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|Semana Sangrenta

Derrota da Comuna de Paris. As lições do sangue

Há 150 anos, o dia 28 de Maio de 1871 foi um domingo, o Domingo de Pentecostes. Enquanto em outros lugares era festejada a descida do Espírito Santo, em Paris, depois dos trabalhadores tentarem tomar os céus de assalto, o inferno chegava.

CréditosIlustação: Gonçalo Duarte

Bairro a bairro, as tropas francesas avançavam enquanto os revoltosos ateavam fogo aos edifícios na tentativa desesperada de parar o avanço dos soldados. Muitos communards morriam nos combates ou nos pelotões de fuzilamento. Ao longo da sua curta duração, a Comuna condenou 500 inimigos à morte, o exército executou mais de 25 mil pessoas em poucos dias, depois de derrotar os revoltosos.

Os combates duraram de 21 até 28 de Maio, quando o exército tomou o último bastião da resistência. Com isto, a guerra acabou – mas não a carnificina.

Uma testemunha ocular narrou: «Eugène Varlin, que tinha lutado até ao último instante, chegou a alcançar a Rue Lafayette, quando foi reconhecido por um oficial de Versalhes. Com as mãos amarradas nas costas, foi levado a Montmartre; durante todo o caminho para lá, foi golpeado com coronhas de fuzil e quase linchado por uma entusiástica multidão de abastados parisienses. Quando chegou à tenebrosa Rue des Rosiers, o seu rosto estava massacrado e um olho pendia da cavidade ocular. Não conseguia mais ficar de pé, por isso foi arrastado para o jardim e fuzilado, sentado numa cadeira».

À medida que eram capturados, os combatentes communards eram fuzilados. As ruas ficaram vermelhas de sangue ao redor dos locais usados para assassinatos em massa, incluindo conhecidos destinos turísticos como Parque Monceau, o Jardim do Luxemburgo, a Praça de Itália, a Escola Militar e o cemitério Père Lachaise. Pelotões de fuzilamento ou metralhadoras trabalhavam 24 horas por dia. Alguns prisioneiros foram forçados a cavar suas próprias covas antes de serem fuzilados. Outros, homens e mulheres, mortos a tiro ou a golpes de baionetas, foram despidos e abandonados nas ruas para aterrorizar a população.

O próprio chefe do Governo, Adolphe Thiers, não deixou dúvidas sobre a política da Terceira República para com os trabalhadores revoltados, declarando publicamente, num discurso em 24 de Maio, na Assembleia Nacional: «Eu derramarei torrentes de sangue».

Um frenesim sanguinário apoderou-se dos ricos. O jornal Le Figaro escreveu: «Nunca haverá uma oportunidade como esta para curar Paris da gangrena moral que a atormenta há 20 anos. (…) Vamos, homens de bem! Ajudem-nos a acabar com os vermes democratas e socialistas, devemos caçar como animais os que estão escondidos.»

Para a aristocracia financeira, estava aberta a temporada de caça aos trabalhadores. Circularam na imprensa boatos delirantes de que mulheres communards estavam a incendiar casas com gasolina, e qualquer mulher da classe trabalhadora que fosse encontrada com óleo corria perigo. As mulheres que tentassem cremar os corpos de seus maridos assassinados, ou que comprassem azeite para cozinhar, eram executadas. Multidões abastadas espancavam os communards detidos pelo exército, antes de eles serem fuzilados, ou davam dinheiro a soldados que se vangloriavam de matar mulheres e crianças. No seu livro, publicado em 2014, Comuna de Paris, Massacre, o historiador John Merriman escreveu:

«As pessoas eram despidas e os seus ombros examinados à procura de marcas deixadas pelo coice das espingardas, caso tivessem esses vestígios, eram imediatamente mortas. Homens que estavam mal vestidos, que não podiam justificar imediatamente o que faziam ou que não exerciam um ofício 'apropriado' tinham poucas hipóteses de sobreviver ao expedito julgamento diante de um tribunal marcial.»

Depois de mais de 25 mil parisienses terem sido fuzilados e abatidos pelo exército francês, outros 40 mil foram levados em marcha até Versalhes, sem comida ou água, para serem julgados. No caminho, oficiais e guardas atiravam arbitrariamente em retardatários e em outros prisioneiros. Cerca de 11 mil foram deportados para campos de trabalho forçado.

