|Demétrio Alves

O colossal apagão trará luz para se ver melhor o que é transição ecoliberal?

Começando por uma síntese conclusiva: este apagão é claramente uma consequência da transição energética, que, feita sob o pretexto climático, serve prioritariamente os interesses neoliberais. Por isso a designo como transição ecoliberal.

CréditosNuno Veiga / Agência Lusa

Para além da colossal quantidade importada devido aos interesses económicos das grandes empresas privadas eléctricas, o resto, em Portugal, estava, ontem, a ser produzido em centrais solares e eólicas, que não têm qualquer capacidade de auto-regulação da frequência. 

Uma das razões de um tão longo período para a reposição de todo o serviço, pode ser deduzida das declarações do administrador da REN, ontem prestadas, às 18h30: só têm duas centrais com contrato para restaurar o sistema (Tapada do Outeiro a gás natural e Castelo de Bode, hidroeléctrica de albufeira)! Acrescentou que estariam (agora) a pensar contratar mais uma. No próximo ano!

Se estivéssemos numa gestão feita através de empresas públicas, não haveria este tipo de problema, porque o objectivo principal não seria a maximização do lucro, mas, antes, a soberania, a sustentabilidade, a fiabilidade e a segurança do sistema energético português. E, não obstante, o preço final para os consumidores seria mais baixo.

Vamos, então, ver o que se passou, em traços muito largos.

No início houve uma queda da potência/produção no sistema eléctrico de Espanha, tendo a rede eléctrica espanhola (REE) entrado em sub-frequência (49,844 Hz). Aconteceu isto cerca das 11h33, hora em Portugal, ou 12h33, hora espanhola.

Dá-se, então, um corte de quatro linhas transfronteiriças entre Espanha e França às 11h38 e, logo a seguir, (microssegundos), desligam-se as linhas com Portugal.

Em Espanha, em pouco tempo, a produção total passou de 33 GW (gigawatt) para 8,5 GW:

  • De 19,6GW para 4,9 GW de produção solar (baixa enorme)

  • A produção eólica passou de 2,9 GW para 2,3GW;

  • A produção nuclear passou de 3,4 GW para 0 GW - por questões de segurança;

  • De 2 500 MW para 80 MW de produção hídrica;

  • De 1200 MW para 432 MW de produção hidroeléctrica a fio de água;

  • De 2 200 MW para 420 MW de produção de gás natural.

 

Com mais detalhe, a sequência em Espanha (horas de Espanha, ou seja, + 1 hora do que cá):

  • Às 9h, a produção excedia a carga (linha de consumo) em 103%: estavam 738 MW a serem escoados/exportados/armazenados/bombar (ainda era fácil fazê-lo);

  • Às 10h, a produção excedia a carga em 119%: 5,1 GW a serem escoados/exportados/armazenados/bombar (já estava a ficar mais complicada a gestão do sistema!), parte da exportação era para Portugal; 

  • Às 11h30, a produção excedia a carga em 129%: 7,4 GW e, assim, passou a ser difícil escoar/exportar/armazenar/bombear, o excesso da produção; 

  • Às 11h45, a produção excedeu a carga em 130%: 7,5 GW, passando a ser impossível escoar electricidade num país como Espanha aquela hora solar! (A rede torna-se, portanto, muito instável e o mais pequeno soluço nos equipamentos pode determinar o blackout);

  • Exactamente quatro minutos antes do apagão, às 12h30, a produção excedia a carga em 128%: 7,2 GW e dá-se o desastre!

Na universidade sempre ensinaram que a primeira regra para gerir/explorar uma rede eléctrica é equilibrar, em cada instante, o consumo com a produção.

Pode haver quem diga que «é bom produzir porque, na pior das hipóteses, há a bombagem, exportação e o armazenamento»! Mas, ontem e àquela hora, em Espanha, não havia provavelmente utilizadores/compradores suficientemente interessados para comprarem todo o excesso. Por isso a electricidade fica tão barata nesses períodos, o que leva as empresas a desligarem as suas produções e a comprarem barato para, depois, venderem a electricidade acumulada nas barragem com reversibilidade, isto nas horas dos preços altos. Puro negócio!

Com 7,5 GW de produção excedentária está-se numa situação que é de enorme falta de controlo para uma rede como a de Espanha, sobretudo numa altura em que todos os produtores têm demasiado sol e vento para vender! O mercado tem andado a brincar com o fogo, fazendo-o com os reguladores a verem e com os governos a aplaudirem...a transição. Simultaneamente, as grandes empresas eléctricas, entretanto privatizadas, fazem colossais lucros e procedem a saborosas distribuições de dividendos aos accionistas. 

«Ontem e àquela hora, em Espanha, não havia provavelmente utilizadores/compradores suficientemente interessados para comprarem todo o excesso. Por isso a electricidade fica tão barata nesses períodos, o que leva as empresas a desligarem as suas produções e a comprarem barato para, depois, venderem a electricidade acumulada nas barragem com reversibilidade, isto nas horas dos preços altos. Puro negócio!»

 

Como hipótese explicativa do acidente, aconteceu o seguinte: numa rede com uma grande proporção de produção renovável no seu mix, e por se tratar de uma produção «intermitente e inevitável por dogma político-administrativo»… acaba por a sua permanência ser mesmo irrecusável para o equilíbrio da rede, não havendo, porém, mecanismos inerciais de auto-regulação suficientes nestas tecnologias. É um círculo vicioso!

