|José Goulão

A doce cartinha de Rutte ao «querido Donald»

O que fica destes episódios humilhantes é a certeza de que somos governados por indivíduos e indivíduas mesquinhos, traiçoeiros e sem carácter. Que rastejam perante o padrinho desta máfia sem limites, mas são uns valentes quando se trata de desprezar as pessoas e os seus povos.

CréditosKoen Van Weel / EPA

Em boa hora o rei da NATO escolheu o cidadão holandês Mark Rutte como secretário-geral da Aliança, para substituir o sombrio norueguês Stoltenberg.

A Europa, a América e o «mundo livre» só ficaram a ganhar com a troca. Rutte trouxe cor e floreados ao cargo, numa NATO que já estava saturada do discurso burocrático, insípido, inspirado na linguagem de caserna do falcão e trabalhista norueguês.

Rutte não é nada disso. Ele veio demonstrar, uma vez empossado como funcionário número 1 da aliança, que o cargo pode ser desempenhado de maneira muito diferente e sentida. Rutte explica a arte de prestar vassalagem com alegria, emoção e gratidão. Ensina-nos a rastejar com estilo e elegância. Isto é, demonstra que pode fazer-se o que sempre se fez na sua posição, quando se dirige ao bom padrinho das Américas, com sensibilidade e até com ternura, sem temores, nem dores de barriga. Ir de joelhos a Washington é duro, mas não há recompensa e glória sem sangue e sacrifício.

Algo que ninguém «se atreveria a fazer»

A história poderia passar despercebida, devido à modéstia do ex-primeiro-ministro holandês, para quem a pátria é a NATO e deus é americano. No entanto, o verdadeiro chefe da aliança, o mega-empresário da construção civil e presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, não aceitou que tão grande manifestação de afecto para com a sua pessoa, que o carteiro lhe entregou, ficasse no recato das excelsas submissões.

Como é habitual, Donald Trump recorreu às redes sociais para que o maior número de pessoas, não só da América e da Europa, mas de todo o mundo, ficassem a conhecer a devoção de Mark Rutte. A privacidade da correspondência é coisa caída em desuso, como nos ensinaram os Estados Unidos, e o seu presidente não hesitou em divulgar a cartinha que tinha acabado de receber do secretário-geral da NATO. E que este fez o favor de escrever em nome dos países da organização. Estejam os leitores descansados, porque todos ficámos representados em tão oportuno preito de vassalagem.

Não pode dizer-se que Trump tenha ficado impressionado com Rutte da mesma maneira que se sentiu tocado quando foi apresentado a al-Julani, o terrorista que sequestrou a presidência da Síria: «jovem, atraente e viril», apreciou, na ocasião.

À primeira vista percebe-se que Rutte não é muito dotado destes atributos. Mas sobram-lhe ternura, emoção e dedicação para tentar enternecer o coração do chefe.

«Como é habitual, Donald Trump recorreu às redes sociais para que o maior número de pessoas, não só da América e da Europa, mas de todo o mundo, ficassem a conhecer a devoção de Mark Rutte. A privacidade da correspondência é coisa caída em desuso, como nos ensinaram os Estados Unidos, e o seu presidente não hesitou em divulgar a cartinha que tinha acabado de receber do secretário-geral da NATO.»

 

Numa época em que as comunicações pessoais se baseiam na escrita telegráfica, desinteressante e depurada dos emails, e nas mensagens cifradas dos SMS, Rutte optou pelo tradicional, retro e romântico método da cartinha. Os seus talentos epistolares, hoje em dia apenas ao alcance dos predestinados, os que cultivam o digital, mas não esqueceram o analógico, chegam a ser comoventes.

«Senhor Presidente, querido Donald», começa a missiva. «Felicitações e agradecimentos pela tua acção decisiva no Irão, algo verdadeiramente extraordinário e algo que ninguém podia, jamais, atrever-se a fazer». 

E mais escreveu: «Donald conduziu-nos a todos a um momento muito, muito importante para América, a Europa e o mundo».

Dizem os cidadãos mais desconfiados, aqueles que desdenham, por vício, da opinião única, definidora do lado dos bons e da razão, que o feito «extraordinário» do presidente norte-americano, ao estabelecer um cessar-fogo com o Irão, se deveu, de maneira prosaica, ao facto de ter percebido, muito depressa, que iria entrar numa guerra nada curta e conveniente, com resultados bastante incertos. 

