|risco

Accenture: moderadores de conteúdo violento abandonados sem apoio à saúde mental

São estas as pessoas que fazem a moderação das tuas redes sociais. Os trabalhadores da Accenture são expostos diariamente a conteúdos de grande violência, com 30 minutos mensais com um «coach» sem certificação, para compensar.

Piquete de greve dos trabalhadores da Accenture, em Miraflores 
Créditos / CESP

Em 2024, a Accenture ficou em sexto lugar no ranking da revista Fortune e da organização Great Place to Work (melhor lugar para trabalhar). A multinacional norte-americana, com sede na Irlanda, emprega cerca de 775 mil trabalhadores em todo o mundo, prestando serviços de consultoria e informática a milhares de empresas, tendo registado, só em 2024, receitas que ascendem aos 64,9 mil milhões de dólares,

À vista desarmada, a Accenture aparenta ser um oásis num deserto de empresas com práticas repressivas e exploratórias mas, por trás da fachada, milhares de trabalhadores, mal pagos, são expostos a conteúdos violentos sem qualquer apoio por parte da empresa. O AbrilAbril acompanhou uma das várias concentrações realizadas por trabalhadores da Accenture que aderiram às greves parciais de 2 a 6 de Junho, no pólo de Miraflores, convocada pelo Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal (CESP/CGTP-IN).

Antigos trabalhadores da Accenture descrevem o tipo de conteúdo que são obrigados a ver, diariamente, nas redes sociais: pornografia infantil, decapitações, violência gráfica, contra pessoas e animais, violações...

Uma questão nunca deixou de ser referida por todos os trabalhadores com quem o AbrilAbril falou. Embora a Accenture os obrige a assinar termos de confidencialidade, não podendo divulgar o conteúdo dos vídeos e imagens a que assistem diariamente (e muito menos as empresas para as quais prestam serviços de moderação), os trabalhadores podem expressar livremente as consequências que esta profissão acarreta.

Inês Curto, trabalhadora da Accenture, identifica rapidamente o problema: «isto é uma profissão [moderação de conteúdo nas redes sociais] relativamente recente no mundo, está pouco regulamentada» e o resultado é que, sem reconhecimento na Lei, os trabalhadores acabam a ser «explorados e abusados pelas empresas que nos contratam para fazer estes serviços».

«Nós não recebemos subsídio de risco», refere outro colega, o Gonçalo. Para além de não serem compensados devidamente pelo exercício de funções com implicações sérias na sua saúde mental (o AbrilAbril conhece o caso de dois ex-trabalhadores que desenvolveram psicopatologias associadas ao exercício desta profissão, que solicitaram o anonimato), os trabalhadores têm apenas direito «a um apoio by the book». Outros profissionais, como é o caso da polícia, têm programas inteiros dedicados a salvaguardar a saúde mental dos trabalhadores.

«O apoio psicológico garantido pela empresa é, na minha opinião, uma fraca gestão de danos. Nem sequer é equiparado a um apoio psicológico certificado», explica este trabalhador. Cátia Martins, delegada sindical do CESP/CGTP-IN na Accenture, ilustra o abandono a que são votados os trabalhadores: o acompanhamento é de 30 minutos mensais obrigatórios com um coach sem acreditação clínica.

«Não é suficiente para o tipo de trabalho que fazemos», expostos diariamente, vários dias por semana, à análise minuciosa de imagens e vídeos de casos de pornografia infantil, decapitações, violência gráfica (contra pessoas e animais) ou violações que, de uma forma ou de outra, foram parar às redes sociais. O problema não fica por aí. Sem um salário decente, os trabalhadores da Accenture não têm condições financeiras para suportar os custos de apoio psicológico, acrescenta a delegada sindical.

Trabalho especializado a salários de saldo

Poucos minutos depois da 14h, no dia 5 de Junho, a Inês sai do seu local de trabalho e pega num dos cartazes disponibilizados por activistas do CESP, juntando-se ao piquete de greve. Tem participado activamente nas várias acções de luta e protesto que vão ganhando expressão na empresa. Embora ocupe o mesmo posto de trabalho há quatro anos, não tem vínculo directo com a Accenture – é subcontratada, muito embora «os lucros astronómicos» sejam mais do suficientes para garantir um contrato formal e directo.

