Esta exposição é uma exposição de pintura. Uma afirmação que não é feita por acaso. É intencional. Num tempo em que a indisciplina entre as disciplinas, o hibridismo entre artes visuais, artes performativas, filme, música, arquitectura, design, moda é a disciplina dos nossos dias, em que os paradigmas da arte contemporânea, como a define Nathalie Heinich, se desenrola em cenários que se constroem e transmitem enquanto narrativas de excentricidades, de anedotários produzidos pelos artistas que se multiplicam nos ecos de uma crítica de arte reduzida a uma espécie de crónica e de promoção publicitária dos artistas sem colocar questões de ordem estética, poética ou até relacionadas com a história de arte, com farfalhadas embrulhadas em papel de estanho a fingir que é de prata, a prática da pintura parece um exercício anacrónico, obsoleto.
A arte contemporânea é toda uma história que se começa a desenhar na década de 50, não alheia à guerra fria cultural – tema interessante que não cabe neste texto – que revela toda a decadência das artes na sociedade de consumo em que deixa de haver lugar para as artes visuais excepto, é claro, como forma de ganhar dinheiro, um caminho que Warhol, sem ironias nem sentimentalismos, percorreu com inquietante êxito. A arte contemporânea rasura as vanguardas artísticas do modernismo que, de forma directa ou oblíqua em unidade e conflito, estavam empenhadas em transformar a vida. A febre modernista de pesquisa, de romper com a tradição de ousar tudo, de perseguir o objectivo de tornar o acto de criação um acto consciente de crítica radical do espírito burguês, do seu racionalismo estreito, de desprezo pelo seu culto pelo dinheiro, é substituída pela temperatura zero pós-moderna, de individualismo exacerbado e flutuante, da sobreposição até à amálgama indistinta da arte com a moda, com a produção de pseudo-acontecimentos alinhados pelos mecanismos publicitários em que a afirmação enfática da marca é bastante para nomear uma realidade incomparável, onde a procura de originalidade se transforma na confissão parcial de não-originalidade, mascarada pela erupção constante de novidades que se sucedem e, invariavelmente, acabam por se revelar requentadas. Tudo se normaliza e homogeneíza num espectáculo generalizado de mundanidades em que triunfa o comerciante da canção de Brecht, «não sei o que é o arroz, nunca vi o arroz, do arroz só sei o preço».
«A instituição da arte contemporânea torna-se repugnante por ocultar o seu carácter de mercado de bens de luxo por detrás da exaltação retórica de idealismo estético em que ninguém acredita»
O que sobrou para as artes visuais, para a pintura e a escultura? Regressar ao dadaísmo, não como protesto desesperado contra um mundo insuportável, sem dignidade e sem dignidade para oferecer mas para uso publicitário, porque o destino histórico dos formalismos termina sempre na utilização publicitária do trabalho sobre a forma. É a porta grande por onde entra o conceptualismo, moda corrente porque é fácil, porque até pessoas sem conhecimentos o conseguem fazer, em que a única exigência é ter ideias a que não se exige sequer que sejam boas ou brilhantes. Actualmente, a pintura, a pintura de cavalete desapareceu ou quase desapareceu, como se pode verificar, por exemplo, nos últimos anos dos prémios Turner, o que é desmentido por esta exposição de José Santa-Bárbara.
Inquietante é que desnudar, desvendar os mecanismos económicos e institucionais em que se funda a arte contemporânea não tem comprometido a sua credibilidade cultural nem a sua credibilidade comercial e mundana. Aliás, essas desmistificações, por mais sérias e credenciadas que sejam, são sistematicamente remetidas para nichos onde se espera fiquem sepultadas. Raramente ultrapassam os muros que defendem a rede de interesses económicos que domina o mercado e impõe, com arrogância ou manhosamente, os seus ditames. É o triunfo do economicismo puro e simples que, para Ariel Kolnai, não é repugnante quando procede segundo uma lógica abstracta da qual a vida está excluída. Passa a ser repugnante quando se entrincheira por detrás dos valores, da ideologia, ou seja, por detrás duma afectividade enganadora e hipócrita. A instituição da arte contemporânea torna-se repugnante por ocultar o seu carácter de mercado de bens de luxo por detrás da exaltação retórica de idealismo estético em que ninguém acredita. Uma arte contemporânea em que quanto mais indigentes são as obras mais complexos e hermeticamente «inteligentes» são os textos que as justificam, o que também explica a importância actual dos curadores e comissários, variantes do baixo clero medieval, «encarregados de uma subtil actividade de manipulação nas empresas industriais e na gestão da produção cultural (...) a sua distinção é uma forma de capital incorporado, porte, aspecto, dicção e pronúncia, boas maneiras e bons hábitos que, por si, garante a detenção de um gosto infalível o que sanciona a investidura social de um decisor do gosto (…) os mercadores de necessidades que também se vendem continuamente a si próprios, como modelo e garantes do valor dos seus produtos, são óptimos actores, apenas porque sabem dar boa imagem de si acreditando ou não no valor daquilo que apresentam e representam». (Bourdieu, Pierre; La Distinction, Editions Minuit, 1979).