Além disso, não necessitou de recolher muitas informações para deduzir, em três tempos, que o seu amigo e aliado, o carrasco Benjamin Netanyahu, incapaz de se ver livre do Hamas e do Hezbollah, estava outra vez em maus lençóis. Meteu-se com o tubarão, julgando que era sardinha. Nem o Irão se rendia, nem o regime caía. Pelo contrário, os golpes vibrados no território e na arrogância de Israel, nada tinham de superficiais. 

Os mais prestigiados analistas militares de Israel foram, aliás, muito rápidos a lançar apelos lancinantes ao governo e às forças armadas para se apressarem a alcançar um cessar-fogo. Cedo perceberam que mais esta aventura militar em que o sionismo se meteu, transformada em guerra de atrito, poderia não acabar bem. O célebre «escudo de ferro» antiaéreo, afinal é de latão. Além disso, as bases do Irão parecem mais fortes do que se supunha. E Trump ficou aterrado com as primeiras respostas do mercado de hidrocarbonetos aos rumores sobre o encerramento do Estreito de Ormuz. Que se acabe a guerra, mandou o imperador, embora saibamos que o assunto não ficará por aqui. Como é indispensável dizer-se, falta sustentabilidade à suspensão do conflito.

«A Europa irá pagar-te EM GRANDE»

Os combates pararam, Trump recolhe os louros, Netanyahu canta vitória e Mark Rutte, em nosso nome, não lhes pode estar mais grato. «Conseguiu o que NENHUM presidente fez em décadas», escreveu na missiva. Um pormenor de bom aluno: Rutte não se esqueceu de realçar palavras completas em maiúsculas, como costuma escrever o chefe nas suas mensagens – um sinal da esmerada educação que o distingue.

A gratidão do secretário-geral não tem fim, e ele faz questão de manifestá-la com promessas assumidas em nome de todos nós. «A Europa irá pagar-te em GRANDE, como deve, essa será a tua vitória».

Ai vai pagar, vai, porque os nossos governantes amam os negócios da guerra e dispõem, como querem, das contas bancárias dos contribuintes. Vai pagar EM MUITO GRANDE, até. Cada um de nós irá desembolsar a respectiva fracção de pelo menos 15 mil milhões de euros do cheque que Montenegro, sem precisar de nos consultar, já começou a passar. Investir na morte é lucro garantido, dir-se-á.

«[Donald Trump] não necessitou de recolher muitas informações para deduzir, em três tempos, que o seu amigo e aliado, o carrasco Benjamin Netanyahu, incapaz de se ver livre do Hamas e do Hezbollah, estava outra vez em maus lençóis. Meteu-se com o tubarão, julgando que era sardinha. Nem o Irão se rendia, nem o regime caía. Pelo contrário, os golpes vibrados no território e na arrogância de Israel, nada tinham de superficiais.»

 

«São trocos», apressou-se a dizer aquela que poderá ser considerada, entre nós, a decana, ou mesmo a bastonária da ordem do comentariado. E aproveitou para zurzir o mesquinho chefe do governo espanhol, Pedro Sánchez, por ainda ter a dignidade de pôr o seu país a salvo dos tais 5% do PIB, destinados a pagar «a vitória de Trump». E que este, desprendido como é, utilizará para nos abastecer com fantásticas máquinas de morte, compradas a preços de novas nos saldos dos refugos da indústria imperial de armamento. Tudo isso é indispensável para a nossa «defesa», para a nossa «segurança», diz a NATO. Lembrem-se das advertências do perspicaz Almirante vindo do fundo dos mares: temos de nos precaver, porque os bárbaros russos estão a chegar e, se não capricharmos, quando cá estiverem já será tarde. Se assim é, 5% deve ser pouco. Mais valia perder o amor a 10%, ou 15%, liquidar de vez a educação pública, o Serviço Nacional de Saúde e outras coisas desnecessárias quando sobre nós paira, como sempre, a «ameaça russa», agora reforçada com o «perigo amarelo».

Sánchez atreve-se a não contribuir com os sagrados 5%, «mas vai pagar o dobro», assegura o imperador Trump, o fiscal do funcionamento da democracia liberal. Para Sanchez e os espanhóis aprenderem que têm de sofrer pesadas consequências por teimarem no capricho de cultivar velharias, como a dignidade e a coluna vertebral. 

