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Belém, Palestina, 2023

Em Belém, terra da origem do cristianismo, reinarão este ano o silêncio sepulcral, a dor de milhares de famílias enlutadas, o risco permanente de ter de fugir. A Páscoa no lugar do Natal.

Créditos / Anadolu Agency

«É impossível celebrar o Natal este ano, quando o nosso povo em Gaza está a sofrer um genocídio»

(Muther Ishaq, pastor da Igreja Luterana de Belém, na Palestina)

A notícia está disponível há alguns dias, mas parece não ter encontrado eco no sistema de propaganda que molda as consciências e as mentalidades ocidentais, possivelmente porque não convém estragar o negócio: todas as igrejas cristãs de Belém, o lugar na Palestina onde, segundo a história, os mitos, a lenda e as escrituras religiosas terá nascido Jesus Cristo, decidiram este ano não festejar o Natal. Entenderam que não faz qualquer sentido celebrar em festa, com iluminações e as tradicionais manifestações de alegria, uma efeméride de paz enquanto decorre, a poucas dezenas de quilómetros de distância, o martírio de mais de dois milhões de pessoas, sujeitas a uma matança de que parece não haver memória, nem mesmo naquelas terras de tantas matanças.

A decisão foi tomada pelo conjunto de igrejas cristãs que administram os lugares santos de Belém – católica, protestantes, ortodoxas e arménia – pelo que, no lugar do primeiro de todos os natais, o Natal deste ano será assinalado apenas por liturgias religiosas. É «um acto de solidariedade com o povo sofredor da Terra Santa», uma manifestação de «luto por aqueles que foram e estão a ser massacrados», lê-se na declaração conjunta emitida pelas várias confissões cristãs responsáveis pelos lugares míticos da Terra Santa, a Palestina.

Uma atitude natural, própria de quem conserva sensibilidade e sentido de humanismo, mas que, para os que ainda sofrem de ingenuidade para surpreender-se com estas coisas, não se estende, incompreensivelmente, a toda a virtuosa civilização ocidental e cristã.

Ilusão de paz no coração da guerra

Visitei Belém pela primeira vez num dia sombrio e sob um forte nevão em Fevereiro de 1988; viviam-se então os primeiros meses da revolta popular que ficou conhecida como a «Primeira Intifada», um levantamento espontâneo dos palestinianos «do interior», os que vivem nos territórios ocupados de Israel, contra os seus carcereiros e algozes. Um movimento de raiva incontida que se iniciou em Gaza e na altura surpreendeu o mundo com o desassombro da juventude palestiniana ao resistir com pedras, fisgas e outras «armas» de ocasião contra os jipes e os tanques das tropas sionistas ocupantes.

« Entenderam que não faz qualquer sentido celebrar em festa, com iluminações e as tradicionais manifestações de alegria, uma efeméride de paz enquanto decorre, a poucas dezenas de quilómetros de distância, o martírio de mais de dois milhões de pessoas, sujeitas a uma matança de que parece não haver memória, nem mesmo naquelas terras de tantas matanças.»

A coragem dessas populações fez acordar muita gente, em todo o mundo, para a existência do drama palestiniano; gerou até algumas ondas significativas de emoção e solidariedade, nada que o aparelho transnacional de propaganda do sionismo, com a cumplicidade das redes internacionais de comunicação social – embora ainda sem um funcionamento tão orgânico como actualmente – não tenha resolvido em alguns meses. Não tardou que os ocupantes e opressores passassem a ser apresentados como as vítimas injustas da selvajaria de garotos que atingem precocemente o comportamento de adultos ao enveredarem pelo «terrorismo», isto é, o combate pelos seus direitos mais elementares.

Belém, uma pequena cidade a 15 quilómetros de Jerusalém – talvez seja mais realista chamar-lhe uma grande aldeia – reflectia a situação, uma vez que a revolta iniciada em Gaza se estendera ao conjunto dos territórios ocupados e o aparelho sionista de repressão respondia generalizando o clima de guerra. Um grande edifício aquartelado da polícia sionista, envolvido por gradeamentos, dominava uma das alas da Praça da Manjedoura, onde se situa a igreja e gruta da Natividade, enquanto jipes militares, com os pára-brisas igualmente protegidos com redes metálicas, circulavam em todas as direcções, tentando desencorajar quem tivesse mão leve para os apedrejamentos; detendo e sequestrando qualquer transeunte que o livre arbítrio próprio dos heróis cuja coragem se mede pelo número de balas disparadas considerasse «suspeito».

