uma imagem, uma construção do passado.

Miradouro da Memória, El Torno, Cáceres
Créditos / Turismo de Extremadura

Não é demais, sobretudo nos tempos que correm, relembrar a importância da memória face aos silêncios, às ausências, à desmemória, e, sobretudo, à vontade de amputar o passado, ou, pelo menos, uma parte desse passado. Porque a memória é, de facto, um campo de batalha. Por isso, ainda a memória e as questões que em torno dela se levantam. Por isso, voltar uma outra vez a este tema. Quantas vezes forem necessárias.

No passado dia 12 de julho foi tornado público o Manifesto pela Dignidade e Memória na Estremadura [Manifiesto por La Dignidad y la Memoria en Extremadura]. É uma tomada de posição clara sobre o que se anuncia em relação às políticas de memória. E não é, apenas, uma questão que se relacione com o contexto da Estremadura ou de Espanha.

Perante o acordo de governo para a Junta de Extremadura, assinado entre o PP e o VOX, um coletivo de várias associações, cidadãos e cidadãs rejeitam o anúncio da revogação das «políticas institucionais e os projetos públicos que foram laboriosamente alcançados na região após tantas décadas de esquecimento, especialmente a Lei 1/2019, de 21 de janeiro, sobre a memória histórica e democrática da Extremadura (...)». Como reconheceu a própria lei, não se podia deixar de resgatar «uma imensa maioria» de represaliados, os que, de uma «forma intencional» foram mergulhados no mais «profundo esquecimento».

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Memória e Futuro

O corpo de Liliana Segre traz em si a memória dolorosa do passado: todas as manhãs, vê no seu braço a tatuagem com o número de prisioneira do campo de concentração nazi.

Créditos / GGN

Quase perdia este acontecimento na espuma dos dias, no movimento rápido de passar os olhos pelas notícias. Mas ali estava: texto e imagem. Liliana Segre presidiu à abertura do Senado da República, em Itália, a 12 de outubro de 2022. Tem 92 anos, cabelos totalmente brancos. Sobreviveu ao campo de concentração e de extermínio de Auschwitz-Birkenau, onde mais de 1,1 milhão de homens, mulheres e crianças foram mortos.

A senadora vitalícia Liliana Segre declara aberta a sessão. Ouvimo-la. Mas também a ouviram aqueles que admiram Mussolini. Ela que durante tanto tempo não falou do que passou em Auschwitz: era difícil encontrar as palavras certas, afirmou numa entrevista de 2020. O silêncio de quase 45 anos. O tempo que foi preciso para poder contar.

O corpo de Liliana Segre traz em si a memória dolorosa do passado: todas as manhãs, vê no seu braço a tatuagem com o número de prisioneira do campo de concentração nazi. Tantos são os corpos que, de diferentes maneiras, contêm em si a memória ferida ou a memória cicatriz da opressão e da repressão. Tantas são as vozes que ainda podem contar. Mas, temos de perguntar: quem as quer ouvir? Como as ouvimos? E o que fazemos com o ficamos a saber?

No Senado, vestida de escuro, Liliana Segre relembra que neste mês de outubro passam cem anos da Marcha sobre Roma que, usando as suas palavras, deu início à ditadura. Ou posto de outra forma, o princípio do regime fascista de Benito Mussolini. Ali, no Senado da República, diz-nos da espécie de vertigem, «relembrando que a mesma menina, num dia como este de 1938, desconsolada e perdida, foi forçada por leis racistas a deixar a sua carteira vazia na escola primária, está agora, por uma estranha reviravolta do destino, no lugar mais prestigiado do senado».

Como não sentir essa espécie de vertigem? O braço tatuado com o número do campo de concentração, no presente, numa ligação aos eventos dolorosos e traumáticos do passado. O trazer para o discurso os acontecimentos de 1922, lembra-nos, por outro lado, os braços estendidos da saudação fascista.

Como não sentir esta vertigem quando, neste momento, em outubro, no Senado da República, em Itália, parecem cruzar-se as linhas que urdiram a História da Europa? Que, afinal, está próxima e presente. Como se o presente se visse invadido pelos fantasmas do passado, ou por novas formas desses mesmos fantasmas.

«Como não sentir essa espécie de vertigem? O braço tatuado com o número do campo de concentração, no presente, numa ligação aos eventos dolorosos e traumáticos do passado. O trazer para o discurso os acontecimentos de 1922, lembra-nos, por outro lado, os braços estendidos da saudação fascista.»

Este texto não é, contudo, sobre Liliana Segre. Convoca a história e as memórias que aquela senadora, sentada naquele lugar, com os novos equilíbrios de poder numa Itália com a presença da extrema-direita, trazem. Assim, a um século de distância, aí estão, se olharmos para 1922, os camisas negras de Mussolini, no que foi a primeira vaga do fascismo, ainda antes da Grande Depressão, na sequência da crise de 1929. Anos depois, na década seguinte, o nazismo chegaria ao poder. E convoquemos também, neste desfiar de conjunturas históricas, a II Guerra Mundial. As mortes. A destruição.