A Espanha «é terrível», «é irritante», acusou Trump. Não se desafia assim a «ordem baseada em regras». Sánchez foi até mais longe na heresia, e atreveu-se a dizer que os gastos feitos pela Espanha para a NATO já são suficientes. O país está seguro e, ao mesmo tempo, pretende preservar o Estado social. «ESTADO SOCIAL?» Quem se permite falar nisso, nestes tempos da democracia neoliberal? Maus exemplos como o do chefe do governo espanhol não podem ficar impunes. Trump, o seu serviçal Rutte, os governos da NATO e a direita apátrida espanhola – que não descansa enquanto não derrubar o executivo –, não o permitirão.

«Mais valia perder o amor a 10%, ou 15%, liquidar de vez a educação pública, o Serviço Nacional de Saúde e outras coisas desnecessárias quando sobre nós paira, como sempre, a "ameaça russa", agora reforçada com o "perigo amarelo".»

 

Os Estados Unidos de Trump não chegam a gastar 4% para a NATO, mas isso deverá compreender-se. O papel de polícia do mundo exige despesas muito mais elevadas em tarefas que o país executa sozinho, ao desempenhar a sua missão filantrópica global «defensiva», para o bem de todos nós.

Com delicada sensibilidade, Mark Rutte esforça-se para que Trump não desampare a Europa e a NATO, o que deve ler-se nas entrelinhas da sua epístola. Ele compreende que, para «fazer a América grande de novo», o presidente terá de assumir opções susceptíveis de obrigar o Velho Continente a ficar mais por sua conta, o que há muito desaprendeu.

O «comprometimento» custa 5%

Rutte sabe também que, para o actual presidente dos Estados Unidos, a utilidade da Europa é a mesma que um rolo de papel higiénico. Compete-lhe limpar os dejectos que os Estados Unidos deixaram na Ucrânia desde 2014, e já não é pouco.

Ciente da orfandade que ameaça este lado de cá do Atlântico, Rutte engendrou uma barganha e, para isso, alimenta a esperança de que a velha vassalagem das colónias europeias ainda seja capaz de polir o ego do imperador, talvez amansar a fera.

O próprio secretário-geral da NATO desvendou um pouco a sua ideia, antes da cimeira da organização, em Haia. «Trump está comprometido com a NATO», disse ele, quando todos sabemos que, pelo menos até agora, o que o presidente dos Estados Unidos tem dito e feito é em sentido contrário. 

O trunfo na manga de Rutte é o de garantir, em troca desse «comprometimento», os 5% do PIB de todos os Estados membros, para financiar o orçamento da aliança e aliviar, assim, a carga norte-americana. De maneira a que tudo regresse aos bons velhos tempos da absoluta tutela colonial. Isto é: os países da NATO pagarão cerca de três vezes mais caro pelas tropas, os mísseis, as bombas e o (decadente) know-how militar dos Estados Unidos. Ser uma colónia está a tornar-se uma comodidade cada vez mais dispendiosa.

«Cada um de nós irá desembolsar a respectiva fracção de pelo menos 15 mil milhões de euros do cheque que Montenegro, sem precisar de nos consultar, já começou a passar.»

 

 

Acreditamos que, ainda a bordo do «Air Force One», de regresso a Washington, Donald Trump teve novas ideias e tomou decisões contrárias aos seus «compromissos» assumidos em Haia. É assim que gere o império: hoje sim, amanhã não, depois de amanhã talvez. E todos marchamos, bem comportados (com excepção de Sánchez, a ovelha ronhosa), enjoados, por um arriscado caminho sinuoso e que vai sendo desbravado à beira de um abismo, que pode ser existencial.

Rutte pode escrever-lhe cartinhas delicodoces para lhe polir a vaidade. Costa pode oferecer-lhe, com vénias tão deslumbradas como basbaques, a camisola de Cristiano Ronaldo. Trump precisa de adulação como de ar para respirar, gosta de graxa, mas despreza os graxistas. O seu «comprometimento» com a NATO será o mesmo de antes da cimeira de Haia, mas assegurou que os súbditos serão generosos no momento de liquidar o dízimo imperial. Essa foi a sua vitória.

O que fica destes episódios humilhantes é a certeza de que na União Europeia, na NATO, nos nossos países, somos governados por indivíduos e indivíduas mesquinhos, traiçoeiros e sem carácter. Que rastejam perante o padrinho desta máfia sem limites, mas são uns valentes quando se trata de desprezar as pessoas e os seus povos.

A sabujice de Rutte não é uma característica pessoal. Afecta todos os comparsas da Europa e da NATO, com a já citada excepção. Os outros talvez não tenham, porém, os seus dotes epistolares para exercitar em cartas a que o chefe dará o destino habitual das coisas inúteis e desprezíveis.

Salvé democracia liberal.

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