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Berardo e as tranquibérnias do amor à arte – em dois andamentos

No meio deste folhetim quem se deve estar a rir, naquele seu jeito crasso, é o comendador Joe Berardo, um belo espécime do capitalismo em que é possível fazer dinheiro sem produzir nada.

Joe Berardo
Joe BerardoCréditosManuel de Almeida / Agência Lusa

1º Andamento

1.1- Obscuros recantos de um protocolo formoso mas não seguro

O protocolo entre Berardo, por via Associação Fundação Berardo dona da colecção que ocupa os espaços expositivos do CCB desde 2007, estava a ser renegociado com o Estado/Ministério da Cultura, quando perguntaram ao ministro Luís Castro Mendes qual a posição do Estado por a colecção ter sido dada como garantia aos bancos credores do comendador, uma notícia já antiga.

O ministro respondeu que desconhecia essa situação. Protocolo assinado, os bancos accionam a garantia, executando a penhora. Mais uma vez inquirido Luís Castro Mendes assegurou que «o governo à data dessa renovação do protocolo, tal como não tem à data de hoje, conhecimento da existência de qualquer penhora».

Do outro lado da mesa, Berardo negava o que era do conhecimento geral, publicado em quase toda a comunicação social. Escudava-se no truque de ter dado como garantia das suas gigantescas dívidas à banca títulos da Associação Colecção Berardo, e não a colecção Berardo.

Só que essa entidade é referida na adenda ao protocolo celebrado com o Estado em Abril de 2006 como «dona e legítima possuidora» do acervo de obras de pintura, desenho, escultura, instalação e fotografia, que foi inventariado e depois avaliado pela Christie's em 316 milhões de euros, conforme documentos anexos ao protocolo.

Castro Mendes reforçou a anterior afirmação revelando que o comendador e a sua equipa lhe «garantiram que não havia nenhuma penhora, total ou parcial, sobre a colecção». Entre a palavra de Berardo e o que era do conhecimento de todo o mundo e ninguém, só não se pode estranhar o desconhecimento de um ministro, que além da Cultura tutela a Comunicação Social onde o assunto era tema recorrente, por esse ministro ser um homem das literaturas, pelo que se poderá presumir que estaria a protagonizar uma variante de um conto de Edgar Allan Poe em que ninguém via uma carta roubada por estar demasiado visível.

Berardo, com grande alarido como é seu timbre, proclama: «Nem pensar, a colecção está muito bem onde está (…) a garantia são os títulos, mas isso não quer dizer que a colecção desapareça daqui».

Num ponto tem Berardo razão, nada indicia que a colecção desapareça dali. A execução da penhora, em princípio, obriga os bancos que a mandaram executar a cumprir os compromissos assumidos pela Associação Colecção Berardo.

«Tudo isto é obsceno para qualquer português trabalhador que compre um T0, recorra à banca e seja despejado por ficar desempregado e impedido de cumprir as obrigações do contrato de crédito.»

Uma das coisas que poderá suceder é a substituição de Berardo e seus pares nessa associação, por representantes dos bancos na Associação Colecção Berardo com reflexos, à luz do protocolo, na constituição da administração da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea-Colecção Berardo, que gere a colecção em exibição no CCB o que, olhando para as negociações Berardo-banca dos últimos dez anos, não dá certezas nenhumas, sobretudo por o Estado, antes de rever o protocolo, não ter acautelado essa situação mais do que previsível que até poderia ter tornado mais consistente a expressa intenção comprar em definitivo a colecção.

Negociar com Berardo não é o mesmo que negociar com os bancos, sobretudo quando entre os executantes da penhora há um banco público, a CGD, com 40% tem uma das posições mais importantes, a par do BCP e outro, o Novo Banco com 20%, em que o Estado, depois da venda à Lone Star, ficou com 25% do capital, e há uma colecção de arte por resolver.

Seria escandaloso que esses bancos em que o Estado tem posições significativas, e que têm sido mãos rotas para o Berardo, fossem mãos fuinhas com o Estado, não se chegasse a um acordo exequível. Haverá outra questão para resolver: qual o lugar do comendador na administração da Fundação, porque no protocolo original, deve ter transitado para o actual, se consigna que José Manuel Berardo é, a título vitalício, presidente da Fundação que gere os destinos da colecção estacionada no CCB com mais cinco administradores, dois nomeados por ele, dois pelo Estado e um de comum acordo.