E, diz-se inevitável porque a fotovoltaicas e a eólica têm de estar sempre ligadas à rede… por contrato e, também, porque não são «despacháveis», isto é, não há possibilidade técnica de as estar a ligar e desligar de uma forma modulada. Assim, deste ponto de vista, o apagão era previsível, e houve especialistas que, em diversos países, escreveram e falaram nisso previamente.

Em 4 de Março último, o primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez, na La Moncloa, dizia: «Não haverá apagões de electricidade nem racionamento de garrafas de butano, nem nenhuma dessas cenas apocalípticas que são evocadas nos meios de comunicação social.»

A frequência da rede caiu 150 mHz numa parte das redes europeias, o que não é um valor elevado, mas o apagão teve grandes dimensões, principalmente em Portugal.

É sabido que uma queda brusca na frequência indica que existe uma perda de produção e um desfasamento com o consumo solicitado. Isso começou em Espanha e o disparo das interligações com França e Portugal sucederam-se.

A REE reportou «uma oscilação súbita nos fluxos de potência que originou a separação da rede de Espanha da rede da Europa.» A rede ibérica ficou isolada em ilha e foi caindo como um castelo de cartas.

A «baixa inércia natural» existente em Espanha na altura do incidente, e em Portugal também, devem-se ao facto de as enormes potências eléctricas eólica e a solar PV estarem ligadas ao sistema por inversores tipo grid following, que «não fornecem inércia e são muito sensíveis a oscilações de tensão». Quando os inversores grid following representam mais de 75% da produção os sistemas se tornam os sistemas «incontroláveis». Ou seja, há problema real porque, a partir de uma oscilação inicial, a enorme potência renovável, principalmente a fotovoltaicas, entra em desequilíbrio, o que conduz a que, após o incidente (uma borboleta a voar por perto), uma grande parte da solar fotovoltaico se desliga.

«É sabido que uma queda brusca na frequência indica que existe uma perda de produção e um desfasamento com o consumo solicitado. Isso começou em Espanha e o disparo das interligações com França e Portugal sucederam-se.»

 

 

Note-se que, em Espanha, onde teve início o acidente, houve uma grande descida nas produções. Mas, em França, que se desconectou de Espanha, com os seus grupos nucleares a desligarem automaticamente por segurança, e, também, na Alemanha, que se desligou, não houve uma significativa baixa no abastecimento eléctrico. Contudo, em Portugal, logo após ter-se desligado de Espanha, entrou em APAGÃO TOTAL. Em Portugal, a dimensão do acidente foi muito maior do que em Espanha.

Numa determinada fase do processo houve uma tentativa de o Governo português explicar o acidente com um ataque cibernético. O que foi desmentido, até pela própria Comissão Europeia. Depois, surgiu uma tentativa de explicação que apontava para «fenómenos atmosféricos invulgares», tipo variações súbitas da temperatura das linhas, mas há especialistas europeus que rejeitam essa teoria.

É expectável que os tecnocratas ligados ao modelo de mix energético massivamente baseado na fotovoltaicas e eólica, venham defender novas «aprendizagens» e novas «tecnologias», do tipo: passar a publicar-se online a inércia do sistema como faz a Fingrid na Finlândia, ou «promover rapidamente a adopção no sistema Ibérico de inversores do tipo "grid forming"», ou, ainda, a «adoptar um novo Serviço de Sistema de tipo "Fast Frequency Reponse"», e, também, «adoptar a adoção de Condensadores Síncronos na rede Ibérica para aumentar a inércia do Sistema e a Potência de Curto Circuito em nós relevantes da rede».

«Deve recordar-se que a formação dos preços no mercado grossista diário da electricidade é feita na base da conhecida metodologia marginalista, boa para os investidores e privados produtores, mas com as consequências que se conhecem para os consumidores finais.»

 

Ou seja, todas as «novas soluções» significarão dezenas de milhões de euros extra, em cima das centenas de milhões indispensáveis para o reforço das redes de transporte e distribuição, e mais outras centenas de milhões para um colossal parque de baterias de armazenamento eléctrico. Tudo pago, obviamente, ou pelos consumidores, ou pelos contribuintes (quando se trata de subvenções ao investimento das empresas privadas) ou, o mais certo, pelos dois géneros de pagantes. Ao mesmo tempo, destroem dezenas de milhares de árvores para instalarem em milhares de hectares novas fotovoltaicas e eólicas!

A tudo isto há que somar a conhecida «desregulação» do mercado eléctrico que tem de ser compensada com os «PPA's estruturados através de CfD's com garantia soberana». Estes instrumentos de engenharia financeira podem vir a impor ao sistema mais custos indesejáveis do tipo dos CIEG que, aliás, perduram parcialmente. Corre-se, de facto, o risco de se originarem custos tão elevados como foram os CIEG's nos seus tempos áureos, que resultaram das tarifas garantidas (FIT – Feed in Tarifs), se forem arquitectados para satisfazer os investidores. Isto é, apenas assegurando a manutenção de condições financeiras para a realização do investimento em renováveis, sem atender às necessidades gerais e colectivas do sistema.

Depois, deve recordar-se que a formação dos preços no mercado grossista diário da electricidade é feita na base da conhecida metodologia marginalista, boa para os investidores e privados produtores, mas com as consequências que se conhecem para os consumidores finais.

Faça-se luz!

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