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Numa simulada fuga para a frente através da qual pretendem responder, como uma panaceia para todos os males, ao trauma do Brexit, à deterioração da credibilidade interna, à teimosia da crise em banho-maria e à insignificância da influência nos assuntos internacionais, as instituições europeias continuam a definir metas sem solidificar as transições.

Arrastando-se num aparente fatalismo suicida, a União Europeia persiste em repetir erros sem olhar para as misérias que preenchem a sua história, nem delas retirar lições e ilacções. Sem necessitarmos de embrenhar-nos nas patranhas míticas dos «pais fundadores», que verdadeiramente correspondiam ao objectivo de transformar a Europa numa réplica capitalista decalcada dos Estados Unidos da América – e de que o federalismo de hoje traduz um seguidismo reajustado aos dogmas neoliberais –, basta-nos recuar duas décadas e meia para identificar situações de deriva oportunista que só poderiam degenerar no caos presente – o qual, portanto, não é obra do acaso. As transformações que arrastaram os povos europeus para os efeitos perversos e antidemocratas do Tratado de Maastricht; os mecanismos ditatoriais disfarçados nas linhas e entrelinhas do Tratado de Lisboa; a imposição da moeda única no topo dos «critérios de convergência» movidos por intenções escravocratas; os alargamentos determinados por ambições neocoloniais, que não hesitaram sequer na destruição terrorista e sangrenta da Jugoslávia e em servir-se do restauracionismo fascista, trouxeram a União Europeia primeiro até à famigerada «crise» e depois ao descalabro presente, que vinha já no ventre daquela.

Este quadro de anarquia, confusão e crise, porém, apenas contradiz o discurso oficial e propagandístico da União, que não os verdadeiros objectivos da sua existência e da sua prática; por sua vez escondidos dos cidadãos mediante uma estratégia não oficialmente assumida, logo clandestina.

«O caminho que continua a balizar-se em direcção ao verdadeiro e único objectivo (...) é o da instauração do federalismo.»

 

O caminho que continua a balizar-se em direcção ao verdadeiro e único objectivo, a instauração plena da anarquia económica e financeira correspondente à definição, sem sofismas, do conceito de «livre mercado», é o da instauração do federalismo.

É verdade que a palavra não se lê e ouve amiúde; tão-pouco é possível detectá-la nas declarações e documentos oficiais da eurocracia. Nunca admitir a existência de objectivos federalistas na estratégia em desenvolvimento é uma regra de ouro tacitamente respeitada por responsáveis encartados da União. A propaganda de tal objectivo continua a ser apenas um adorno semântico das inflamadas arengas «europeístas» pregadas por elites bem-pensantes, em correlação impossível com princípios como a salvaguarda dos direitos humanos, a plenitude da democracia e a fraternidade entre os povos. E assim, por ínvios caminhos, iremos encontrar o federalismo como suprassumo do «europeísmo» libertador, irmanados no berço da mais desumana escravocracia e ao longo de um percurso onde se escondem da opinião pública os reais objectivos, as verdades e os desfechos que possam ensombrar o belo discurso democrata e humanista cultivado pela União Europeia.

Que não se acusem, porém, os dirigentes europeus de estarem envolvidos nesta mistificação. Eles não seguem nem assumem o federalismo: apenas enunciam medidas que possam supostamente consolidar a União Europeia, transmitir-lhe um dinamismo económico e financeiro competitivo com outros blocos mundiais e assegurar-lhe um papel determinante nos mecanismos de tomada de decisões de âmbito global. Se essas medidas correspondem a passos federalistas consumados, já não é um problema deles. Coincidências sempre houve; e políticas de factos consumados também.

A mais elaborada dessas coincidências recentes – e que poderá ficar para a história como o momento em que a União Europeia deu novo passo no caminho do federalismo, ainda e sempre de maneira encapotada, foi o discurso sobre o estado da União proferido pelo presidente da Comissão Europeia em Setembro de 2017. Tratou-se de um documento invulgarmente doutrinário para os hábitos dos eurocratas, com orientações estratégicas na perspectiva de 2025, uma espécie de novo grande salto em frente sem inquietações de maior com o que para trás ficou desconjuntado, afinal quase tudo.

Jean-Claude Juncker não proferiu uma única vez as palavras «federalismo» ou «federalista». Logo a seguir, porém, não faltaram palavras saudando entusiasticamente o seu discurso «sólido», «inteligente» e, sobretudo, «astuto», elogios esses soltados das bandas e correntes mais fervorosamente «europeístas», logo federalistas.

«Vale isto por dizer que os "europeístas" impenitentes (...) não vêem qualquer inconveniente em que a federalização se processe por cima e contra os povos»

 

Como na altura se disse, o presidente da Comissão não tinha condições nem estatuto para assumir isoladamente uma comunicação com este conteúdo, que só pode resultar de congeminações conciliares de personalidades, entidades e círculos mais ou menos encobertos que põem e dispõem na e da União Europeia.