Cidade árabe palestiniana, na sua essência, na sua estrutura urbana – uma teia intrincada de ruas e ruelas onde a cultura milenar se funde harmonicamente com uma vida tornada mais cosmopolita através da diversidade dos cultos cristãos e do turismo de massas que lhe está associado, Belém não deixa de ser, acima de tudo, um burgo marcado pelas vicissitudes da ocupação.

Em contraponto efémero, numa visita posterior vivi o optimismo, desconfiado é certo, ainda assim propício a um tipo de vida mais distendido, reforçado com o aumento da afluência de peregrinos, durante os primeiros tempos da «autonomia palestiniana» e do chamado «processo de paz», desenvolvido a partir de 1993 e lentamente assassinado pelos Estados Unidos e Israel, com a cumplicidade da União Europeia.

«Belém não deixa de ser, acima de tudo, um burgo marcado pelas vicissitudes da ocupação.»

O desanuviamento do quotidiano foi sol de pouca dura, porque ainda antes da viragem do século nasceu o mastodôntico «muro de separação», um autêntico muro da vergonha para quem o construiu e para os governos e os meios de comunicação de todo o mundo que o toleram silenciando a sua existência, desvalorizando-a ou até justificando-a como instrumento necessário «para estabelecer a paz». Assim como há guerras «boas» ou «más», autoritarismos «aceitáveis» ou «inaceitáveis», existem também os muros malditos e outros tão justificados como úteis. E o «processo de paz» teve o mesmo destino que as resoluções das Nações Unidas sobre «o problema israelo-palestiniano», exemplo que frutifica a propósito de outros mecanismos internacionais também chancelados por respeitáveis dirigentes da «nossa civilização» para logo depois passarem a ser letra morta, como, mais recentemente, os acordos de Minsk sobre a Ucrânia.

A cidade de Belém, como muitas outras na Palestina, ficou assim cercada pelo muro, com uma única «porta» para os residentes, rigorosamente controlada, 24 horas por dia, pelos esbirros do sionismo. Em boa verdade, os habitantes de Belém vivem como cativos na sua própria cidade. Com maior ou menor intensidade, com meios repressivos e de controlo mais ou menos exuberantes, a situação concentracionária na Faixa de Gaza é replicada através da generalidade dos territórios palestinianos.

Em visita ulterior a Belém pude observar o funcionamento das estruturas que controlam os movimentos dos residentes através da única porta da cidade, especialmente as gaiolas onde grande parte dos que desejam sair e entrar são obrigados a desfazer-se das roupas e submetidos a inspecções humilhantes, próprias, naturalmente, de um regime que considera os palestinianos como «animais», todos eles culpados de «terrorismo» e, principalmente, de usurparem, há gerações, a terra que Yaveh reservou para o seu «povo eleito». E depois desse ritual repugnante, qualquer habitante de Belém que pretenda chegar ao seu local de trabalho precaríssimo, por exemplo em Jerusalém, demora uma eternidade a percorrer a dezena e meia de quilómetros porque os controlos de identificação se sucedem e se prolongam pelo tempo que os agentes de ocupação entenderem. E tudo se repete no regresso de cada um a sua casa, altas horas da noite, para recomeçar muito cedo na madrugada.

Longa é a distância

A enorme distância entre a realidade de Belém, «berço do cristianismo» de acordo com as doutrinas canónicas, e o mundo da chamada «civilização cristã e ocidental», é muito, mas mesmo muito mais do que geográfica.

