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Um roteiro quase só com livros

Poderia, em suma, sugerir-lhe muita coisa. Mas a opção, neste caso, vai ser ficarmo-nos pelos livros. Porque o tempo é de festa do livro. Em Lisboa, claro está. 

Em 2018 celebram-se 20 anos da atribuição do Nobel da Literatura a José Saramago
Créditos / www.m-x.com.mx

Este específico roteiro de início de Junho poderia conter muitas propostas de filmes, de peças teatrais, de exposições, de concertos, de espectáculos de circo… 
Poderia, por exemplo, sugerir-lhe que, no Porto, fosse, este fim-de-semana ao Serralves em Festa. Há quem goste. Mesmo muito. E o programa é rico e diverso. Por isso, por que não tentar? 

Poderia lembrar-lhe que importa consultar regularmente na Internet as programações de Música da Gulbenkian, em Lisboa, ou da Casa da Música, no Porto; ou ver o muito que sempre têm para oferecer a Cinemateca Portuguesa, na capital, e a Casa das Artes, no Porto (com boa programação de cinema organizada pelo Cineclube do Porto), para não falar de muitos outros equipamentos culturais por esse país fora.

Poderia dizer-lhe ainda que não deve perder, se puder, os espectáculos de Chico Buarque, no Coliseu do Porto, a 2 e 3 de Junho, e no Coliseu de Lisboa, a 7, 8, 9 e 10 de Junho.

Estamos, como sabe, perante um pilar da cultura contemporânea de língua portuguesa – na canção e mesmo na literatura, nos livros para crianças, e até nos posicionamentos político-culturais fiéis aos ideais da esquerda, ao lado dos pobres e oprimidos e das lutas dos trabalhadores.

Mas o autor da Ópera do Malandro é um pilar cultural e artístico, sobretudo, pela sua música, pelas suas letras de génio, por estar há muito na memória de muitos e por assim ir continuar. Portanto, se tiver possibilidades (que as entradas são bem caras), não perca o espectáculo de Chico Buarque.

Poderia, em suma, sugerir-lhe muita coisa. Mas a opção, neste caso, vai ser ficarmo-nos pelos livros. Porque o tempo é de festa do livro. Em Lisboa, claro está.

Fique, no entanto, com esta certeza: alguns destes títulos encontrá-los-á talvez nas barraquinhas das várias editoras representadas na Feira do Parque Eduardo VII. Mas outros não. Haverá que procurá-los, se calhar com afinco, noutros espaços comerciais.

Saramago e José Gomes Ferreira

No ano em que se celebram os vinte anos da atribuição do Nobel da Literatura a José Saramago, como não reler ou ler alguns dos seus romances ou experimentar a leitura de O Caderno (Porto Editora, 2018). Entre Setembro de 2008 e Novembro de 2009, Saramago foi bloguer. Em O Caderno se reúnem os seus textos, necessariamente curtos mas com elementos de interesse («comentários, reflexões, simples opiniões sobre isto e aquilo» (p. 23), nas palavras do próprio escritor).

Literatura, artes, História, política, lembranças de viagens, de lugares e muitos outros tópicos… Prefácio, curioso, de Umberto Eco. Leia-se, só a título de exemplo, e estampe-se, para que sobre ele se medite, o texto de Dezembro de 2008 sobre Gaza (pp. 130-131) e sobre a contínua agressão israelita.

É verdade: e já sabe que, depois de Tiago Rodrigues, Shakira acaba de fazer crescer o número de artistas que recusam actuar em Israel? Leia a notícia: «A cantora colombiana Shakira não vai actuar em Tel Aviv este ano, correspondendo ao apelo que lhe foi dirigido numa carta subscrita por autarquias e dezenas de organizações culturais palestinas.» 

Já que falamos de textos não ficcionais, e por vezes de cunho autobiográfico, como não sugerir a leitura de Dias Comuns (vol. IX) – Derrota Pairante (Dom Quixote, 2018), um volume mais do diário de José Gomes Ferreira. Aqui, são os registos de grande parte do ano de 1970 os que podemos ler.