Inês destaca a política de baixos salários em vigor: «recebemos muito mal, muito mal», refere, ainda para mais tendo em conta que «o trabalho em si é especializado». «Estamos agora no terceiro ano em que praticamente não houve aumentos, o último aumento, só para algumas pessoas, foi de 3%, o que não acompanha sequer a inflação». Também o subsídio de alimentação não foi alvo de qualquer reforço desde que entrou, há quatro anos, na Accenture.

Gonçalo, por seu lado, que trabalha há dois anos e meio na Accenture, confirma as afirmações da colega. «Grande parte de nós trabalha com conteúdos de risco, em turnos altamente desgastantes para a vida pessoal e familiar» e, ainda assim, o vencimento de base «está a aproximar-se do salário mínimo nacional». A Accenture atribui um subsídio por trabalhar com língua estrangeira, francês, italiano ou espanhol, que ajuda a complementar os salários, «mas quem trabalha em português não recebe esses bónus».

A rotatividade, segundo a Inês, é «terrível». «Estão sempre a entrar pessoas, sempre a sair pessoas». Muita gente não aguenta mais de três meses. 

O seu colega acrescenta alguns motivos para as portas giratórias na empresa. «São condições muito precárias, altamente desgastantes e que não se justificam perante os lucros e a dimensão desta empresa», afirma Gonçalo. Às más condições de trabalho no edifício de Miraflores e aos salários baixos, este trabalhador acrescenta o desrespeito demonstrado pela empresa contra o sindicato. A Accenture «recusa-se sequer a reconhecer a nossa representação sindical, que é outra coisa bastante grave, gosta de se vangloriar como o Best Place to Work e de aderir a iniciativas de inclusividade, etc... mas a verdade é que não é reconhecido o direito básico dos trabalhadores a se organizarem e a negociarem».

Para a Accenture, a «aprendizagem contínua» é o «superpoder» da empresa. Não está ainda apreendida a lição sobre os direitos sindicais em Portugal

De entre os vários trabalhadores com quem o AbrilAbril falou nesse dia, Cátia Martins, eleita delegada sindical do CESP/CGTP em Novembro, é quem está há mais anos na empresa: pouco mais de sete. Já tinha conhecimento da pressão que a Accenture aplica sobre o sindicato, mas só agora experienciou, em primeira mão, os bloqueios da empresa.

Com uns recursos humanos sediados na Argentina, num fuso horário completamente diferente (menos 4h) dos de Portugal, a empresa pode dar-se ao luxo de ignorar os emails enviados pela delegada sindical – «só quando o contacto é iniciado pelos advogados do sindicato é que respondem».

«A empresa bloqueia a actividade sindical», afirma, peremptório, Ricardo Mendes, da direcção nacional do CESP. Temos uma estrutura sindical que «não pode exercer a sua actividade sindical noutros espaços de trabalho da Accenture», nas Amoreiras, em Santos, em Paço d'Arcos. Não é sequer permitido ao sindicato «entrar nesses locais para afixar o pré-aviso de greve, algo que a Constituição define como um direito constitucional», denuncia.

A administração justifica esta restrição ao direito sindical dos seus trabalhadores com o facto de «ter aqui clientes internacionais e que há uma confidencialidade no trabalho que aqui é executado» – independentemente disso, refere, ainda é a «Constituição que impera em Portugal».

Neste momento, o CESP e os trabalhadores estão a recorrer a todas as instâncias menos aquela que é a mais evidente: o contacto directo dos sindicatos com o patronato, na mesa negocial. O dirigente sindical dá o exemplo do que acontece «no chamado Edifício 1, no piso 3, que tem condições muito más de insalubridade, com ares-condicionados que não funcionam e que já provocaram problemas respiratórios aos trabalhadores». O sindicato foi obrigado a recorrer à Autoridade para as Condições no Trabalho (ACT) e à comunicação social para expor o caso, denunciar algo «que é de incundência da empresa».

Sem uma mudança nas políticas antitrabalhistas da Accenture, o mais cero é que se voltem a repetir estas acções de luta. Para uma empresa que vive tanto da sua imagem pública, pode ser preocupante que cada vez mais trabalhadoras como a Inês Curto assumam uma posição de combate contra uma das maiores empresas no planeta – «Tenho muito orgulho de estar aqui a lutar pelo que está certo».

Tópico

Contribui para uma boa ideia

Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.

O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.

Contribui aqui