Um nó para desatar que só por desatinada tonteira foi atado no protocolo primeiro e, pelo que estava mais que anunciado, não foi prevenida por ainda mais desatinada desatenção na negociação do segundo protocolo.

Os empréstimos contraídos por Berardo, os que estão no centro deste imbróglio, são o dobro dos 500 milhões sob colateral garantia da colecção de arte.

A CGD e o BCP concederam 400 milhões de euros, o Novo Banco, na altura BES, 200 milhões. Mil milhões de euros que foram «investidos», na compra de acções do BCP, a 3,9 euros por acção, e que hoje valem 0,2394 cêntimos (cotação média às 11h do dia 16 de Agosto).

Os mil milhões de euros evaporaram-se, deixaram um resíduo de pouco mais de 61 mil euros, o seu valor actual. Uma excelente demonstração do que Marx chamava capital sombra. Só existe enquanto gera um lucro fictício.

Isto de chamar investimento a uma operação que nada produz, é meramente especulativa, é uma piada de mau gosto muito do agrado de muitos analistas económicos, que também apelidam Berardo de empresário contra a opinião do próprio, que aos quatro ventos mediáticos berra, ou já berrou quando o vento era favorável, que é um especulador.

No meio deste folhetim quem se deve estar a rir, naquele seu jeito crasso, é o comendador Joe Berardo, um belo espécime do capitalismo em que é possível fazer dinheiro sem produzir nada.

Muito do crédito que lhe tem sido concedido para negociatas já deve ter sido atirado pelos credores para o caixote das imparidades. É escandaloso que o comendador, depois de conseguir prolongar o prazo dos empréstimos, congelar os pagamentos dos juros por mais quatro ou cinco anos, diga que, «para não fugir às suas responsabilidades», tinha reforçado as garantias, os 75% da colecção Berardo, que não cobrem sequer metade do empréstimo contraído conseguindo, sabe-se lá porquê, que a Quinta da Bacalhoa ficasse de fora.

Alguém estava à espera que ele se preocupasse em não trair o seu altissonantemente proclamado amor à arte? Numa curva mais apertada derrapa, o amor à arte estampa-se no primeiro pedregulho perdido na autoestrada da Bolsa. A execução da penhora são os cornos do destino que trespassaram um inútil que nunca produziu nada, à excepcão de umas garrafas de vinho que já tinham nome feito.

Tudo isto é obsceno para qualquer português trabalhador que compre um T0, recorra à banca e seja despejado por ficar desempregado e impedido de cumprir as obrigações do contrato de crédito.

Um bródio para Berardo, que continua ao leme da Nau Catrineta a navegar pelos mares do seu putativo amor à arte e tem muito que contar, enquanto vai largando frases imbecis como as que ainda recentemente debitou, culpando os especuladores (ele arrancou essa medalha que ostentava e tinha cravado na lapela do casaco?) pela crise, preconizando que é preciso inventar uma nova democracia ou um novo género de ditadura, com inevitáveis elogios a Salazar e nostalgias da velha ditadura, apregoando que a situação que se vive em Portugal não é digna de «um povo que dominou o mar há duzentos anos».

Grande e erudito comendador, sempre no seu português entaramelado e gramaticalmente futebolístico, do chuto em frente vá parar a bola onde for parar, esquecido dos tempos em que se orgulhava de ser um especulador e, não é esquecimento é ignorância, que há duzentos anos o mar era cruzado por uma corte que zarpava em fuga para o Brasil.

1.2- As telenovelas do amor às artes e do investimento em arte

O amor à arte do Berardo começa quando as máquinas em que lavava o cupão ameaçaram gripar. O lavador era Pedro Caldeira, corretor oficial da Bolsa que fez negócios de milhões nos anos 1985 até 1987, quando se andava a «comprar gato por lebre», como disse Cavaco primeiro-ministro antecipando o crash bolsista.

Francisco Capelo, sócio de Caldeira, vendo crescer o incêndio em que Caldeira iria ser devorado, avisou Berardo que as máquinas onde ele lavava regularmente o cupão, fugindo a pagar ao fisco milhares de contos, iam queimar os disjuntores. Berardo retirou os fundos que tinha entregue a Caldeira acelerando a sua queda.