Como é próprio do funcionamento da União, o tipo de proclamação feita por Juncker e as correspondentes reacções oficiais, oficiosas ou amestradas já não permitem interpretá-la como uma fonte de sugestões ou propostas. Transporta um conteúdo dogmático impondo medidas cuja aplicação poderá ser, a prazo, mais ou menos polémica, porém, indiscutível, inquestionável e à prova de qualquer eventual obstáculo que surja fazendo funcionar o que resta de democracia.

Não é por acaso que o adjectivo «astuto» tenha sido aplicado ao discurso de Juncker e logo por uma personalidade como Francisco Assis, europeísta e federalista fervoroso, militante acima de qualquer suspeita do partido único conhecido como «bloco central» ou «arco da governação».

Recorda-se que entre as medidas a impor citadas por Juncker estão, por exemplo, a criação do cargo de ministro europeu da Economia e Finanças. E também de um «Serviço Europeu de Inteligência», isto é, uma superpolícia política e de espionagem continental alegadamente subordinada ao pretexto canónico: o combate ao terrorismo, fenómeno ambivalente pelo qual também são reconhecidamente responsáveis algumas potências europeias e da NATO envolvidas nas guerras de agressão conduzidas pelos Estados Unidos.

Dois meses depois da homilia de Juncker, em Novembro, 23 membros da União Europeia assinaram a PESCO, sigla anglo-saxónica para Cooperação Permanente Estruturada ou, muito simplesmente, a «Europa da Defesa». Na prática, um subproduto federalista europeu da NATO, a subordinação de uma união militar de âmbito continental à doutrina agressiva do Pentágono. A aplicação do termo «Defesa» a esta estrutura, no mesmo léxico em que a NATO diz cumprir apenas uma doutrina «defensiva», nunca ofensiva, expõe a articulação das duas entidades ou a «complementaridade» da Pesco em relação à Aliança Atlântica, como explicou o secretário geral atlantista, Jens Stoltenberg, durante o acto de assinatura da «Europa da Defesa», em pleno Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros da União. O governo português não figura entre os signatários originais da Pesco – restando agora saber quanto tempo dura este assomo de dignidade e independência nacional, ou se é disso que se trata.

Existindo já uma espécie de ministro dos Negócios Estrangeiros da União Europeia – o Alto Representante da UE para a Política Externa e de Segurança –, uma moeda única, um banco central e uma união bancária; passando a existir um Ministério da Economia e Finanças da União, uma estrutura de «Defesa» e uma polícia de espionagem federalizada, constata-se que a construção da Europa federal já vai avançada, e logo nas áreas neoliberais mais estratégicas: políticas monetária, económica e financeira; políticas externa, de defesa, de segurança e de espionagem.

«No ano de 2017, em plena Europa dita da democracia e das liberdades, deram-se mais alguns passos decisivos no sentido da liquidação da democracia e da erradicação das liberdades.»

 

Pode deduzir-se que o resto virá por acréscimo; o mais importante está feito, contemplando precisamente as estruturas económicas, monetárias e financeiras unificadas, protegidas por ampla cobertura nas áreas da segurança interna, repressão e espionagem, política externa, expansão e rapina, através da polícia e do exército federais, sendo este um braço da NATO.

Vale isto por dizer que os «europeístas» impenitentes, incluindo os românticos e mais progressistas que ninguém, projectando-se no paraíso de uma «Europa de povos federados», não vêem qualquer inconveniente em que a federalização se processe por cima e contra os povos, pelos imperadores da economia, os magnatas da especulação e respectivos protectores encarregados da repressão de índole ditatorial, da espionagem, das guerras e do expansionismo. E que tudo assim continue até à federalização total, mecanismo da exploração absoluta e global dos povos como estado supremo do «mercado livre», o capitalismo sem leis nem regras; talvez fiscalizado apenas pelos nossos bem conhecidos reguladores de faz-de-conta.

De que modo foram auscultados os cidadãos europeus sobre estas transformações profundas que se reflectem, como nenhumas outras, nas suas vidas quotidianas e implicam a perda de parcelas fulcrais da nacionalidade, soberania, privacidade, liberdade e intervenção democrática? Tanto quanto foram auscultados na adesão à União, à moeda única, à união bancária, à perda da autonomia orçamental, ao Tratado de Maastricht, ao Tratado de Lisboa, etc., etc. Isto é, nada. No paraíso da democracia representativa, que assim se apresenta a todo o mundo, nem que para isso seja necessário multiplicar guerras de agressão e violar desde os direitos humanos ao direito internacional, a vontade dos cidadãos não conta para nada.

No ano de 2017, em plena Europa dita da democracia e das liberdades, deram-se mais alguns passos decisivos no sentido da liquidação da democracia e da erradicação das liberdades. Em nome da «libertação do mercado», que se dará como plenamente satisfeito – e livre – numa sociedade escravocrata federal, enfeitada por um lote sortido de direitos formais para todos os gostos e proveito de poucos.