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O rumor da guerra

O retrato que esta obra de cinema faz e o olhar que constrói dependem de um rigoroso trabalho formal que densifica para aclarar. Eis o ruído confuso das muitas vozes de uma guerra.

Fotograma do filme Okraina, de Boris Barnet
Fotograma do filme Okraina, de Boris BarnetCréditos

Na singular transição para o cinema sonoro ocorrida na União Soviética, Okraina («Subúrbios», 1933) ocupa um papel de relevo. É esta importância artística e histórica que justificou o destaque da sua apresentação no Festival de Berlim de 2012 numa nova cópia. Foi o primeiro filme sonoro realizado por Boris Barnet e tornou-se uma das suas obras mais reconhecidas, embora talvez menos conhecida do que U samogo sinego morya («À Beira do Mar Azul», 1936).

«Ele é alemão, e depois? É um sapateiro como nós.»

Ivanovich, em Okraina

Okraina dá a ver e a ouvir os efeitos económicos e sociais da Primeira Guerra Mundial numa pequena povoação anónima do Império Russo, próxima da qual se desenvolve uma frente de guerra. A precisão do retrato atento da vida quotidiana é combinado com a expressividade de um olhar histórico sobre as relações entre classes. Os operários sapateiros decidem unir-se numa greve para combater as condições em que trabalham — ruídos graves e estridentes pontuam a sequência numa contenda de formas. Rapidamente são reprimidos com violência — o som seco dos cascos dos cavalos e os gritos intensos saturam este momento. Depois, estala o conflito militar entre os impérios Alemão e Russo. Petrovich (Sergey Komarov) perde o amigo alemão, Robert Karl (Robert Erdman, um germano-báltico), com quem joga às damas. Os jovens sapateiros são vestidos e armados como militares ao serviço do czar, empurrados para uma batalha que não sentem como sua. Os prisioneiros de guerra alemães não tardam em chegar à povoação. Anka, uma rapariga russa, envolve-se com um deles, outro sapateiro feito soldado, que será violentamente agredido por russos, sapateiros feitos soldados. Ivanovich (Aleksandr Chistyakov), ainda abalado pela notícia da morte do seu filho mais novo e do internamento do mais velho, é que acaba por o defender: «Ele é alemão, e depois? É um sapateiro como nós.»

«O filme discute o significado do conceito de patriotismo, contrastando-o com o nacionalionalismo burguês, ligando a oposição de classes no interior de uma nação à hostilidade entre as nações»

O sentido humanista, de defesa da paz entre povos, é construído com apuro estético, nomeadamente através da justaposição entre imagens visuais e imagens sonoras, para utilizar os termos de Sergei Eisenstein. Ainda com claras limitações técnicas, os elementos sonoros eram tendencialmente empregues de forma contrapontual em relação aos elementos visuais no cinema soviético. Procurava-se a autonomia das componentes sonoras e das componentes visuais e a sua combinação, em vez da subordinação das primeiras às segundas por meio da sincronia. A influente declaração sobre o som assinada por Eisenstein, Vsevolod Pudovkin, e Grigori Aleksandrov em 1928 tinha argumentado a favor desta prática, com vista ao desenvolvimento das potencialidades da montagem cinematográfica. Com o contributo decisivo de Leonid Obolenski como sonoplasta, Okraina contrapõe, por exemplo, os sons das máquinas dos sapateiros a trabalharem aos das metralhadoras dos soldados a disparem. Após o início da guerra, um representante do poder czarista celebra um acordo com o dono da fábrica de calçado para a produção massiva de botas militares a baixo custo. Os seus risos afrontam o trabalho intenso dos operários, que cortam, pregam, cosem, colam, limam, furam, numa sucessão de instantes que dão força ao esforço empregue em cada uma destas tarefas. O título dado ao filme nos EUA, aquando da sua estreia em 24 de Setembro de 1933, foi The Patriots («Os Patriotas»). E, de facto, o filme discute o significado do conceito de patriotismo, contrastando-o com o nacionalionalismo burguês, ligando a oposição de classes no interior de uma nação à hostilidade entre as nações. Quando soldados russos atiram uma bota para o outro lado do conflito, esse gesto é seguido da queda de uma bota no chão da fábrica. Os trabalhadores transpõem fronteiras, aproximam-se, apertam as mãos, abraçam-se, internacionalizam a solidariedade, unindo-se contra uma guerra alimentada com a sua exploração. Os bolcheviques apelam à fraternidade para com os militares estrangeiros e o Governo Provisório decide mandar fuzilar como traidores todos aqueles, como Nikolai (Nikolai Bogoliubov), que se recusam a combater. Passo a passo, pessoa a pessoa, abre-se o caminho para a Revolução de Outubro, que só chega no fim. Atirado à terra solta, Nikolai abre os olhos e liberta um sorriso para a celebrar.

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Neste percurso, o filme nunca abandona os detalhes dos pequenos gestos, mesmo quando a câmara se afasta para mostrar várias personagens. A claridade de cada gesto é encadeada com a do desenvolvimento histórico, recorrendo ao enlevo poético, ao humor perspicaz, ao drama pungente, tal como nas peças de Anton Chekhov. Serge Daney considerava Okraina um dos melhores filmes sobre o dia-a-dia na Rússia pré-revolucionária, chamando a atenção para o uso das omissões narrativas, do sentido de implícito, mas também para os efeitos cómicos dignos do grande cinema burlesco. Okraina escapa ao naturalismo pela sua criatividade. O suspiro falado de um cavalo cansado de puxar carroças, que surge logo nos primeiros minutos, é apenas um exemplo. O retrato que esta obra de cinema faz e o olhar que constrói dependem de um rigoroso trabalho formal que densifica para aclarar. Eis o ruído confuso das muitas vozes de uma guerra.

Okraina será mostrado a 26 de Setembro, às 19h, na Sala M. Félix Ribeiro, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema. A sessão integra o ciclo «Pela Curiosidade Total: Homenagem a Jean-Loup Passek e ao Museu de Cinema de Melgaço», em colaboração com a Câmara Municipal de Melgaço.

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