«cada vez mais o valor venal de um objecto artístico é considerado o seu único valor objectivo, ou mesmo, sem confusões, o seu único valor, num tempo em que os “curadores” não devem pensar porque estão sempre entre duas actividades promocionais onde a arte é, sempre e só, mercadoria»
José Luís Porfírio
A moeda corrente da arte contemporânea é um somatório de anedotários, olhe-se para as obras dos mais celebrados e cotados artistas internacionais Koons, Hirst, Emin, por cá a Vasconcelos. Anedotas em triplicado: as contadas pelos artistas, recontadas pelos críticos, re-recontadas pelos sociólogos em que, como escreveu José Luís Porfírio, «cada vez mais o valor venal de um objecto artístico é considerado o seu único valor objectivo, ou mesmo, sem confusões, o seu único valor, num tempo em que os “curadores” não devem pensar porque estão sempre entre duas actividades promocionais onde a arte é, sempre e só, mercadoria e o público se alicia com mentiras, ou melhor (pior) não-verdades». Uma fábrica de provocações frustres procurando assombrar uma burguesia entediada com o seu próprio tédio, uma burguesia insusceptível de se escandalizar num mundo inenarrável por demasiado ligeiro, demasiado absurdo, onde nada se repete porque é meramente casual onde, dirá Kundera, «tudo está já perdoado e por isso cinicamente permitido».
Neste quadro, esta exposição de pintura é também um acto de resistência. Um espelho imaginário que é um manifesto a favor da pintura, das artes. José Santa-Bárbara pinta com ostensiva indiferença por essas correntes de arte contemporâneas, sem nunca se alhear das inquietações e das experimentações estéticas e técnicas da História de Arte. Pinta para promover a comunicação entre as pessoas. Pinta para nos mostrar o mundo que olhamos e não vemos imediatamente, começamos a ver lendo os seus quadros, os seus desenhos, as suas gravuras.
Mesmo quando pinta para ilustrar obras literárias, Memorial do Convento ou Curva da Estrada, não se limita a dar forma e cor a sucessos imaginados pelos escritores. Percorre a densidade e o imaginário dos textos para construir outro imaginário que, recusando as descrições literais, o compreende para que a visibilidade da pintura dê visibilidade ao texto, mantendo um diálogo íntimo em que, texto e pintura, não perdem autonomia. Na limite o Memorial do Convento ou a Curva da Estrada de José Santa-Bárbara até podiam ter sido anteriores aos romances, apesar disso ser uma improbabilidade completamente irrealizável. O que o artista faz é a afirmação da autarcia da pintura. Afirmação bem explícita nesta exposição em que o interessa a José Santa-Bárbara quando pinta, o que lhe interessa na pintura é a semelhança, como a semelhança faz descobrir o mundo exterior, reinventando esse mundo noutro mundo sem que o sentido e o significado da história, seja em sentido amplo ou quotidiano, se percam.
«quanto mais indigentes são as obras mais complexos e hermeticamente “inteligentes” são os textos que as justificam, o que também explica a importância actual dos curadores e comissários»
José Santa-Bárbara multiplicou a sua actividade por inúmeras áreas artísticas, pintura, escultura, design gráfico, design de equipamento sem nunca perder o norte, sejam as obras reprodutíveis ou não reprodutíveis tecnicamente, da essência da arte visual, da percepção física da imaginação, da criatividade que fazem da arte uma fonte de inspiração mas também de emancipação.
Esta exposição é a afirmação da pintura-pintura. Pintura que dispensa legendas, dispensa textos e comentários. Arte que replica o esplendor das obras expostas neste Museu1.
- 1. NE: o texto presente foi originalmente publicado para a exposição A Obra, de José Santa-Bárbara, que Manuel Augusto Araújo ajudou a organizar, a pedido do artista. A exposição acontece no Museu José Malhoa, nas Caldas da Rainha, entre 16 de Março e 19 de Maio de 2019.
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