Tal como em 2020, as actividades agendadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para o «Abril Vermelho» são condicionadas pelo contexto da pandemia de Covid-19.
O movimento, que tomou a decisão de promover as medidas sanitárias em defesa da vida, recorre a formas «criativas de actuação», sem abdicar de duas questões fundamentais: a homenagem aos 21 trabalhadores rurais assassinados, em 1996, por agentes da Polícia Militar em Eldorado do Carajás, no estado do Pará; reivindicar a reforma agrária popular.
Num país em que os trabalhadores rurais, na sua luta pela terra, tiveram de fazer frente a grande violência e à impunidade associada, o Massacre de Eldorado do Carajás possui forte carga simbólica. Como forma de homenagem aos trabalhadores assassinados e àquilo que representam, 17 de Abril passou a ser o Dia Internacional da Luta Camponesa – uma data escolhida pelas organizações que compõem a Via Campesina.
Numa entrevista ao portal do MST, Ayala Ferreira, membro da direcção nacional do movimento e do Coletivo Nacional de Direitos Humanos do MST, relembrou a brutalidade do massacre no Pará, falou da impunidade, das acções previstas para o «Abril Vermelho» e da situação no campo brasileiro, por falta de políticas do governo federal à agricultura camponesa e familiar.
Extrema violência e impunidade
Sobre o massacre perpetrado há 25 anos na «curva do S», em Eldorado do Carajás, no Pará, a dirigente destacou a «violência extrema». Além das 21 pessoas mortas – «dez das quais executadas já rendidas» –, 69 foram mutiladas (algumas com as foices e os facões que usavam no trabalho), referiu a dirigente, acrescentando que o governo e o Estado como um todo assumiram uma atitude «de não-mediação, de não-negociação».
«O massacre revelou que o Estado está do lado do latifúndio, que não tem interesse em implementar a Reforma Agrária mesmo estando prevista na Constituição Brasileira. É o Estado que alimenta o aprofundamento e a ampliação dos conflitos no campo», denunciou.
Ayala Ferreira enfatizou ainda a impunidade que envolve a violência contra os trabalhadores do campo no Brasil. Dos 1468 casos registados, apenas 117 foram a julgamento. «Muitos desses julgamentos levaram à absolvição de mandantes e executores desse tipo de massacre, como o que ocorreu em Eldorado», disse.
Com o «Abril Vermelho», o MST procura organizar jornadas de luta e mobilizações massivas. No entanto, nestes «tempos difíceis», o movimento assumiu a primazia das medidas sanitárias e a garantia da vida, por entender que, ao fazê-lo, tem «a possibilidade de garantir a superação de tantos outros problemas que são impostos» no actual contexto.
Em simultâneo, ao assumir que «é impossível deixar de rememorar o dia 17 de Abril por tudo o que representa», as actividades terão um pendor mais criativo, nos territórios, assentamentos e acampamentos espalhados pelo país, e nas redes, nos espaços virtuais, para fortalecer a defesa do «projecto de desenvolvimento do campo, com a democratização da terra e a implementação de outras práticas para além do agronegócio», disse.
O «Abril Vermelho» está marcado para o período entre 17 e 21 de Abril, incluindo, entre outras iniciativas, o 15.º Acampamento Nacional da Juventude Sem Terra Oziel Alves Pereira; um acto político virtual, também internacional, para «fazer a memória, reafirmar a vida e denunciar a total paralisação da Reforma Agrária no contexto do governo Bolsonaro» (dia 17, às 10h); acções ligadas à campanha de plantio de árvores e produção de alimentos saudáveis (dia 21).
Agronegócio e agravamento da desigualdade no campo desde 2016
Sobre o agronegócio – «modelo hegemónico no campo brasileiro» –, Ayala Ferreira afirmou que «não serve para resolver os problemas concretos do povo brasileiro». «Se a gente quiser pensar num projecto de desenvolvimento nacional em que os trabalhadores e as trabalhadoras estejam incluídos, é necessário estabelecer-se um conjunto de reformas no nosso país», disse, sublinhando que isso passa «pela democratização do acesso à terra, hoje extremamente concentrada» no Brasil.
«Acredito no nosso esforço de denunciar esse modelo do agronegócio e reafirmar a Reforma Agrária, a agricultura familiar como um modelo de desenvolvimento, que pode, sim, contribuir com a sociedade como um todo», frisou.
Questionada sobre os desafios mais urgentes que a actual conjuntura coloca à luta pela terra no Brasil, a dirigente do MST afirmou que, desde 2016, o país «passou por profundas e drásticas transformações ocasionadas por essa reformulação da classe dominante que impôs o impeachment a Dilma Rousseff e retomou com muita força uma agenda neoliberal, agora na figura do actual presidente Jair Bolsonaro».
Este último, lembrou, apontou que «os camponeses, do MST, o movimento sindical, as comunidades tradicionais como indígenas e quilombolas são inimigos que representam o atraso». Neste sentido, disse, «um dos nossos desafios é manter-nos vivos e inteiros diante de um governo que assumidamente cumpre os interesses do agronegócio, do latifúndio, e tem feito um conjunto de acções para desconstruir tudo aquilo que nós fomos conquistando».
«Justiça divina, mas não na terra»
No que respeita ao processo de condenação dos responsáveis pelo assassinato dos 21 trabalhadores em Eldorado do Carajás, a dirigente dos sem-terra disse que 155 polícias estiveram envolvidos e que há quase 20 mil páginas associadas aos julgamentos, que «sofreram aquilo a que chamamos uma construção deliberada da impunidade», ao longo de vários momentos.
Como exemplo da «articulação política com o Poder Judiciário», referiu que esta tirou do processo o [governador do Pará] Almir Gabriel e o secretário de Segurança Pública, Paulo Sérgio Cabral, além de ter absolvido 143 polícias envolvidos. «Houve também a absolvição por parte dos media [d]os dois comandantes da operação, o coronel Mário Colares Pantoja e o major José Maria Oliveira», acusou.
Num segundo julgamento, estes seriam condenados à pena máxima, «inclusive por terem coordenado a acção», mas manteve-se a decisão de absolver os polícias militares e de não incluir no processo o então governador Gabriel o secretário de Segurança Pública. Tanto o coronel como o major puderam recorrer da decisão em liberdade. E ficaram anos assim, até que, em 2004, a decisão do Tribunal Superior foi de manter a condenação dos dois e absolver os polícias. Ambos tiveram de ir para a cadeia, mas ficaram ali pouco tempo; recorreram novamente e conseguiram ficar em casa, cumprindo prisão domiciliária.
«Actualmente o processo está aberto nessas condições. No ano passado, em função da Covid-19 o coronel Mário Colares Pantoja morreu, e em anos anteriores, tanto o secretário de Segurança Pública quanto o ex-governador Almir Gabriel também vieram a falecer», revelou Ayala Ferreira.
E acrescentou: «Os nossos camponeses dizem "houve justiça divina, mas não houve justiça na terra", porque não houve justiça entre os homens, pois aqueles que mandaram e aqueles que executaram o crime tiveram o direito de viver mais tempo fora da cadeia do que nela.»