«Segundo inúmeros testemunhos, a prisão mais cruel foi a de Saint-Marcouf. Os prisioneiros ficaram ali mais de seis meses privados de ar, de luz, sem poderem conversar, sem tabaco e alimentando-se apenas de migalhas de biscoitos escuros e toucinho rançoso. Todos tiveram escorbuto», relata Prosper-Olivier Lissagaray, um dos sobreviventes da Comuna.1

Ao relembrar no seu diário a Semana Sangrenta, o conhecido crítico literário Edmond de Goncourt mostrou os cálculos assassinos da elite governante. Em 31 de Maio de 1871, escreveu:

«É bom que não tenha havido nem conciliação nem barganha. A solução foi brutal. Foi por pura força. (…) A solução restaurou a confiança do exército, que descobriu com o sangue dos communards que ainda era capaz de lutar. No fim, a sangria foi uma drenagem de recursos; um expurgo como este, exterminando a parte mais combativa da população, adia a próxima revolução por uma geração inteira. A velha sociedade tem 20 anos de descanso pela frente, se as autoridades ousarem fazer tudo o que podem neste momento».

Milhares de pessoas tiveram que se esconder em França ou no estrangeiro para escaparem à repressão. Segundo Lissagaray, «pode calcular-se o conjunto das perdas com este facto: nas eleições complementares de Julho, houve 100 mil eleitores a menos que nas de Fevereiro. O Jornal des Débats calculava que 'as perdas ocasionadas pelo partido da insurreição, tanto em mortos como em presos, atingiam o número de 100 mil indivíduos'. A indústria parisiense foi-se muito abaixo. Os chefes, os contra-mestres, os trabalhadores especializados das oficinas foram mortos, presos ou exilaram-se. O calçado perdeu metade dos seus trabalhadores, a marcenaria mais de um terço, 10 mil trabalhadores alfaiates, a maior parte dos pintores, dos canalizadores, dos zincadores desapareceram».

Um morto cujas ideias sobrevivem

«O cadáver está caído, mas a ideia continua de pé», escrevia Lissagaray sobre as décadas que se seguiram à queda da comuna. Os protestos e as revoltas não pararam, mas a repressão e a derrota deixaram a sua marca.   

Os pensadores marxistas que analisaram essa experiência devastadora consideram que foi uma lição sobre as consequências da derrota nas revoluções. A burguesia está disposta a destruir cidades, países inteiros ou mesmo o mundo para esmagar uma ameaça ao seu domínio de classe. A necessidade de os trabalhadores suprimirem a violência contra-revolucionária da minoria privilegiada exige uma acção implacável para tomar e conseguir manter o poder.

A forma como Marx viveu os acontecimentos da Comuna foram resumidos por Lénine num prefácio às Cartas a Kugelman, em 1907. «Marx dizia, em Setembro de 1870, que uma insurreição seria loucura. Em Abril de 1871, quando assiste a um movimento popular de massas, segue-o com a atenção extrema de um homem que participa num grande acontecimento marcando um progresso do movimento revolucionário histórico mundial».

Sobre a Comuna, Marx e Engels colocaram em evidência três tarefas que uma revolução deve cumprir para ser vitoriosa.

A primeira tarefa é expressa por Marx no prefácio do Manifesto Comunista: «A Comuna demonstrou que a classe operária não pode contentar-se com apoderar-se, tal como está, da máquina do Estado e de a fazer funcionar por sua conta». Não era suficiente fazer mudar de mão o aparelho de Estado, era preciso «quebrá-lo».

A segunda tarefa é construir um novo Estado que seja «essencialmente um governo da classe operária», e que definido por uma limitação da democracia representativa em relação ao controlo operário.

A terceira tarefa é erigir um Estado que seja capaz, como qualquer Estado, de exercer funções repressivas. O grande falhanço da Comuna de Paris foi não ter sido capaz de ter essa capacidade. Marx escreveu em Abril de 1871: «Se falharem, será unicamente por terem sido demasiado gentis».

