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As alucinações da NATO

Ao concordarem em aumentar os seus gastos militares para 5% do produto interno bruto (PIB), os Estados europeus criaram uma série de problemas para si mesmos.

Mural anti-Nato por ocasião das eleições legislativas na Sérvia. Belgrado, 4 de Abril de 2022 
CréditosANDREJ CUKIC / EPA

Na conclusão da reunião anual da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) em Haia, em Junho de 2025, ficou evidente que tudo se resumia a questões financeiras. De facto, o comunicado final foi talvez o mais curto de todas as reuniões da NATO – apenas cinco pontos, dois sobre dinheiro e um para agradecer à Holanda por sediar a cúpula. A Declaração de Haia tinha apenas 427 palavras, enquanto no ano anterior, a Declaração de Washington tinha 5400 palavras e 44 parágrafos. Desta vez, não houve detalhes minuciosos sobre esta ou aquela ameaça, nem avaliações longas e detalhadas sobre a guerra na Ucrânia e como a NATO apoia essa guerra sem limites («O futuro da Ucrânia está na NATO»), afirmou a aliança em 2024, uma posição que não foi repetida na breve declaração de 2025). Ficou claro que os Estados Unidos simplesmente não queriam permitir uma lista interminável de obsessões da NATO. Em vez disso, prevaleceu a obsessão dos EUA: que a Europa aumente seus gastos militares para compensar o escudo protector dos EUA em torno do continente.

Ao concordarem em aumentar os seus gastos militares para 5% do Produto Interno Bruto (PIB), os Estados europeus criaram uma série de problemas para si mesmos.

O primeiro problema é que teriam de inventar o dinheiro a partir dos seus apertados orçamentos. Aumentar as despesas militares para 5% do PIB exigiria uma redução das despesas sociais – ou seja, aprofundar as políticas de austeridade já em vigor. Na Alemanha, por exemplo, 21,1% da população enfrenta o risco de pobreza ou exclusão social. O governo alemão, liderado pelo chanceler Friedrich Merz, prometeu 650 mil milhões de euros para as forças armadas nos próximos cinco anos – um montante que até mesmo o Financial Times considera «impressionante». Para atingir 5% do PIB, a Alemanha, por exemplo, terá que levantar cerca de 144 mil milhões de euros por ano por meio da realocação de verbas orçamentárias (austeridade) e do aumento do endividamento (dívida); o aumento de impostos é improvável, mesmo que se trate de impostos regressivos sobre o consumo, como o Imposto sobre o Valor Agregado (IVA).

O segundo problema é que, apesar do desembolso de dinheiro para as forças armadas, a Europa simplesmente não tem linhas de produção prontas para produzir tanques e mísseis ao ritmo necessário. Ao contrário dos Estados Unidos, a Europa começou a desindustrializar o seu sector militar após a queda da União Soviética, em 1991. Agora, terá que gastar somas consideráveis apenas para recuperar o seu potencial industrial.

Nos últimos anos, as indústrias militares europeias têm enfrentado dificuldades para atender às necessidades da Ucrânia, com a União Europeia incapaz de atender à demanda de um milhão de projécteis de artilharia em 2024. A Rheinmetall, por sua vez, só consegue produzir 150 tanques Leopard 2 por ano, muito abaixo do que as empresas europeias fabricavam durante a Guerra Fria e muito abaixo das necessidades de um exército europeu que tenha de enfrentar a Rússia no campo de batalha.

Nem os caças Eurofighter Typhoon, nem os Dassault Rafale podem ser produzidos rapidamente. Os serviços de aquisição em toda a Europa estão atrasados pelos regulamentos da União Europeia e pelos requisitos alfandegários. Não é possível um crescimento rápido das forças armadas.

O número de 5% do PIB é mais relações públicas do que realidade.

Ameaças

A Declaração da Cúpula de Haia afirma que a aliança euro-atlântica enfrenta «profundas ameaças e desafios à segurança». Quem ameaça a região euro-atlântica? O único adversário mencionado na Declaração é a Rússia. No entanto, na mesma época em que os membros da NATO se reuniram em Haia, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, conversou com o presidente russo, Vladimir Putin, sobre a redução de tensões na Ucrânia e o fim das tensões na Europa, e as negociações de Istambul continuaram entre as várias partes envolvidas no fim da guerra. Se houver um cessar-fogo na Ucrânia e se a Rússia e a Europa chegarem a acordo sobre determinadas garantias de segurança, para que serviria o aumento de 5% do PIB nas despesas militares?

Mesmo que a Rússia ponha fim à guerra na Ucrânia, existem várias outras preocupações que os membros da NATO insistem em invocar para justificar o aumento das suas despesas militares. Por exemplo, os Estados-membros da NATO na Europa permitiram que suas instalações militares se deteriorassem, o que, do ponto de vista da paz, é aceitável, mas não do ponto de vista de uma guerra iminente (o lobby militar na Europa tem apontado especialmente para a negligência do continente em relação a ataques cibernéticos e ao uso da inteligência artificial como arma — embora não esteja claro como a reconstrução de quartéis ajudaria nisso). Os Estados Bálticos soaram o alarme contra uma potencial invasão russa, enquanto a instabilidade em torno do Irão alertou a Europa para os perigos nas suas fronteiras. Estas são algumas das razões apresentadas pelos intelectuais belicistas na Europa para a necessidade de aumentar os gastos militares.

«Se houver um cessar-fogo na Ucrânia e se a Rússia e a Europa chegarem a acordo sobre determinadas garantias de segurança, para que serviria o aumento de 5% do PIB nas despesas militares?»

 

Mas, de longe, a causa mais importante não tem nada a ver com as fronteiras da Europa ou com ameaças à Europa: a China. No Conceito Estratégico da NATO para 2022, a China é considerada «um desafio sistémico à segurança euro-americana». Mas de que forma a China é uma ameaça para a Europa? Os Estados Unidos vêem a China como o seu principal rival, não em termos militares, mas em termos do domínio económico das multinacionais sediadas nos EUA. Os países europeus só têm beneficiado dos investimentos chineses, como por exemplo através da Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative - BRI). Dos 44 países da Europa, 29 aderiram à BRI – a maioria destes países situa-se na Europa Oriental, e dois terços dos países europeus assinaram memorandos de entendimento com a China para o comércio e o desenvolvimento. A Itália abandonou a BRI em Dezembro de 2023, mas os outros países continuam comprometidos com o projecto. Dos 32 Estados-membros da NATO, 12 têm um acordo com a China para fazer parte da BRI ou de algum outro grande projecto (Albânia, Bósnia e Herzegovina, Bulgária, Croácia, República Tcheca, Grécia, Hungria, Montenegro, Macedônia do Norte, Polónia, Portugal e Turquia). O facto de esses Estados dependerem da dinâmica económica da China mostra que eles não se sentem ameaçados pela China, o que levanta a questão de qual é a ameaça que a NATO vê na China.

O hábito da austeridade e da guerra domina os governos da NATO, enquanto o Sul Global se comprometeu com a paz e o desenvolvimento. É impressionante como a Declaração de Haia soa anacrónica quando colocada ao lado do slogan da 17.ª Cimeira do BRICS no Rio de Janeiro (Brasil) em Julho de 2025: Sul Global Inclusivo e Sustentável.

A NATO não tem ameaças reais, apenas alucinações caras.

Artigo republicado no âmbito de uma parceria com a Globetrotter, editado pelo AbrilAbril

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