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|Música

Um poema na selva

O abstracionismo em Violet não nos é estranho e entramos nas suas profundezas com facilidade quando partilhamos as inquietações e angústias que a nossa relação com os outros nos traz.

Créditos / Resident Advisor

Na agitação dos dias, do trânsito às notificações intensivas de mensagens e publicações nas redes sociais, das solicitações para todo o tipo de sociabilização à perpetuação da urgência como modelo de trabalho, deixamos o flanco aberto para a perfuração das nossas vulnerabilidades. Vivemos entre o dever da não-vitimização e o direito a permitir que os sentimentos determinem as nossas escolhas. A ansiedade provocada por estas dinâmicas violentas cresce cada vez mais num mundo que espera de nós algo a que nem sempre conseguimos responder com uma ação visível, tangível, materializável. Guardamos, escondemos, fugimos, evitamos e negligenciamos tantas coisas, que perdemos o controlo dos dias.

Reproduzir este sentimento de pressão do exterior para connosco, devolvendo ao mundo o que em nós é resultado de todas as circunstâncias, é algo que muitas vezes só conseguimos através da expressão artística. A história da arte está cheia desses detalhes, mesmo no mais clássicos dos formatos (retrato, paisagem, natureza morta). A solução do abstracionismo veio permitir outra manifestação das emoções e a intelectualização de coisas para as quais não encontrávamos forma exata. Para o artista e para o indivíduo comum, a aproximação é hoje possível sem grandes codificações, apesar da insistência em entender a arte contemporânea como um complexo de códigos a decifrar, que se manifesta apenas no momento de exposição.

Mas a arte contemporânea, enquanto reprodução da perspetiva de um indivíduo (íntima, social, material ou idílica) e do seu universo criativo, desamarrado dos padrões formatados pelo academicismo e do fétiche por uma codificação inteligente, consegue ir muito além e desvendar um conjunto de hipóteses que ainda não tínhamos sintetizado numa única ideia. 

Na música isto também acontece, sobretudo, quando muitas das ferramentas que utilizamos já não obedecem ao sistema harmónico-melódico a que nos habituámos. Se a música instrumental e experimental tentou explorar essas possibilidades, a música eletrónica nasceu com esse propósito. Daí o seu lado tribalista, impulsivo e abstrato. Ou, se calhar, é isso tudo que retiro do mais recente trabalho de Violet - uma artista da música de dança, que se expande para além das pistas e abraça os dias com uma proposta de arte abstrata reconhecível de sol a sol. 

Lançado a 14 de fevereiro – o Dia dos Namorados –, numa autêntica desconstrução do cinismo com que tantas vezes se hostiliza a efeméride, por mais consumista que ela seja, Heart/Break Hard/Core é um EP que nos empurra (puxa?) para o meio do turbilhão dos dias, que nos obriga a uma confrontação com as causas desse batimento cardíaco que, certamente, preferíamos que fosse bem mais gentil. Violet explora uma reação íntima recorrendo à própria história da música de dança, das diversas correntes que acompanharam o ritmo contemporâneo das últimas décadas (o Drum ‘n’ Bass, o Jungle, a IDM), num exercício pendular entre o efeito que as circunstâncias têm em nós e a nossa reação visceral, tal como observamos em Pollock, Rothko ou mesmo em Jason Anderson (que ilustrou, de resto, a capa de um single de Billie Eilish).  

«Tenho dúvidas de que haja, em Portugal, hoje, uma artista com a capacidade de expressão de Violet, com esta generosidade para nos acompanhar ao longo do dia e para nos ajudar a não fugir, a enfrentar e, por fim, a contribuir para a catarse necessária antes de adormecermos, para depois acordar em dias melhores.»

O abstracionismo em Violet não nos é estranho e entramos nas suas profundezas com facilidade quando partilhamos as inquietações e angústias que a nossa relação com os outros nos traz. Também é por isso que se torna importante ler o texto de João Biscaia que acompanha este EP e que nos traça um mapa muito preciso daquela visceralidade, caracterizando a artista na sua expressão genuína e na impossibilidade de esconder o seu universo emocional, bem como demonstra que as suas influências artísticas estão ali presentes como peças essenciais na arquitetura do tempo e do espaço. O texto é, ele também, uma afirmação contemporânea da relação entre o íntimo, o exterior e a arte, escalpelizando o que ouve, num ritmo muito próprio do objeto que descreve.

Heart/Break Hard/Core é, por isso, mais do que tudo, um poema – um poema numa selva violenta onde tantas vezes tentamos apenas sobreviver sem que o coração pare, sem sairmos derrotados e sem que nos falte a coragem para continuar a lutar contra a exploração dos nossos próprios sentimentos. É um poema que se descobre entre o átomo e o cosmos, da imensidão do espaço à penumbra da intimidade. É, por fim, um poema que se expressa nos corpos que dançam, como que expurgando as impurezas que bloqueiam as artérias. 

Tenho dúvidas de que haja, em Portugal, hoje, uma artista com a capacidade de expressão de Violet, com esta generosidade para nos acompanhar ao longo do dia e para nos ajudar a não fugir, a enfrentar e, por fim, a contribuir para a catarse necessária antes de adormecermos, para depois acordar em dias melhores.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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