Entre outros motivos de atracção: a reflexão contínua, curiosíssima, sobre as agruras do próprio processo da criação literária e a relação desta com a vida; a cena literária da época, suas grandezas e misérias; por último, a evolução política do país no estertor do fascismo, isto é, o período após o acidente que retiraria a chefia do governo a Salazar e os primeiros tempos do marcelismo.

Oportunas observações são as que aqui encontramos, desmascarando o que foi na verdade o consulado de Marcello Caetano: continuação da ditadura, da repressão e da guerra colonial, a par da crise crescente da economia, da degradação da situação social e das instituições, e do aumento do custo de vida. E importa não esquecer: o humor de José Gomes Ferreira, em muitos dos episódios que narra, é claramente outro dos motivos de interesse deste diário. 

Mário de Carvalho, Ruben Darío, Sérgio Sousa

Voltando-nos para a ficção narrativa, é difícil recusar a proposta de leitura do último livro de contos de Mário de Carvalho, cujo título, cesarinyano, é todo um programa: Burgueses Somos Nós Todos ou ainda menos (Porto Editora, 2018). Uma escrita de qualidade literária reconhecida, de sentido crítico acerado e sem concessões à facilidade ou à estupidez reinantes em muita narrativa contemporânea.

Na ficção estrangeira, destaque-se a recente saída de Curiosidades Literárias e Outros Contos (Editora Exclamação, 2018), do nicaraguense Rubén Darío (1867-1916), figura maior das letras hispânicas, para alguns o iniciador e máximo representante do Modernismo literário em língua espanhola (distinto do de outros países, como Portugal).

Um autor de raro aparecimento no nosso panorama editorial, pelo que se pode considerar um acontecimento esta publicação, que conta com selecção, versões e notas de Rui Manuel Amaral e prefácio de André Fiorrussi.

Voltando aos autores portugueses, descubra também as novelas e contos centrados em figuras de mulheres, de idades e condições familiares e sociais diversas, que nos propõe Sérgio Sousa em Narrativas Femininas (Página a Página, 2018), um título mais de um autor prolífico, cuja escrita se reparte pelo teatro, pela crónica, pelo ensaio, pela escrita diarística e pela ficção.

A reflexão sobre a mulher e a sua circunstância (socioeconómica, política, moral, no plano dos costumes, no campo da intimidade…) é uma das notas dominantes nestas narrações de escrita fluente, em primeira pessoa, que ficam também como retrato do tempo que nos foi dado viver.

Poesia para diferentes gostos

Na poesia, aceite-se o convite à leitura de Poesia Reunida (Cotovia, 2018), de Manuel Resende, que é conhecido sobretudo como tradutor literário de excelência, mas que, nesta colectânea de conjunto, evidencia (para quem não estivesse familiarizado com os seus textos poéticos editados em revistas ou em volumes mais pequenos e de publicação espaçada no tempo) uma voz vinda dos anos 60 e 70 do século XX – próxima da de Manuel António Pina, seu amigo e admirador –, que é muito mais do que uma herdeira tardia da tradição surrealista.

Antes se impõe pelo registo pessoal, por um tom próprio que não enjeita o lirismo mas deixa perceber outros traços marcantes, que incluem o humor (quantas vezes dorido), o olhar crítico sobre o presente, a reflexão sobre a mortalidade e mesmo uma certa pulsão experimental ao nível das formas. Desfrute, leitor, da inteligência e sensibilidade desta poesia, mesmo que se não identifique com alguma visão do mundo que ela possa deixar transparecer.

Quanto à poética de Aurelino Costa, ela propõe-nos sempre um caminho de pedras: as de uma vida que, no texto, é erguida ou rebaixada à altura específica de cada conjunto de palavras; e as pedras que o poeta semeia, afiadas e rugosas, no caminho atapetado dessas mesmas palavras que a escrita é.

