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|literatura

A superioridade moral da pessoa que lê coisas boas

A literatura enquanto manifestação artística e cultural existirá sempre na sua vertente popular, apesar do esforço incansável para a sua elitização.

Créditos / obidosvilaliteraria.com

Como um bom mês de polémicas, agosto volta a não desiludir. As nossas elites, sempre dispostas a um bom tropel mediático, cozinharam um dos temas mais quentes do verão (hashtag). Nada que um entrincheiramento entre o bem e o mal, entre claques e cliques, não resolva num mês que tem sempre tendência para parecer entediante, mas que acaba por nunca o ser. À falta de um escândalo sexual ou de uma aldrabice na banca, teremos sempre a nossa elite cultural para nos mostrar que a herança queirosiana é algo que iremos preservar.

No início de agosto, foi anunciado o autor escolhido para representar Portugal na iniciativa Leitores da Europa – um programa da Biblioteca do Conselho da União Europeia – dedicando a edição de 2022 ao Ano Europeu da Juventude e propondo, por isso, que fossem selecionados jovens autores. A Representação Permanente de Portugal Junto da União Europeia (não tinham um título maior lá na diplomacia) selecionou o jovem Pedro Chagas Freitas, com a sua obra A raridade das coisas banais. Pouco depois de sair a notícia, e apesar do tom anódino dos jornais, os nossos literatos rebentaram com as redes sociais, gritando escândalo! e perorando pela nossa rica cultura. Pois, que vergonha, agora as pessoas lá fora, no estrangeiro, vão ler o Pedro Chagas Freitas e achar que somos todos assim, que isto é a nossa literatura. Um escândalo! É por isso que não passamos da cepa torta. Só neste país. Etecetera.

Imagino que numa breve conversa dentro dessas publicações enfurecidas e revoltadas se concluísse, rapidamente, entre argumentos mais ou menos rebuscados, de complexidade sintática ou riqueza substantiva, que o problema da escolha é Pedro Chagas Freitas e a sua conceção comercial, «a metro», da literatura. E se continuássemos a escavar, questionando se isso é um critério, iríamos receber um ainda mais irritado «aquilo é uma merda!».

«A generalidade das iniciativas ligadas ao livro são instrumentos de marketing – os prémios literários, as feiras do livro ou as apresentações. No modelo económico dominante, estas iniciativas convergem com o objetivo do lucro da editora e não com a proliferação da qualidade literária ou do génio do artista.»

Há muitos anos que ando em busca dos critérios que definem o que é boa ou má literatura. Regresso sempre, inevitavelmente, ao cânone – esse instrumento sem rosto que define o que devemos ou não ler; que define o bom e o mau gosto. Porém, no «mundo literário» português, hoje altamente dominado por grandes grupos editoriais ou editoras com boas relações com os órgãos de poder (networking), já nem o cânone é canónico. Sabemos que este foi sempre um setor de mesquinhez e disputa de território, de maledicência, de agendas e de interesses egoístas que nada têm que ver com literatura, mas com sobrevivência e mercadorização. De repente, apareceu alguém que não depende do circuito tradicional e das suas cliques para construir um negócio, não precisa de andar a alimentar cliques para se destacar no negócio do livro.

Pedro Chagas Freitas é um autor publicado por uma editora do Grupo Leya. A influência económica e cultural deste grupo é suficiente para determinar quem vende e quem não vende livros em Portugal. A preocupação de uma editora desta dimensão em capitalismo tem de ser expandir. Mas, provavelmente, algures nessa corte literária há alguém que acha que o problema reside na falta de gosto de quem o escolheu. No limite, é sempre aqui que chegamos, ao gosto.

Se esquecermos, por momentos, que estamos a falar de um grande grupo editorial, quem é que achamos que uma editora «boa», que publica «bons» autores (dentro dos critérios estabelecidos por alguém), escolheria para se insinuar a essa representação: um autor que tem tendência para o retorno comercial ou um autor desconhecido? Que critérios utilizaria? Seriam esses critérios justos e válidos?

