O Kansas é um estado do centro-oeste dos EUA, principalmente agrícola, solidamente Republicano, e um dos estados mais conservadores1. Foi portanto com surpresa que, no final da semana passada, os organizadores de um comício em Wichita, a maior cidade do Kansas, se depararam com o rápido esgotar de bilhetes e se viram forçados a encontrar um novo local, capaz de albergar as quase 5000 pessoas previstas. O comício iria reunir dois auto-proclamados «socialistas democráticos», o senador Bernie Sanders, de Vermont —o ex-candidato presidencial do Partido Democrata que em 2016 galvanizou um eleitorado jovem e progressista e ameaçou a candidatura primária de Hillary Clinton— e a jovem Alexandria Ocasio-Cortez.
Ocasio-Cortez, activista de 28 anos, foi responsável por um dos resultados mais inesperados das eleições primárias de 2018, a caminho das eleições para o Congresso em Novembro deste ano. Havia já participado na campanha primária de Sanders, em 2016. Em 2017 anunciou a sua candidatura no círculo natal do Bronx, onde desafiou o Democrata Joe Crowley, membro da Casa de Representantes (CR) desde 1999, presidente da conferência de Democratas na CR e visto como sucessor de Nancy Pelosi, a líder da minoria Democrata na CR. Ocasio-Cortez enfrentava a candidatura oficial do partido, apoiada pelo Governador, Presidente da Câmara, congressistas, e um cofre de campanha milionário – gastou 18 vezes mais que Ocasio-Cortez.
O socialismo surge no discurso eleitoral
Durante a campanha, Ocasio-Cortez defendeu: serviços de saúde para todos; ensino superior público gratuito; uma reforma do sistema judicial e o fim da guerra contra a droga; um salário mínimo nacional de USD$15/hora (o actual é USD$7/hora); um programa federal de garantia de emprego; abolição da Agência de Imigração e Serviços Aduaneiros (ICE); criticou as forças de defesa de Israel; apelou à solidariedade com Puerto Rico; etc., tudo elementos do programa dos Socialistas Democráticos da América. Questionada frequentemente sobre o que significava socialismo para ela, Ocasio-Cortez contestava: «numa sociedade moderna, moral e rica, nenhuma pessoa deve ser demasiado pobre para viver». Em entrevista à Vogue, respondeu assim:
«Quando falamos sobre a palavra socialismo, penso que o que significa de facto é apenas participação democrática na nossa dignidade económica, social e racial. É representação directa e as pessoas terem de facto algum poder sobre o seu bem-estar económico e social. Para mim, socialismo significa garantir um nível básico de dignidade. É afirmar o valor de dizer que a América que queremos e a América de que temos orgulho é uma onde as crianças tenham acesso a uma educação com dignidade. Uma onde nenhuma pessoa seja demasiado pobre que não tenha os medicamentos que precisa para viver. É dizer que não serão violados os direitos civis de nenhuma pessoa. E é também dizer que precisamos de realmente examinar as desigualdades históricas que têm criado muitas das desigualdades – tanto económicas e sociais e justiça racial – porque estão entrelaçadas. Esta ideia de raça ou classe, é uma falsa escolha. Mesmo que se queira separar essas duas coisas, não se pode, estão intrinsecamente e inextricavelmente associadas. Não há nenhuma outra força, nenhum outro partido, nenhuma outra ideologia que esteja a afirmar os elementos mínimos necessários para ter uma vida digna da América».
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dos nomeados Democratas ao Congresso têm filiação ou apoio nos chamados «grupos insurgentes»
No final de Junho, Ocasio-Cortez venceu as eleições primárias com mais 15% que Crowley. Dado o círculo ser predominante Democrata, é provável que Ocasio-Cortez seja eleita em Novembro, tornando-se a Congressista mais jovem de sempre. Mesmo que tivesse sido apenas um acto isolado da vitória de uma candidatura que se afirma socialista, dado o quadro político dos EUA, este já seria um evento notável, muito embora partindo de bairros multi-étnicos e pobres da cosmopolita cidade de Nova Iorque. Mas mais algumas vitórias de progressistas parecem espelhá-lo, como a de Kara Eastman, que derrotou o congressista Democrático nas primárias de um distrito do Nebraska; ou, Ben Jealous, o mais jovem presidente do NAACP, organização de direitos civis, que ganhou a nomeação para Governador do estado de Maryland; ou Deb Haaland que ganhou a nomeação num distrito do Novo México e poderá tornar-se a primeira congressista nativa-americana. Como estes exemplos também ilustram, as eleições primárias têm sido também notáveis pelo crescimento de candidaturas (e vitórias) de mulheres e de minorias, no decurso da vitória de Trump e derrota de Hillary Clinton.