A presença e importância da vítima, não pode ou não deve, contudo, ocultar aquelas e aqueles que lutaram. Mulheres e homens que escolheram o lado antifascista. Foram sujeitos ativos, aqueles que não colaboraram, os que resistiram. Os que têm nome e que a História registou, mas, também todos aqueles que não conseguimos recuperar, mas que estiveram lá. Se com relativa facilidade podemos trazer para a luz os grandes atos de desafio e de luta, não podemos esquecer os pequenos gestos de resistência.

O dia-a-dia, que parece sempre igual, é, também, o tempo e o lugar de afirmação das escolhas e dos posicionamentos éticos e políticos. Afinal, nos fugazes momentos do nosso quotidiano, quando viramos a cara para fingir que não vemos a injustiça, não estaremos de alguma forma a contemporizar?

Como muitos antes de mim afirmaram, combate-se pela memória. Todos os dias, em múltiplas frentes. Combate-se contra as ausências, a amnésia, o esquecimento, que, tantas vezes, desliza para o apagamento e para a desculpabilização. No caso português, podemos surpreender estes processos no debate sobre a natureza do regime salazarista ou, ainda, na forma como se quer olhar de forma menos dura para o que foi o colonialismo português.

Para que serve, então, lutar pela memória? 

A primeira resposta que nos surge, prende-se com uma ideia comummente referida: lembramos para não repetir. Há um princípio ético neste dever de memória e no reconhecimento da centralidade do direito de memória. Defende-se a existência de uma estreita relação entre a verdade, a justiça, a reparação e a não repetição, quando estão em causa violações dos Direitos Humanos.

Neste sentido, este combate está imbricado na própria construção e aprofundamento da democracia. Esta luta pela memória, pela interpretação do passado, pelo seu significado, é afinal uma questão que tem uma estreita ligação com o presente.

Quer-se, então, uma memória viva e partilhada, a que podemos acrescentar as novas lutas do presente, para que nos sirva para a construção do futuro. E esta é uma batalha decisiva, nos tempos que correm.


A autora escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

Tipo de Artigo: 
Opinião
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Falamos de um longo período de violência: depois do golpe de 17 de julho de 1936 contra o governo legítimo, «mais tarde a causa da Guerra Civil», em tempos dessa repressão de uma «magnitude extraordinária» levada a cabo pelo franquismo. Afinal, além do direito de se saber as circunstâncias da morte de tantas mulheres e de tantos homens, também o de saber o local onde estão os restos mortais «de um incontável número de desaparecidos», de modo a permitir uma sepultura digna.

Afinal, o silêncio pode estar prenhe de injustiças.

O manifesto congrega o Movimento pela Memória Histórica e Democrática de Extremadura, vinte associações, mulheres e homens da história, da antropologia e da arqueologia e, ainda, toda a cidadania sensível ao sofrimento daqueles que foram represaliados «por motivos políticos, ideológicos, sindicais, religiosos, de género ou de identidade e orientação sexual durante a ditadura» franquista.

É preciso estar nestes combates que se travam. Há que reconhecer a forma seletiva como se quer difundir no presente – porque há, claro está, agendas políticas – uma imagem, uma construção do passado. Como bem se relembra e reitera no manifesto, a memória das vítimas «de qualquer conflito ou repressão» está diretamente relacionada com «os direitos humanos e os princípios de verdade, justiça, reparação e garantia de não repetição (...)». Portanto, esta questão está diretamente relacionada com o presente. O nosso presente.

Relembra-se também, no mesmo documento, que «nenhuma pessoa justa» se deveria esquecer que «durante os quarenta anos da ditadura franquista» se glorificaram apenas alguns, apenas «uma parte das vítimas do golpe de Estado e da Guerra Civil». Sabemo-lo: há razões ideológicas nesse esquecimento e na desmemória. Serviram os tempos de ditadura. Servem agora neste novo contexto político de crescimento da extrema-direita.

Mas se o poder construía e monumentalizava a sua versão, também é certo que as memórias, todas as outras memórias não foram erradicadas.

Afinal, se a concórdia é desejável, não se podem manter feridas abertas.

«Mas se o poder construía e monumentalizava a sua versão, também é certo que as memórias, todas as outras memórias não foram erradicadas.»

Campo de batalha. Porque estes combates não são um único evento, mas um processo. Não pensemos que alguma coisa está definitivamente conquistada. Não são estes os tempos em que isto se torna ainda mais evidente?

Há que ter força. Não se desiste da restituição da dignidade. Mesmo quando tudo parece sombrio, mesmo quando há outras forças políticas a destruírem o que até agora foi feito. Há que ter força. Porque não estamos sozinhos.

«Quienes niegan que el derecho a la memoria sea un derecho humano, patrimonio de la ciudadanía, parecen no darse cuenta de que seguiremos ejerciéndolo, aunque no haya leyes, porque el proceso de recuperación de la memoria histórica y democrática es un movimiento popular, de la sociedad civil, que jamás erradicarán.

En Extremadura, a pesar de PP y Vox, desde el movimiento por la MEMORIA HISTÓRICA Y DEMOCRÁTICA seguiremos hablando del franquismo, seguiremos dignificando a las víctimas, seguiremos recordándoles la historia, seguiremos haciendo memoria.»

Em rigor, isto não é, apenas, sobre o que se passa ao nosso lado, na Estremadura. É aqui. É sempre aqui, também. Nada disto nos deveria ser estranho ou indiferente. É sobre todos nós.


A autora escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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