Televisão, SIC Notícias, o locutor apresenta o crítico literário do Expresso, José Mário Silva, para comentar os prémios Nobel da Literatura de 2018 e 2019, acabados de atribuir à escritora polaca Olga Tokarczuk (2018) e ao austríaco Peter Handke (2019)[fn]Em 2020 será publicado em Portugal o mais recente romance de Peter Handke e a edição das suas obras terá um novo fôlego, afirmou à Lusa o seu editor português. O Jornal de Letras publicou, a 10 de Outubro de 2019, uma entrevista com o autor, que pode ler aqui. Uma lista de obras publicadas e disponíveis nas livrarias pode ser encontrada na Wook.[/fn], adiantando que «têm posições políticas de certa forma contrárias».
Dois grandes escritores – salienta o crítico – com «posições diferentes na literatura e na vida», mas de «qualidade inatacável» e, sob ponto de vista literário, «sem polémica possível».
Já «quanto às posições políticas, talvez…».
Para José Mário Silva, enquanto a premiada polaca «é de esquerda, defensora dos Verdes, dos direitos dos animais, etc., mas dentro daquilo que se espera de um intelectual, o caso de Handke é muito mais complicado…».
O telespectador poderá ser levado a pensar que Handke, escritor mundialmente conhecido, será politicamente de direita, talvez até simpatizante dos neofascistas polacos que Olga Tokarczuk corajosamente critica.
Mas o comentador do Expresso avança, especificando o «caso complicado» de Handke:
«Ele foi um dos grandes escândalos intelectuais dos últimos anos, porque não se limitou a criticar o comprometimento dos Estados Unidos na guerra da Jugoslávia, não só isso, mas esteve no funeral de Slobodan Milošević, que foi condenado por crimes de guerra, e fez o elogio. Isso foi muito complicado. Criou uma espécie de anátema, alguns dos prémios que lhe tinham sido atribuídos acabaram por lhe ser retirados, e espanta-me que a Academia Norueguesa tenha tido a coragem, de certa maneira, de fazer esta escolha. Isto ainda vai fazer correr muita tinta…».
E de facto correu. Bastou espreitar o Google nos dias seguintes para saber o que diziam o New York Times, The Guardian, a BBC ou a CNN e perceber o tom escandalizado:
«Admirador do criminoso de guerra Slobodan Milošević», «defensor de um genocida», «amigo do Carniceiro dos Balcãs»…
Enfim, com boa vontade, um bom escritor mas sem sentido de ética ou de vergonha.
«Mais de vinte anos após a agressão dos EUA e da «Europa» à Jugoslávia e da campanha de desinformação com que o «Ocidente» a procurou justificar, ela está de volta às primeiras páginas com Handke a ser o bombo da festa, alvo de insultos e abaixo-assinados para lhe retiraram o prémio Nobel, atribuído por um júri totalmente renovado depois dos escândalos da academia sueca no ano passado»
É bem verdade que já antes havia pesado o mesmo «anátema» sobre outros nobelizados, como Harold Pinter (2005), Günter Grass (1999), José Saramago (1998), e anteriormente com Gabriel Garcia Márquez (1982), «amigo do ditador Fidel Castro» (New York Times, Bret Stephens, 17 de Outubro de 2019).
Na realidade quem não apoia a política do império, não tem a vida fácil nos meios intelectuais dominantes, com algumas franjas da esquerda mais frágil a repetir acriticamente os seus chavões.
Mais de vinte anos após a agressão dos EUA e da «Europa» à Jugoslávia e da campanha de desinformação com que o «Ocidente» a procurou justificar, ela está de volta às primeiras páginas com Handke a ser o bombo da festa, alvo de insultos e abaixo-assinados para lhe retiraram o prémio Nobel, atribuído por um júri totalmente renovado depois dos escândalos da academia sueca no ano passado.
