Não se pode falar com alguma profundidade de Sicília! (Sicilia!, 1998) sem o colocar em contexto. Há pelo menos dois elementos que definem contextos precisos para este filme. O primeiro elemento é, obviamente, a obra de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet e a retrospectiva na Casa do Cinema Manoel de Oliveira e a exposição «Jean-Marie Straub e Danièle Huillet: Na Cratera do Vulcão» têm-nos oferecido este contexto. O segundo elemento é o filme de Pedro Costa, Onde Jaz o Teu Sorriso? (Où gît votre sourire enfoui?, 2001), que documenta a montagem da terceira versão de Sicília!.
Um dos temas que perpassa por Onde Jaz o Teu Sorriso? é o da relação entre a ideia, a matéria, e a forma. Logo no início do documentário, ouvimos Straub dizer: «Não espere pela forma antes do pensamento.» E Huillet replica: «A forma aparecerá ao mesmo tempo.» Na verdade, o cinema feito por ele e por ela nasce da relação dialéctica entre as estas duas posições. São duas posições que podem parecer excludentes, mas que correspondem a diferentes momentos da criação do filme ou até a diferentes entendimentos desse processo. A primeira posição salienta a independência e a sucessão das partes (primeiro a ideia, depois o seu confronto com a matéria, do qual resulta a forma). A segunda posição salienta a cooperação e a simultaneidade das partes (a ideia é refeita no confronto da matéria e desse refazer em confronto nasce a forma).
A demonstração de que há uma relação dialéctica entre estas duas posições está no próprio filme de Pedro Costa, sobretudo nos momentos de decisão sobre a montagem do filme, que Onde Jaz o Teu Sorriso? mostra sequencialmente, começando com a cena inicial no porto e terminando na cena final centrada no amolador. Às tantas, Straub parafraseia Tomás de Aquino que, segundo ele, afirmou que «a alma nasce da forma do corpo», acrescentando, bem-disposto, que, como este pensador era napolitano, sabia o que dizia. A frase do teólogo dominicano na Summa Theologica não é bem assim — é, na verdade, «a alma intelectual é a forma do corpo» —, o que altera o significado da afirmação e, mais uma vez, volta a chamar a atenção para a natureza dialéctica do processo de criação fílmica. Ora, esta dialéctica que pode ser detectada no plano da expressão tem um vínculo com as convicções políticas que Sicília! corporiza.
Esta longa-metragem é baseada em excertos de um romance anti-fascista de Elio Vittorini, Conversação na Sicília (Conversazione in Sicilia), publicado originalmente em parcelas na revista literária Letteratura entre 1938 e 1939. Nascido em Siracusa, Sicília, Vittorini assumiu-se inicialmente como um «fascista de esquerda». Em 1937, portanto um ano antes de começar a escrever Conversação na Sicília, já a contradição insustentável dessa expressão estava exposta e Vittorini foi expulso do Partido Nacional Fascista, liderado por Benito Mussolini, devido a apoiar publicamente o lado republicano na Guerra Civil Espanhola. A partir dessa altura fez um percurso político na esquerda italiana, passando pelo Partido Comunista Italiano.
Em Onde Jaz o Teu Sorriso?, Huillet explica que quiseram fazer este filme a partir do texto de Vittorini porque o leram em conjugação com a memória de um episódio que ocorreu em 1972. Nesse ano, Straub e Huillet andavam por Itália em busca de lugares para filmar Moisés e Aarão (Moses und Aron), dois anos depois. Percorreram lentamente milhares de quilómetros. Um dia, em cima de uma ponte, disseram um para o outro: «Que cheiro tão estranho. Não é desagradável, mas é muito intenso, que será?» E viram várias centenas de quilos de laranjas despejadas num rio. Ficou-lhes na memória. Quando leram o início de Conversação na Sicília, veio-lhes à mente esta recordação muito forte.
«Nascido em Siracusa, Sicília, Vittorini assumiu-se inicialmente como um «fascista de esquerda». Em 1937, portanto um ano antes de começar a escrever Conversação na Sicília, já a contradição insustentável dessa expressão estava exposta e Vittorini foi expulso do Partido Nacional Fascista, liderado por Benito Mussolini, devido a apoiar publicamente o lado republicano na Guerra Civil Espanhola.»