Na senda de Marx e Engels, Lénine, em vésperas da tomada do poder pelos bolcheviques, em Outubro de 1917, reflectiu, em O Estado e a Revolução, sobre a questão do Estado e a breve experiência do poder operário da Comuna.

Marx e Engels, explicou Lénine, concluíram que o Estado não era um instrumento para a reconciliação das classes, mas um produto da irreconciliabilidade dos antagonismos de classe. Examinaram tanto os dados antropológicos de sociedades primitivas, em que não existia Estado, como também o conflito entre o Estado capitalista e a população armada de Paris, em 1871. O Estado, escreveu Engels, estabelece «uma força pública que não coincide directamente com a população, organizando-se como uma força armada».

E acrescentou: «Essa força pública particular é necessária porque uma organização armada autónoma da população se tornou impossível desde a divisão em classes. (...) Essa força pública existe em cada Estado; não se compõe apenas de homens armados, mas também de anexos materiais, prisões e instituições de coerção de todo o tipo (…) e fica mais forte, à medida que se acentuam as contradições de classe».

A experiência da Comuna de Paris, e essa análise do Estado feita pelos marxistas, teve implicações profundas. Ao contrário do que os reformistas defendiam, os marxistas garantiam que utilizar o Estado capitalista para diminuir os antagonismos de classe e fornecer paz e prosperidade duradouras era totalmente utópico. Assim como estava errada, segundo eles, a perspectiva anarquista, que clamava pela dissolução imediata de todas as formas de poder estatal – opondo-se, portanto, à formação de um Estado operário que combatesse a violência contra-revolucionária da classe dominante.

Lénine enfatizou a conclusão de Marx de que «a classe trabalhadora não pode simplesmente apoderar-se do aparelho do Estado tal como ele está é e manejá-lo para seus próprios fins». Em vez disso, a classe trabalhadora precisava de construir o seu próprio Estado, como os trabalhadores parisienses fizeram em 1871. Isso significava, antes de tudo, construir um partido para introduzir na classe trabalhadora a consciência política e histórica e a necessidade de uma política revolucionária.

Essa perspectiva foi a base da Revolução de Outubro de 1917 e da transferência do poder do Estado, dirigida pelo Partido Bolchevique, defendendo que deviam ser os sovietes, órgãos eleitos pelos operários e camponeses, a tomar o lugar da autocracia czarista.

«Ao forçar a questão da forma política do povo, a Comuna de Paris serve como ponto de referência fundamental nas discussões marxistas do Estado. Que forma assume o autogoverno do povo? Na medida em que o povo precede o Estado, a análise do acontecimento da Comuna abre-se necessariamente à subjectivização do povo e ao processo político do qual o povo é o sujeito. E na medida em que o povo politizado é um povo dividido, uma parte de um conjunto constituidamente aberto e incompleto, o lugar de onde o povo é compreendido é necessariamente partidário. A questão do partido precede a questão do Estado. Até colocarmos o partido como uma possibilidade, as discussões sobre o Estado – se devemos ou não visar ou capturar o Estado – não são mais do que fantasias que encobrem o fracasso como uma escolha. Não é que não pudéssemos tomar o poder; simplesmente não queríamos fazê-lo», defende Jodi Dean, no artigo Commune, Party, State.

Multidão, povo e classe

Uma característica da discussão sobre a Comuna de Paris é a multidão, o povo, a classe trabalhadora, a presença chocante daqueles que foram excluídos da política, agora a imporem a sua presença nesse lugar.

A Comuna poderia nomear uma divisão, «a antítese directa ao império», nas palavras de Marx.

Contudo, até que a multidão criasse abertura para ela, foi apenas uma «vaga aspiração», denotando uma oposição fundamental.

A luta pela Comuna foi também uma luta pelo seu significado. Tem sido oferecida como figura do republicanismo, nacionalismo patriótico, federalismo, centralismo, comunismo, socialismo, anarquismo, até mesmo secessionismo. Marx vê a multiplicidade das suas significações, «e a multiplicidade de interesses que a interpretaram a seu favor», como indicativo da profunda expansividade da forma Comuna. Este mesmo excesso, pode também ser lido como uma falta, como a lacuna do político. Por exemplo, embora o discurso de abertura de Charles Beslay descrevesse a Comuna como um governo municipal concentrado em assuntos locais, os seus decretos rapidamente abrangeram assuntos nacionais. Como observa Prosper Olivier Lissagaray no seu relato definitivo, foi «Comunhão de manhã, Assembleia Constituinte à noite».