«Um prémio no cravo e outro na ferradura?», titulava o Público de 11 de Outubro, juntando-se à confusão ideológica desta onda (des)informativa. Porque afinal, estar contra os bombardeamentos dos EUA e da NATO, levados a cabo à margem do direito internacional e da carta da ONU, não será estar do mesmo lado dos que criticam o regime de extrema-direita da Polónia, como Olga Tokarczuk?
Talvez ser defensora das liberdades políticas e das «causas verdes» e dos animais, esteja «dentro daquilo que se espera de um intelectual» – como afirmou o crítico do Expresso.
Seguramente mais aceitável do que atacar as guerras «humanitárias» das potências ocidentais que deixam os países tão benevolamente «ajudados» – como o Afeganistão, o Iraque, a Líbia ou a Síria – feitos em cacos e com uma boa parte da população morta ou em fuga.
«Polémica em torno do Nobel a Peter Handke não abranda» – escreve Luís Miguel Queirós no Público poucos dias depois (16 de Outubro de 2019), citando outras acusações de políticos e escritores. O escritor austríaco merece ainda uma seta vermelha virada para baixo na galeria das avaliações sumárias.
Colaborador em filmes de Wim Wenders e ele próprio realizador de cinema, fica-se assim a saber que Handke continua a ser o alvo do «anátema» apontado pelo crítico do Expresso, tendo-lhe até sido retirados prémios literários já atribuídos.
Tolerância da nossa democrática maneira de viver no Ocidente? Algum rigor na avaliação dos factos?
Apesar da abertura negocial e cedência às exigências leoninas dos EUA, Milošević foi por estes alcunhado como «Carniceiro do Balcãs», título estendido a outros dirigentes sérvios (como Karadzic e Madlic) e usado à medida das conveniências, passando a ser papagueado em telejornais, comentários e debates, sem merecer qualquer contraditório.
A verdade é que Slobovan Milošević, vulgarmente apresentado como «condenado por crimes de guerra» (como fez o crítico literário do Expresso ou a escritora Inês Pedrosa na RTP 3), ou sob formas mais ambíguas como «acusado de crimes contra a Humanidade» (usada pelo Público), foi completamente ilibado de todas as acusações.
Extraditado à revelia das leis e decisões do Supremo Tribunal do seu país, Milošević foi entregue ao Tribunal Penal Internacional para a Jugoslávia (TPIJ) – instituído por influência dos USA que a ele não se sujeita – e este acabou por considerar não existirem provas que permitissem qualquer acusação.
Transferido para o Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haia, por ordem do então primeiro-ministro sérvio Zoran Didic, desejoso de ganhar as boas graças dos EUA e contra a promessa de ajuda financeira, Milošević foi totalmente ilibado de tais acusações anos depois da sua morte, em 2006, acontecida na prisão em condições suspeitas.
Após cinco anos de prisão, o dirigente sérvio faleceu devido a um ataque cardíaco e à falta de cuidados médicos apropriados, depois de os ter exigido e protestado contra a sua recusa pelo tribunal, que assim assumiu uma pesada responsabilidade na sua morte.
Dez anos após o seu falecimento (2016), no meio do silêncio cúmplice dos principais media ocidentais, Milošević viu reconhecida a sua completa inocência por um tribunal parcial e hostil (TPI), ao qual, com dignidade, nunca reconheceu autoridade.
«Apesar do tempo passado, a defesa, por Handke, das regras do direito internacional flagrantemente violadas em todo o processo da Jugoslávia pelos USA e aliados, fazem do escritor austríaco "um caso complicado", um "anátema" caucionado por alguns intelectuais "sensatos" que ocupam os lugares cómodos da esquerda crítica "independente" e "ecléctica"»
Nome do Autor, breve descrinção
Ficou ainda provado o seu empenho nas tentativas para evitar a guerra civil fratricida que dilacerou a Jugoslávia.
Confirmou-se, pois, que Milošević, o «Carniceiro dos Balcãs» era, de facto, natural dos Balcãs – única verdade do inventado título que agora volta a ser usado na onda de acusações a Handke, como se todo o festival de falsidades e fake news da altura tivesse ganho total autonomia, assumindo-se como «verdade alternativa».