Quanto às primeiras – e recupero ainda memória de livro anterior, Domingo no Corpo (Deriva, 2013), que terminava com um poema cortante mas muito belo, «fechei janelas e persianas» (p. 42) – direi que são as pedras da infância revisitada, via crucis, por vezes, mas não só, já que, por exemplo, o poema «(Declaração de amor)» (p. 53), de Gadanha (Modo de Ler, 2018), livro que estou a comentar aqui, é uma comovente e convincente evocação, não isenta de humor e sentido erótico, de uma bela professora primária.

Mas as pedras da vida são também, por um lado, as de uma relação elemental, por vezes crua, com a terra, com os animais, com os humanos que a trabalham e nela geram família (e aí comparece o núcleo familiar do eu, e os fantasmas do crescimento ganham forma e expressão), e, por outro lado, a dor e a melancolia que defluem da partida de alguns próximos.

É disso exemplo o admirável poema (pp. 44-45) dedicado à memória do inesquecível intelectual poveiro que foi o bibliotecário Manuel Lopes, uma força da natureza e da cultura, ser humano de excepção – «peito em quilha, ó Homem do leme!», dele diz certeiramente o sujeito poético.

De outras dores, de outros ajustes de contas com a vida e com a morte (o título do livro, Gadanha, tem aqui um dos seus fundamentos) são feitas, neste caso, as pedras aceradas da existência.

Há depois as outras, as pedras que incorporam a gramática própria do livro, e que tornam a leitura um exercício de fruição – o de quem luta para vencer a resistência à decifração que a linguagem poética impõe, pelos seus muitos lugares de indeterminação.

A metáfora críptica, a antidiscursividade e o estilo elíptico, a peculiar partição do poema a obrigar à leitura ponderada e lenta – de tudo isto e de muito mais é feita a poética de Gadanha, de Aurelino Costa, incluindo um léxico vinculado à concretude da terra, do corpo, dos objectos; alguma inclinação para subverter, com efeito expressivo, a escrita de certas palavras, convertendo-as por vezes em «mots-valises»; bem como um talento especial para, no mesmo texto, impor registos por vezes contrastantes, combinando até, com intencionalidade, a linha discursiva mais elevada com a tirada quase popular.

Em edição extremamente cuidada, com ilustração de Anxo Pastor, foto de Jorge Bacelar, prefácio de António Cabrita e concepção gráfica de Rui Mendonça, é esta, pois, uma nova aventura literária deste poeta, diseur e actor, natural do concelho da Póvoa de Varzim, que aqui assina o seu sétimo volume de poesia.

Já agora, aproveite a Feira do Livro de Lisboa para (re)descobrir dois outros poetas-de-coração-à-esquerda. O primeiro é Domingos Lobo, de quem poderá ler, por exemplo, Para Guardar o Fogo: Epitáfios (Página a Página, 2012), Prémio Cidade de Almada 2009, com prefácio de Manuel Gusmão; e ainda A Pele das Sombras (Fonte da Palavra, 2011). O segundo é Luís Filipe Cristóvão que, em 2017, editou Famosas Últimas Palavras (Gato Bravo).

No campo da poesia estrangeira traduzida para Português, por que não uma visita à obra poética do espanhol Luis Alberto de Cuenca, que acaba de ver publicado A Vida em Chamas: Uma antologia (2018), na Língua Morta. A selecção, a tradução, o prólogo e as notas são da responsabilidade de Miguel Filipe Mochila.

Os Aforismos de Karl Kraus: um acontecimento

Karl Kraus (1874-1936), o famoso dramaturgo, jornalista, ensaísta, aforista e poeta austríaco, de perfil satírico, começa a ter, finalmente, e cada vez mais, a sua obra traduzida para Português, neste caso por Lumir Nahodil, com revisão de Virgílio Tenreiro Viseu.

Refiro-me a Aforismos, uma das obras seminais de Kraus, com «verdades» e reflexões de actualidade por vezes gritante e incisiva. João Bicker assina a concepção gráfica da obra, que é belíssima, sóbria, de irrepreensível bom gosto. A edição é da VS – Vasco Santos Editor e data de 2018.

Livros para os mais jovens ou também para todos?