A questão palestiniana tornou-se um verdadeiro divisor de comportamentos, exposto agora com maior crueza pela chacina e a limpeza étnica a decorrerem em Gaza. O mundo ocidental cristão está a celebrar o Natal como se Gaza não existisse. Não se trata de uma questão de as famílias se mortificarem, ou deixarem de assinalar a data como desejarem, mas recomendar-se-ia, pelo menos nas mensagens de âmbito social, informativo e institucional, religioso ou não, um pouco de decoro, algum respeito pelas origens e significado das celebrações.

É verdade que o Natal espiritual, pacificador, sensível e humanista há muito deixou de existir, se é que alguma vez existiu, sacrificado à ganância do mercantilismo sem freios, à ostentação de posses, aos discursos políticos vazios, repetitivos, hipócritas, às idiotices dos pais-natal da Coca-Cola e outras divagações sem nexo, mas todas elas orientadas para amealhar nesta época o dinheiro que a sucessão de crises não permite atafulhar nas contas das empresas durante o resto do ano. Chamam-lhe a festa da família, mas sabemos muito bem que vivemos numa sociedade onde a família é pretexto e invocação para todas as preocupações e salamaleques oportunistas, enquanto a maioria delas pena cada vez mais sob as dificuldades do dia-a-dia e as agressões sucessivas que os poderes, inchados de «espírito cristão» ou aparentado, contra elas cometem.

«É verdade que o Natal espiritual, pacificador, sensível e humanista há muito deixou de existir, se é que alguma vez existiu, sacrificado à ganância do mercantilismo sem freios (...).»

A enxurrada de mensagens publicitárias, que competem entre si pela pregação do luxo, da aparência e da abastança, descarregada, por exemplo, num intervalo de uma qualquer reportagem sobre a situação em Gaza é um fenómeno abjecto que diz muito – se nisso se quiser reflectir – sobre a degradação do ambiente social, a venalidade moral e cultural dos poderes, a insensibilidade perante os dramas humanos que se passam sempre «lá longe»; enfim, a substituição anestésica da crua realidade por uma ficção opulenta com amplitude generalizada, mas que apenas pode materializar-se nas mãos e contas bancárias de uns escassos milhares.

Silêncio sepulcral

Bacalhau, peru, bolo rei, filhoses, doces conventuais ou mais prosaicos, jogos de computador e brinquedos caros, muitos deles simulando o uso de armas, não faltarão em muitas casas do «cristianismo ocidental», embora a maioria delas, provavelmente, não possam acolher tantas e tão mercantilizadas «tradições». Esta associação das armas às brincadeiras das crianças e ao espírito natalício parece, aliás, fruto do respeito por um cuidadoso princípio: não afiançam os nossos humaníssimos governantes que para alcançar a paz é preciso fazer a guerra? Então é aconselhável, sem sombra de dúvida, que a mentalização comece quase no berço.

«Chamam-lhe a festa da família, mas sabemos muito bem que vivemos numa sociedade onde a família é pretexto e invocação para todas as preocupações e salamaleques oportunistas, enquanto a maioria delas pena cada vez mais sob as dificuldades do dia-a-dia e as agressões sucessivas que os poderes, inchados de «espírito cristão» ou aparentado, contra elas cometem.»

Em Belém, terra da origem do cristianismo, porém, reinarão este ano o silêncio sepulcral, a dor de milhares de famílias enlutadas, o risco permanente de ter de fugir e esconder-se das armas dos soldados, da ira raivosa e fundamentalista de um qualquer esquadrão da morte composto por colonos.

As cerimónias serão tristes, dominadas pela angústia, sentimentos de perda e insegurança. Em vez da alegria do nascimento, um silêncio sepulcral. A Páscoa no lugar do Natal.

Pouco ou nada disso terá repercussões no cristianismo bem instalado e farto da actualidade, mitificado em massivos e arregimentados festivais hipócritas onde muito se fala de paz, fraternidade e igualdade entre os povos enquanto, de lés a lés, prosseguem cruzadas sangrentas, o racismo é um hábito de prática diária e há povos com mais direitos, divinos ou terrestres, que outros e cuja afirmação se processa quase sempre na boca dos canhões, quando não nas ogivas dos mísseis.