Francisco Capelo tornou-se colaborador próximo de Berardo, convence-o a investir em arte. Desperta-lhe um amor súbito e avassalador pelas artes. Deve ter sido uma fantástica revelação descobrir que Dubuffet não era uma cadeia de restaurantes, Duchamp uma linha de cosméticos, Yves Klein, uma marca de jeans, mas artistas que produziam umas coisas chamadas obras de arte que tinham a particularidade de não se desvalorizarem.

«Pela lógica de Capelo, os fundos seriam estúpidos. Nem os manipuladores do fundo são estúpidos (outras histórias para contar) nem o é Capelo, que pregava para o aquário do mundo das artes onde nadam muitos peixes que acreditavam e acreditam ou fingiam e fingem acreditar nessas lérias.»

Uma coisa é certa, Berardo é um óptimo farejador. Rapidamente percebe, do lado dos bens materiais, o interesse em explorar esse nicho de mercado que andava com os preços em baixa. Do lado dos bens imateriais, o estatuto social a que se alcandoraria e, entre os meios intelectuais, a corte que rapidamente recrutaria a baixo custo.

Essa reviravolta começa a ser notada no mundo dos leilões a partir de 1993. Torna-se tão frenética que, no final de 94, a Art News falava de um «Portugal's mystery man» que agitava, sob anonimato, os leilões desses anos de crise. Depois de Francisco Capelo se dar a conhecer, The Art Newspaper noticia que sempre que ele é visto nas salas dos leilões já se prevê o entusiasmo com que licitará obras para a colecção Berardo.

Capelo homem ligado à banca de investimentos depois da experiência adquirida na corretagem, «a minha vida é fazer negócios», com o lastro da «arte de fazer dinheiro, minha e do comendador, não é má», atirou-se ao mercado numa altura em que os preços se tinham afundado, depois da grande especulação dos anos 80.

As galerias estavam crivadas de dívidas à banca, sendo obrigadas a vender os seus activos e não tinham capacidade para renovar stocks, fossem melhores ou piores.

As obras de arte dos anos pós-guerra estavam a preço de saldo por serem raríssimos os compradores. São os anos felizes em que se tornou numa estrela do mercado das artes e, justiça seja feita, construir uma colecção coerente, independentemente das avaliações estéticas. Ele sabe, bem sabe, que comprar uma obra de arte por maior que seja a paixão, enredo em que não se deixa enredar, é sempre um investimento apesar de dizer que «isso é uma estupidez (…) as pessoas que dizem que compram arte para ganhar dinheiro vão perder de certeza, porque não é essa a atitude para comprar arte».

Diz isto, sem uma ruga de dúvida, quando o historiador Hendrik Willem van Loon afirma, preto no branco, que «a arte é melhor barómetro do que está a acontecer no nosso mundo. É melhor que o mercado de acções ou os debates no congresso». Nesses anos por cá a Banifundos, a sociedade gestora de fundos do Banif, foi autorizada pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, o supervisor do mercado financeiro, a abrir as portas a quem quisesse investir em arte através de um fundo de investimento, o Art Invest.

O seu principal património, 63%, era o The Fine Art Fund, o primeiro fundo do The Fine Art Fund Group, um fundo gerido em Londres, embora esteja constituído sob a forma de uma sociedade em Delaware, no EUA. O prospecto da oferta pública de subscrição do Art Invest alertava que o The Fine Art Fund, é «um fundo que não está sujeito a nenhuma entidade reguladora nem supervisora acarretando por esse motivo um risco acrescido». Risco acrescido ou benefício acrescido para os subscritores a quem era concedida a graça, a quem investisse 150 mil euros nesse cabaz de bens artísticos, de levar temporariamente algumas obras de arte para casa. Um amor à arte com prazo de validade.

Capelo faz aquelas afirmações com uma convicção inoxidável, quando um banco de negócios entra no universo banca por essa altura, o Banco Privado Português (BPP) de Rendeiro, Berardo accionista começa em 2004 a entrar nas artes com um novo produto financeiro, um fundo internacional de investimentos em arte, com dez por cento do capital assegurado pelo próprio banco, projecto que visava de início constituir uma colecção que poderia vir a ser vendida em bloco, ao fim de dez anos.

