No passado dia 10 de Junho, dia de Camões, um grupo de atores, ao chegar ao teatro Cinearte, foi violentamente agredido por um conjunto de indivíduos que saíam de uma manifestação neofascista. Um deles, o protagonista do espetáculo, foi hospitalizado. O espetáculo que estaria em cena nessa noite, Amor é um fogo que arde sem se ver…, sobre a vida e obra daquele que é consensualmente considerado o poeta maior da língua portuguesa, era de entrada livre, por se tratar do dia 10 de Junho, e porque a Barraca faz serviço público. Não houve apresentação do espetáculo, que divulga e homenageia Camões. O grupo agressor deixou no local do crime propaganda onde se podia ler «Portugal aos Portugueses», com Z.
A indignação e a solidariedade com as vítimas do ataque surgiram rapidamente e justamente, de instituições culturais, do sindicato dos seus trabalhadores, de alguns representantes e partidos políticos – embora não todos. E ainda tivemos direito a mais uma pérola de Carlos Moedas, que equiparou a violência «dos extremismos de direita e de esquerda». Ouvimos ampla condenação dos responsáveis diretos, os agressores, e justos pedidos de célere apuramento e condenação destes elementos — dos mesmos grupos e organizações de extrema-direita que o anterior governo tratou de apagar do Relatório Anual de Segurança Interna.
Um conjunto de organizações marcou duas manifestações de solidariedade para o próximo domingo, dia 15 de Junho, em Lisboa, Coimbra, Porto, Beja e Funchal; a ministra do Desporto, Juventude e Cultura, (ou tutti-frutti), condenou o que considerou ser «um ataque à liberdade de criação», enquanto Carlos Moedas pediu mais polícias.
E é precisamente depois de ter lido todas estas coisas que me parece que condenar os agressores diretos pela violência é imprescindível, manifestar solidariedade com as vítimas é fundamental, mas sabe a pouco.
As organizações que o-anterior-governo-que-é-quase-igual-a-este-governo apagou do RASI precisam da ignorância, do medo e do obscurantismo para ganhar adeptos e força para o seu discurso de ódio e práticas violentas. Têm, por isso, responsabilidades por criar o caldo de cultura onde estas organizações florescem todos os autores da política de direita das últimas cinco décadas, tenham eles as siglas que tiverem. Os autores da normalização da violência e do ódio fascista, com a equiparação repetida ad nauseam dos extremismos de direita e de esquerda, ou do nazismo e do comunismo, no Parlamento Europeu, por exemplo. Têm-na os órgãos de comunicação social dominante na promoção de ideias xenófobas, racistas e fascizantes, como as propaladas por João Martins no Observador – um dos agressores deste ataque n'A Barraca, que teve direito a púlpito no jornal este ano, apesar de ser um dos condenados pelo assassinato de Alcindo Monteiro. Têm responsabilidade todos os que, consciente e organizadamente, desinvestem na escola pública e no direito à cultura, todos os que tentaram criminalizar o protesto, ou o usufruto da cultura em coletivo durante a epidemia de covid-19. Têm-na todos os governos de PS, PSD, CDS e os seus sucedâneos IL e Chega, que todos os dias agem para que estejamos mais isolados, desconfiemos do outro e deixemos que o medo nos subjugue.
«As organizações que o-anterior-governo-que-é-quase-igual-a-este-governo apagou do RASI precisam da ignorância, do medo e do obscurantismo para ganhar adeptos e força para o seu discurso de ódio e práticas violentas.»
Maria do Céu Guerra disse em entrevista no dia seguinte: «O que queremos é que se cumpra a Constituição.» A mesma Constituição que, no seu artigo 46.º - Liberdade de Associação, na alínea 4, estipula que «não são consentidas associações armadas, nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista». A mesma constituição que IL, Chega, PSD, CDS e PS já se puseram de acordo sobre a necessidade de alterar.
Mas esta mesma Constituição, que a directora da Barraca exigiu corajosamente que se cumprisse, é a que garante no seu artigo 78.º:
«1. Todos têm direito à fruição e criação cultural (…)
2. Incumbe ao Estado, em colaboração com todos os agentes culturais:
a) Incentivar e assegurar o acesso de todos os cidadãos aos meios e instrumentos de ação cultural, bem como corrigir as assimetrias existentes no país em tal domínio;
b) Apoiar as iniciativas que estimulem a criação individual e coletiva, nas suas múltiplas formas e expressões, e uma maior circulação das obras e dos bens culturais de qualidade.»
A Barraca, grupo que há décadas substitui o papel do Estado na promoção desta garantia de todos à livre fruição e criação cultural, foi um dos agentes culturais que o último concurso de apoio bienal sustentado à criação de teatro da Direcção-Geral das Artes deixou sem apoio, porque, apesar de ser elegível pela pontuação atribuída, estava «esgotado o montante do apoio». Montantes miseráveis, decididos, no caso deste concurso, ainda pelo governo do PS, para atribuir a estruturas que fazem o que o Estado não faz. Mas este não foi sequer o único ano em que a Barraca ficou de fora do apoio. Apoio que não podemos supor que este governo vá aumentar, quando olhamos para o que fez o anterior-que-é-quase-igual-a-este, já em gestão, ao ter ido a correr garantir autorização da Comissão Europeia para aumentar ainda mais a despesa com a guerra sem que conte para o déficit, despesa que em 2024, já tinha atingido 1.58 % do PIB.
«A Barraca, grupo que há décadas substitui o papel do Estado na promoção desta garantia de todos à livre fruição e criação cultural, foi um dos agentes culturais que o último concurso de apoio bienal sustentado à criação de teatro da Direcção-Geral das Artes deixou sem apoio (...).»
O valor total no último Orçamento do Estado consignado à Cultura (de que o apoio à criação é apenas uma pequena parte) foi de 0,2% do PIB. Curiosamente, este esmagamento da possibilidade de criar e imaginar outros mundos possíveis, e o total incumprimento da obrigação constitucional que cabe ao Estado, não parece preocupar esta ministra da Cultura-e-diversos, como aliás não preocupou nenhum dos anteriores responsáveis da tutela. A ministra considerou, e bem, a inadmissível violência como um ataque «à liberdade de criação», mas e os sucessivos valores miseráveis consignados à cultura nos Orçamentos do Estado dos governos da política de direita, são o quê? E deixar grupos como a Barraca sem qualquer tipo de apoio do Estado para cumprirem a função que este não cumpre é o quê? Que polícia chamamos para nos defender nessas ocasiões?
É pôr, como o Brecht pôs os seus heróis a dizer, nós não queremos só migalhas. Queremos o pão inteiro, exigir não sermos agredidos nos nossos locais de trabalho e que os agressores sejam condenados, não chega. Falta, como muito bem fez a Maria do Céu, exigir que se cumpra a Constituição. No fim das organizações que perfilham a ideologia fascista, na garantia da livre criação e fruição culturais, no combate a todas as formas de discriminação, na promoção do bem-estar e qualidade de vida do povo e da igualdade real.
O PCP decidiu marcar para o próximo dia 26 de Junho uma Marcha para «Cumprir a Constituição», que divulgou querer que fosse «Uma Marcha de combate e resistência, mas também de liberdade e democracia (…) organizada pelo PCP mas aberta a todos». Que bom que era se todos os que precisamos da lei fundamental e do seu cumprimento lá estivéssemos, para não jogar só à defesa a limpar o caldo já entornado, para exigir o pão todo, em vez de só as migalhas!
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