Esta explicação deixa muito por explicar, como é evidente. Seja como for, introduz um tema central de Sicília!: a memória. Esta é a narrativa de um homem (interpretado por Gianna Buscarino) que regressa à sua terra de origem, depois de quinze anos a viver na cidade de Nova Iorque, dado biográfico que não consta no texto original, no qual a personagem regressa de Milão. O filme mostra uma série de encontros no decurso desta viagem, o mais longo destes encontros deste homem que se tornou estrangeiro é com a sua mãe, no município de Vizzini, província de Catania, na Região Autónoma Siciliana. Mais do que encontros, são, na verdade, reencontros. Ou seja, o homem cruza-se sempre com algo que conhece e reconhece, no porto, no comboio, e na cidade, mesmo que tal não pareça inicialmente e mesmo que esse (re)conhecimento surja misturado com algo que desconhece.
A perspectiva revolucionária que molda o cinema de Straub e Huillet está em sintonia com esta noção de reencontro e com a sua valorização estética e política. Numa entrevista a François Albera, Straub foi bastante claro: «É preciso então voltar ao que diz Benjamin; a revolução também é "colocar em seu lugar coisas muito antigas, mas esquecidas" (Péguy). Os filmes que nos fazem sentir isso são filmes políticos.» Em duas frases, o realizador convoca o filósofo marxista Walter Benjamin, o pensador católico Charles Péguy, e implica Huillet nesta visão, que ela não desmente. Como Jacques Rancière bem assinalou, a tradição revolucionária na qual Straub e Huillet se inscrevem rejeita o progresso cuja base seria o novo cintilante. Em vez disso, defende um desenvolvimento que implique uma ruptura com modos de viver e relações económicas de dominação e a preservação e a redescoberta do que se enraizou, um regresso à terra, à humanidade (re)integrada na natureza, aquilo a que estudioso de cinema Daniel Fairfax designa por «comunismo ecologista».
«A perspectiva revolucionária que molda o cinema de Straub e Huillet está em sintonia com esta noção de reencontro e com a sua valorização estética e política.»
Em Sicília!, o homem que regressa tem dificuldade em lidar com tais paradoxos. Tal é manifesto, por exemplo, na discussão com a sua mãe sobre o seu avô, que ele não compreende como podia ser socialista e cristão, participando activamente na procissão de São José. As coisas antigas são tanto o arenque grelhado dessa sequência como a navalha que o homem passa ao amolador para afiar na sequência final. Sendo que nem todas as coisas antigas são dignas de preservação e valorização, como os dois oficiais de polícia sinistros que planeiam a repressão política no comboio.
O estilo fílmico de Sicília! é altamente depurado, separando cada um dos elementos visuais e sonoros de forma cristalina. A representação opta pela «abstração teatral», como Jean-Marie Straub a descreve no documentário de Pedro Costa: o texto é dito com pontuações rigorosas, complementadas com gestos lentos e marcados. Os enquadramentos salientam a profundidade do espaço, através de diversas linhas de perspectiva, o que faz com que cada imagem seja simultaneamente despojada e densa.
Antes e depois do reencontro entre o homem e a sua mãe, o filme faz uso de um movimento de câmara que exemplifica estas opções e o seu valor artístico. Trata-se de uma panorâmica repetida três vezes ao longo de Sicília! que varre a paisagem de Vizzini até ao cemitério da cidade e depois faz o movimento inverso para se fixar no centro da cidade, ao longe. Antes do reencontro, este plano aparece duas vezes seguidas, a primeira ao nascer do sol, a segunda a meio do dia. Depois do reencontro, reaparece precisamente da mesma maneira, mas a meio da tarde.
Para expressar a passagem cíclica do tempo, o filme convida-nos a contemplar as mesmas coisas por três vezes e a observar esta paisagem como um cenário da história humana que ali se tem desenrolado, reflectindo a marca da comunidade que nela reside, trabalha e vive, com as suas delimitações, construções e plantações, os seus acessos e os seus mortos enterrados.
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