O fundo evoluiu para uma fundação, a Ellipse Foundation, com sede na Holanda. João Rendeiro, o celebrado banqueiro que oito dias antes do BPP falir lançou, com pompa e circunstância, um livro Testemunho de um Banqueiro com o subtítulo A história de quem venceu nos mercados e um autocolante a pregoar Invista com segurança – 10 conselhos, diz que isso «nunca foi ponderado embora o projecto tivesse uma componente de investimento em relação aos participantes na fundação». Será preciso fazer um desenho? Se calhar para o Capelo é.

As compras eram feitas por uma comissão especializada de curadores, bem incrustados no sistema que às incompatibilidades dizem nada. Um tem um longo percurso de natação nas artes e viria a ser assessor para a cultura de Sócrates – primeiro-ministro, outro era director do Museu do Chiado o terceiro era curador do banco Morgan.

Isto gerou alguma controvérsia, com bastante complacência da imprensa cultural lusitana, brandura que não teve a revista espanhola Exit Express num editorial intitulado «Elíticamente Tuyo». Mais tarde voltou, aliás, a fazer referência ao assunto.

Essa equipa, assessorada por outros nomes sonantes, seleccionava e comprava obras de arte com maior potencial de valorização no mercado para garantir aos investidores uma rápida rentabilização. São dois fundos de investimentos em arte, sob a forma de fundação ou não. São comparáveis aos hedge fund, com a diferença de a possibilidade de replicação do investimento ser mais segura, os activos não desvalorizarem.

Pela lógica de Capelo, os fundos seriam estúpidos. Nem os manipuladores do fundo são estúpidos (outras histórias para contar) nem o é Capelo, que pregava para o aquário do mundo das artes onde nadam muitos peixes que acreditavam e acreditam ou fingiam e fingem acreditar nessas lérias.

Ele e todos nós sabemos que a obra de arte é filtrada pelos museus, galerias, coleccionadores, instituições públicas, feiras de arte. Que sobre as obras de arte escreve-se em meios de comunicação social, generalistas ou especializados, muitos deles suportados pelos seus circuitos comerciais.

Uma massa flutuante de informação que acaba fixada na(s) História(s) de Arte que desse modo as certificam. Na arte, a história e a crítica valem dinheiro. Está-se bem perto dos métodos de funcionamento do sistema financeiro em que Capelo é especialista.

Também sabe, como todos nós sabemos, que as galerias de arte, os museus e as colecções de arte polarizam artistas e público. Codificam preconceitos e reforçam a imagem de uma classe média e média-alta. Que aí a estética é transformada em elitismo através do pretensiosismo social, financeiro e intelectual.

Que esses, em última análise, são locais onde se vendem estacionam ou coleccionam objectos de arte, onde o artista é um indivíduo comercial disfarçado por um espaço institucionalizado que o protege da análise e crítica do público. É uma estultícia mistificar esse universo onde, nos nossos dias, convivem Piero de la Francesca, Rembrandt, Picasso, Matisse com Hirst, Koons, Tracey Emin, Warhol ou, por cá, para nos limitarmos aos contemporâneos e a quatro nomes, Júlio Pomar e Paula Rego com Joana Vasconcelos e Barahona Possollo.

A arte é actualmente um nicho do mercado dos objectos de luxo. Isto é possível porque a crítica de arte está reduzida a uma espécie de crónica e de promoção publicitária dos artistas sem colocar questões de ordem estética, poética ou até relacionadas com a história de arte. São um instrumento do mercado. Desnudar, desvendar os mecanismos económicos e institucionais em que se fundam não tem comprometido a sua credibilidade cultural nem a sua credibilidade comercial e mundana. Aliás essas desmistificações, por mais sérias e credenciadas que sejam, são sistematicamente remetidas para locais onde se espera fiquem sepultadas.

Raramente ultrapassam os muros que defendem a rede de interesses económicos que domina o mercado e impõe, com arrogância ou manhosamente, os seus ditames. É o triunfo do economicismo puro e simples que para Ariel Kolnai, Le Degout, não é repugnante, quando procede segundo uma lógica abstracta da qual a vida está excluída. Passa «a ser repugnante quando se entrincheira por detrás dos valores, da ideologia, ou seja, por detrás duma afectividade enganadora e hipócrita». A instituição da arte contemporânea torna-se repugnante quando oculta o seu carácter de mercado de bens de luxo por detrás da exaltação retórica de um idealismo estético em que ninguém acredita.

(continua)

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