Marx sugere que a Comuna de Paris deu um vislumbre de uma solução para o problema da forma política do povo. Embora todas as formas anteriores de governo tivessem sido repressivas, a Comuna era uma «forma política completamente expansiva». A 'Comuna' foi denominada uma aspiração e antagonismo; designava a alternativa ao império. Dentro da luta em curso sobre a realização positiva dessa alternativa, Marx dá prioridade a um entre os múltiplos interesses que se poderiam ver na forma da Comuna, apresentando a Comuna 'essencialmente' como a forma política «sob a qual se realiza a emancipação económica do trabalho».

Marx trata a coerência que inscreveu como uma subjectivização partidária, um acontecimento na expressão política da classe trabalhadora.

Em vez de resolver um problema político, a Comuna coloca um: a soberania do povo. Será possível e que formas pode assumir? O carácter não-total do povo tem sido um ponto de colagem consistente na teoria democrática. Se o povo não é uma unidade, como pode ele próprio governar? Como pode falar ou legislar? Marx explica: «A classe revolucionária emerge no início simplesmente porque se opõe a uma classe não como uma classe, mas como representante de toda a sociedade». Este é o sentido em que a luta de classes é uma luta política. Em vez de determinada dentro das condições económicas em que a classe confronta a classe, como duas forças distintas com interesses particulares, a classe que faz a revolução representa os seus interesses gerais sobre e contra a vontade particular da classe opressora. Mais precisamente, os partidários e aliados de classe lutam para apresentar o real da interrupção destrutiva da multidão como expressão do desejo do povo».

Subjectivização e Processo Subjectivo

Em Theory of the Subject, um livro que surgiu de um seminário dado entre 1975 e 1979, Alain Badiou diz que a tradição marxista nos deu duas avaliações da Comuna de Paris. A primeira, de Marx, considera concretamente a Comuna em termos dos objectivos políticos da classe trabalhadora no que diz respeito ao Estado. O proletariado tem de esmagar a velha maquinaria estatal e construir novos órgãos de poder político. Tem de tomar esse lugar e exercer força. A segunda avaliação da Comuna, de Lénine, retoma esta concepção e traz à tona o aspecto subjectivo da força. Pela sua «avaliação silenciosa» da Comuna, Badiou diz-nos que Lénine tira quatro consequências da derrota da Comuna: «É necessário praticar uma política marxista, e não alguma revolta romântica local»; «é necessário ter alguma visão global das coisas [...] e não ser fragmentado no federalismo das lutas»; «é necessário forjar uma aliança com as massas rurais»; e «é necessário quebrar a contra-revolução através de um processo ininterrupto, militarmente ofensivo e centralizado». Lénine concebe o partido, inferindo um certo tipo de força subjectiva da Comuna. Por outras palavras, ele lê a Comuna como um efeito ou consequência de um sujeito político e constrói a sua ideia do partido a partir desta leitura.

A ruptura da multidão tem de ser politizada, ligada a um sujeito político. A multidão proporciona uma oportunidade material para a expressão de um sujeito político, um momento que aconteceu e cujo acontecimento pode ser atribuído ao funcionamento deste sujeito político.

O povo como sujeito colectivo surgiu através da perturbação da multidão, na medida em que havia algo sobre a insurreição que era inimaginável antes da sua erupção. O impossível aconteceu, obrigando Marx a tomar uma posição: de que lado estava ele? Aqui estava a imprevisibilidade de um povo forçando uma mudança de teoria e de prática. Multidão revoltada, forma política disponível e força do impossível.  Marx responde a esta aparição do povo com fidelidade. Como diz em carta a Kugelmann, independentemente dos múltiplos erros tácticos e políticos da Comuna, «a actual ascensão em Paris – mesmo que seja esmagada pelos lobos, porcos e a maldição vil da velha sociedade – é o acto mais glorioso do nosso Partido desde a insurreição de Junho em Paris».

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