A venda de livros é um ato de comércio e a sua divulgação está dependente do retorno comercial. Esse ato de comércio não valida, em circunstância alguma, a qualidade de um produto. A sua função não é ser o critério de qualidade. Ele é uma manifestação comercial num determinado modelo económico e não de validação da alta-cultura. A generalidade das iniciativas ligadas ao livro são instrumentos de marketing – os prémios literários, as feiras do livro ou as apresentações. No modelo económico dominante, estas iniciativas convergem com o objetivo do lucro da editora e não com a proliferação da qualidade literária ou do génio do artista.

A grande confusão que aqui se estabelece é provocada por um equívoco que se entranhou de tal forma na nossa cultura que se torna cada vez mais difícil uma interpretação de um outro ângulo. Por mais que repitamos que a cultura não pode ser sacralizada ou que a alta-cultura é uma denominação, em si, elitista, há sempre uma interjeição que nos conduz para um mundo onde se distingue o homem culto do homem inculto e onde isto é um critério de divisão entre nós (sim, mas). Nesta divisão, cresce a ideia de que as pessoas que leem (bons livros, por oposição a quem lê maus livros) serão mais conscientes do que é bom ou mau, do que é certo ou errado. A isto acresce o fetiche da inteligência: a ideia de que uma pessoa que lê é uma pessoa mais inteligente. Trago excelentes notícias, entretanto: não é. Um dia destes voltaremos aqui para demonstrar que as características para identificar pessoas inteligentes, por norma, são tentativas de limitar a nossa relação com o mundo e com as coisas – dispositivos de vaidade e de individualismo.

«[A literatura] existirá nos versos vociferados nas esquinas dos bairros, na crónica do jornal local, na redação encomendada pelo professor, nas páginas dos diários íntimos, nas divagações mais ou menos atrapalhadas de uma publicação numa rede social, nas edições de autor com o apoio da junta da freguesia, na escolha aleatória de um volume na biblioteca pública e em tantas outras plataformas e suportes que serão sempre a alternativa à exclusividade do nicho.»

A recomendação do livro de Chagas Freitas torna-se um grande escândalo dentro deste contexto económico, social e cultural. Não só se considera que há uma validação do Estado português da qualidade do escritor, como se perpetua a ideia de que a alta-cultura nos define e é o pináculo da cultura. Mas um definidor moral como este é relativo, claro, porque já não o aplicamos quando observamos coisas num grupo editorial de que gostamos, quando vamos a festivais literários para conviver com os autores do meio ao qual aspiramos ou quando um autor de que gostamos ganha um prémio economicamente relevante.

É precisamente porque nos embrulhamos nesta perspetiva que ficamos bloqueados, que já nem conseguimos distinguir entre um negócio e um instrumento de divulgação literária e, com isso, perdemo-nos em discussões espúrias, que apenas disfarçam um problema mais profundo de estímulo e de acesso à leitura, sem mediadores com interesses incompatíveis com os nossos.

Talvez seja importante regressar sempre à ideia de que a cultura não se fabrica. Ela existe enquanto os indivíduos e as suas sociedades criarem formas de convivência, de identificação, de expressão, materiais ou imateriais, que convoquem, celebrem ou purguem as várias dimensões da vida. A literatura é uma dessas formas e não está amarrada à escolha de uma fação que se autodenomina culta (uma fação que cria e desenvolve o conceito de alta-cultura). A literatura enquanto manifestação artística e cultural existirá sempre na sua vertente popular, apesar do esforço incansável para a sua elitização. Ela existirá nos versos vociferados nas esquinas dos bairros, na crónica do jornal local, na redação encomendada pelo professor, nas páginas dos diários íntimos, nas divagações mais ou menos atrapalhadas de uma publicação numa rede social, nas edições de autor com o apoio da junta da freguesia, na escolha aleatória de um volume na biblioteca pública e em tantas outras plataformas e suportes que serão sempre a alternativa à exclusividade do nicho.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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