Apesar do tempo passado, a defesa, por Handke, das regras do direito internacional flagrantemente violadas em todo o processo da Jugoslávia pelos USA e aliados, fazem do escritor austríaco «um caso complicado», um «anátema» caucionado por alguns intelectuais «sensatos» que ocupam os lugares cómodos da esquerda crítica «independente» e «ecléctica».
No seu excelente livro Fools Crusade, um dos mais bem documentados textos sobre o conflito jugoslavo (editado pela Caminho com o título Cruzada de cegos), a jornalista americana Diana Johnstone, afirma acerca da narrativa «oficial»:
«Quase tudo é falso neste conto de fadas. Infelizmente, a refutação dos mitos estabelecidos, por mais falsos que eles sejam, não é fácil. Aquilo que é constantemente repetido torna-se “uma evidência”. Com efeito, muitos factos que põem em causa ou contradizem a versão oficial, foram citados por jornalistas escrupulosos ou transmitidos por agências de imprensa. Mas esses factos apenas fazem breves aparições e são rapidamente esquecidos. A ficção colectiva cria a sua própria defesa colectiva. Há demasiadas reputações envolvidas. (…) Aqueles que ousem exprimir as suas dúvidas correm o risco de ser tratados como “revisionistas” ou “negacionistas”, comparáveis àqueles que negam os crimes dos nazis».
Uma boa descrição do processo de manipulação do pensamento colectivo, em que a distorção da realidade, mesmo quando devidamente provada, dolosamente se perpetua, como agora bem se exemplifica nas acusações a Handke.
Talvez seja ainda de acrescentar (facto também usualmente silenciado) que, para além do escritor, também Ramsey Clark, que ocupou o elevado cargo de Procurador-Geral (Attorney General) dos EUA no mandato do Presidente Lyndon Johnson, cometeu o «pecado» de estar presente no funeral de Sbodovan Milošević.
E qualquer interessado que pesquise na Wikipédia ficará a saber que Ramsey Clark ofereceu o seu apoio jurídico a «demónios» como Milošević e Saddam Hussein, por considerar os seus julgamentos uma fantochada inaceitável.
De resto, entre algumas intervenções armadas que Ramsey Clark considera como major agression dos USA , citam-se:
Irão (1953); Guatemala (1954); República do Congo, Léopoldeville (1961); Guerra do Vietname (1959-1975); República Dominicana (1965); Chile (1973); Nicarágua (1981-1988); Granada (1983-1987); Tripoli e Benghazi, na Líbia (1986); Panamá (1989); Iraque (1991); Somália (1992-1993); Iraque (1993-2001); Jugoslávia (1999); Sudão (1998); Afeganistão (2001); Iraque (2003); e Haiti (2004).
E a lista poderia continuar, desaguando nas mais recentes guerras da Líbia e da Síria e nas ameaças ao Irão e à Coreia do Norte (que perdeu 20% da população com a intervenção dos EUA, nos anos cinquenta).
Países que nem sequer têm fronteiras com os EUA ou se situam na área de intervenção da NATO.
Como, por isso, se pode ser de esquerda e atacar Handke, por criticar a política agressiva dos EUA, que tem estas tradições de violação continuada do direito internacional?
Como hesitar e não defender Handke e a sua corajosa denúncia da intervenção dos EUA e aliados na Jugoslávia, que aí despejaram 23 mil toneladas de bombas e mísseis?
Conforme afirma no «Ípsilon» do Público de 25 de Outubro de 2019 o jornalista Carlos Santos Pereira, seguramente um dos mais conhecedores da guerra na Jugoslávia e talvez por isso afastado dos telejornais e dos debates televisivos de maior audiência, «o eco mediático da polémica Handke trouxe de novo às primeiras páginas as mesmas fórmulas, os mesmos estereótipos, os mesmos ‘soundbites’ – e as mesmas manipulações das posições iconoclastas de Handke – que resistem, um quarto século depois, a todas as denúncias, desmentidos e desmascaramentos».
E a mentira continua…