Numa das minhas visitas à Igreja da Natividade, em Belém, fui acompanhado por um sacerdote católico, um palestiniano desta cidade que me mostrou os sinais de degradação do edifício, por falta de obras e de meios para as realizar. Não eram lamentos, esses estão guardados para mais uma chacina numa qualquer aldeia das vizinhanças, para novos e sucessivos funerais segundo rituais cristãos e muçulmanos; entre os palestinianos perseguidos e sem pátria essas diferenças de índole religiosa nada são e nada representam. Palestinianos cristãos, muçulmanos ou ateus são acima de tudo palestinianos, seres humanos despojados dos mais elementares direitos.

Perante as evidências de ruína aqui e ali, em diferentes secções do modesto e tão simbólico templo, perguntei ao sacerdote se o clero dos lugares santos não poderia contar, por exemplo, com apoios financeiros – algumas esmolas, digamos – do Vaticano ou de Fátima, onde abundam a riqueza e a ostentação. Não me respondeu directamente; era «apenas um simples padre» palestiniano que «cuida das almas» dos que podem frequentar aqueles lugares e da subsistência dos símbolos do «cristianismo primitivo».

No subsolo da igreja visita-se a Gruta da Natividade, o espaço simples, modesto, bem cuidado onde a lenda, os mitos, a história, a imaginação e a memória do povo da região situa o estábulo onde terá nascido Jesus Cristo. Em boa verdade, e ao contrário da grandiosidade da basílica de São Pedro, em Roma, e das megalomanias gananciosas de Fátima, é possível a um não crente sentir naquele simples, silencioso e acanhado espaço, despido de adereços em ouro ou qualquer coisa que se pareça, a carga emotiva, o apelo ao recolhimento e reflexão, um desejo entranhado de paz associados aos primeiros passos do cristianismo explicados em narrativas milenares.

O Natal que entre nós se celebra nada tem disso; e defender a paz de forma consequente, isto é, ir além das palavras vazias e hipócritas, tornou-se praticamente proibido ou um comportamento sujeito a rajadas de acusações e insultos.

Evocar nas mensagens oficiais e nas prédicas religiosas cristãs desta época a tragédia sangrenta de Gaza, na Terra Santa, desejar «a esperança em que uma mulher grávida dê à luz um filho vivo, num hospital, e não uma criança morta, diante de um posto de controlo militar», como escreveu o poeta palestiniano Mahmmud Darwish, seria um pequeno mas muito simbólico gesto para nos devolver, ainda que por uns instantes, ao ambiente são, sensível, humanista e pacifista de Belém, na Palestina. Caso contrário, os dignitários cristãos que tomaram a decisão de não festejar e não engalanar o Natal de Belém, em sinal de luto pelas vítimas da nakba, holocausto ou matança na Faixa de Gaza, não passarão de uns despropositados estraga-natais. Mais desconcertante ainda, isso dir-nos-á que «a cristandade» e a sua autoinduzida vocação civilizacional se esqueceram, há muito, dos caminhos de Belém; terra que, interpretando os sinais dos tempos, está muito mais perto de ser arrasada do que louvada.

Ignoro se a jornalista e escritora norte-americana Caitlin Johnstone é católica, protestante, evangélica, judia, muçulmana, budista, agnóstica, ateia. O que interessa isso? Sei apenas que deixou uma mensagem para este Natal, geograficamente distante mas sintonizada com o espírito realista, despido de hipocrisias, que será adoptado em Belém. «Não vou desviar o olhar» de Gaza, promete. «Não vou desviar o olhar, porque mesmo na minha impotência para ajudar ainda tenho o poder de testemunhar (…) Por mais insultos e acusações que me façam por não desviar o olhar, não vou desviar o olhar (…) Não importa quantas razões os propagandistas e manipuladores inventem para me obrigarem a olhar para outro lado, não vou desviar o olhar.»

Se muitos milhões de pessoas através do planeta guardarem uns momentos para fazer o mesmo e contribuírem para travar os tormentos na Faixa de Gaza e em toda a Palestina, então este Natal terá valido a pena porque ajudou a cumprir desejos que, restaurando o espírito de Belém, na Terra Santa, dizem estar-lhe associados.

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