Ainda no campo das traduções, mas avançando para o domínio da literatura para a infância, creio merecer especial realce a versão portuguesa, assinada por Hélia Correia e com prefácio seu, de Contos de Encantar, do poeta vanguardista norte-americano E. E. Cummings (1884-1962), escritos para o seu neto. Imperdíveis são também as ilustrações de Rachel Caiano.

No domínio do livro de recepção transgeracional (adultos, jovens, crianças), é de salientar o recente A Guerra (Pato Lógico, 2018), de José Jorge Letria (texto) e André Letria (ilustração e design), álbum belo e bem desenhado, que se distingue pelo seu cromatismo depressivo (em consonância com o tema) tecido de cinzas, verdes, castanhos e amarelos sujos, e naturalmente, do negro, num registo poético que tanto abrange a imagem como o texto, sendo este composto de frases breves, em registo poético, mas incisivo e tristemente actual, frases que lembram o estilo aforístico ou até o da greguería.

Um livro que, em período de guerras e ameaças de guerras (na Ucrânia, na Líbia, no Mali, contra a Síria, contra a Palestina ocupada, etc.) deve ser lido, discutido, analisado nas nossas escolas, fruído na sua beleza difícil mas incontornável, e debatido por todos.

Uma palavra também para Os Direitos das Crianças: antologia poética, obra organizada por João Manuel Ribeiro, e editada em 2018 pela Trinta por Uma Linha, com capa de João Vaz de Carvalho.

Numa altura em que são inumeráveis os atentados aos direitos da criança (na Palestina ocupada, atacada em contínuo pela força militar israelita; em África; nas escolas dos Estados Unidos; no Brasil e em muitos outros países), é desgraçadamente oportuna esta antologia luso-galaico-brasileira de poemas de leitura transgeracional, que contempla nomes como António Ferra, Carmen Zita Ferreira, João Pedro Mésseder, João Rasteiro, José António Franco, José Jorge Letria, Luísa Ducla Soares, Maria da Conceição Vicente, Pedro Teixeira Neves, Raquel Patriarca, Rui Zink, além do próprio organizador. De assinalar ainda os autores galegos presentes: Antonio García Teijeiro, Ramiro Torres, Alfredo Ferreiro Salgueiro e Suso Díaz.


Os livros infantis de Álvaro Cunhal

Mas, se a sua bolsa está, este mês, pouco recheada, mas, mesmo assim, pretende adquirir (para os seus filhos, netos, sobrinhos…) literatura para a infância inteligente, que faça reflectir (pensando criticamente o mundo, a injustiça social, a relação exploradores/explorados, a História, o que representou na verdade a Revolução de Abril…), uma literatura que seja simultaneamente divertida, com histórias curtas, bem contadas, e magnificamente ilustradas, pois não hesite.

Corra à Página a Página (que está representada na Feira no espaço das Edições Avante!). É a editora que publica Os Barrigas e Os Magriços e História de um Gordo Chinês que estava de Barriga para o Ar, de Álvaro Cunhal, o primeiro escrito em 2000, o segundo em 1937. Reconhecerá os livros pelas belíssimas imagens de capa (e de interior) que Susana Matos criou. Apetece-me dizer: nasceu uma estrela (releve-se o lugar comum) no universo da ilustração portuguesa. 

Uma revista, a terminar

A terminar este roteiro quase só de livros, uma revista merece também destaque: o volume 49, de 2017, do Boletim Cultural da Póvoa de Varzim, editado, com qualidade gráfica, pelo Município e com muita matéria de interesse.

Além de textos de justa evocação de Luísa Dacosta (escritora falecida em 2015, com profundas ligações a A-Ver-O-Mar e sempre acarinhada pela Póvoa de Varzim, cujas obras poderá procurar na Feira do Livro), seja-me permitido chamar a atenção para um interessante e bem documentado artigo do investigador e professor universitário Manuel Gomes da Torre sobre a história da tradução de O Rei Lear de William Shakespeare, por Álvaro Cunhal (v. pp. 159-175). 

Boas leituras.

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