«estou a candidatar-me ao Congresso porque os bilionários e grandes corporações têm demasiado controlo sobre o nosso governo»
Brent Welder, advogado sindical e candidato
Embora ainda limitado a nível nacional, o número de candidatos à esquerda vêm-se impondo. O New York Times contabilizou recentemente um sexto dos nomeados Democratas ao Congresso (53 dos 305 candidatos) como tendo filiação ou apoio nos que refere como «grupos insurgentes», que têm apoiado desafios aos Democratas actualmente no Congresso, grupos como o Partido das Famílias Trabalhadoras, a Campanha pela Mudança Progressista e o Nossa Revolução.
O Partido Democrata, que espera reconquistar a maioria no Congresso em Novembro, tem resistido aos candidatos progressistas, procurando por vezes candidatos mais ao centro, que considera terem melhores condições para ganhar as eleições gerais. Mas quando Sanders e Ocasio-Cortez falaram no Kansas não foi sobre o xadrez político, mas sim sobre o direito à saúde, os direitos civis e das mulheres, a justiça económica para os trabalhadores, ou seja, o reverso dos ataques anti-sindicais e anti-laborais apoiados pelos irmãos Koch2. Nativos de Wichita, estes bilionários têm gasto fortunas a influenciar as eleições, incluindo cerca de USD$400 milhões nas eleições intercalares de 2018.
«acredito que qualquer estado deste país onde os trabalhadores estejam a lutar é um estado preparado para lutar pela justiça»
Bernie Sanders, no comício de Wichita, no Kansas
Brent Welder, tendo uma plataforma semelhante à de Sanders e Ocasio-Cortez, afirmou no comício de Wichita: «Estou a candidatar-me ao Congresso porque os bilionários e grandes corporações têm demasiado controlo sobre o nosso governo. Como defensor dos direitos dos trabalhadores e advogado laboral, tenho passado a minha carreira a lutar contra as grandes empresas que manipulam a economia contra os trabalhadores e a nossa comunidade.». Afirmou Sanders no evento: «Quer se viva em Vermont, no Bronx ou no Kansas, está-se indignado com a situação onde três pessoas neste país têm mais riqueza que a metade mais pobre. Acredito que qualquer estado deste país onde os trabalhadores estejam a lutar é um estado preparado para lutar pela justiça». O alcance destes ventos de progresso poderão ser ainda limitados, mas são refrescantes.
- 1. Nota (necessariamente longa) do editor: O título escolhido pelo autor para o seu artigo sobre as candidaturas anti-sistema no Partido Democrata – incluindo aquela que disputa o conservador estado do Kansas – é rico em significados. A Dorothy do título é Dorothy Gale, heroína do mundo mágico de Oz retratado nos romances infantis de Lyman Frank Baum. Aparece pela primeira vez em O Maravilhoso Feiticeiro de Oz (The Wonderful Wizard of Oz, 1900) e reaparece na maioria dos romances do ciclo. Dorothy vive com os tios numa quinta no Kansas, de onde se evade para visitar o mundo de Oz, mas acabando por regressar à sua terra. O personagem celebrizou-se com a interpretação de Judy Garland no musical O Feiticeiro de Oz (The Wizard of Oz) na adaptação do romance ao cinema em 1939 – considerado um dos melhores filmes de sempre. Baum foi contemporâneo da crise capitalista americana da década de 1890, simpatizava com os trabalhadores industriais e com os agricultores, apoiou as sufragistas e o Partido Populista, que nessa altura desafiou o tradicional sistema bi-partidário americano. Uma leitura atenta do texto e das ilustrações de W.W. Denslow (que era cartoonista político) revela, segundo diversos autores, uma metáfora política em defesa do simples cidadão americano, que seria simbolizado pelo personagem de Dorothy (damos aqui a seminal interpretação de Henry Littlefield).
- 2. Charles e David Koch são os patrões da Koch Industries, um dos maiores grupos industriais e a segunda maior empresa privada dos EUA. Os irmãos Koch financiam largamente grupos de reflexão (think thanks) ligados à direita americana.
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