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As Armas e o Povo (1975) é um filme coletivo feito por vários técnicos e realizadores, entre os quais Acácio de Almeida, Sá Caetano, José Fonseca e Costa, Eduardo Geada, António Escudeiro, Fernando Lopes, António de Macedo, João Moedas Miguel, João César Monteiro, Elso Roque, Henrique Espírito Santo, Artur Semedo, Fernando Matos Silva, João Matos Silva, Manuel Costa e Silva, Luís Galvão Teles, António da Cunha Telles, António-Pedro Vasconcelos, Monique Rutler e Glauber Rocha, então no exílio na Europa. Nasceu de um sentimento de emergência: filmar o primeiro 1.º de Maio em liberdade com o maior número possível de câmaras e equipas, a que se juntariam imagens tomadas por amadores e profissionais, do cinema e da televisão, desde o dia 25 de Abril de 1974. Foi um esforço complexo, cheio de peripécias e episódios rocambolescos (como a «libertação» de película originalmente destinada a um filme de Manoel de Oliveira que estava guardada na Tobis), de improviso e voluntarismo (todas as entrevistas), mas também de planeamento e antevisão (a Almirante Reis filmada do topo do prédio mais alto do Areeiro, ou os discursos de Cunhal e Soares filmados de um palanque criteriosamente colocado).

«As Armas e o Povo é um documento único, testemunho de um tempo excecional partilhado por quem é filmado e por quem filma»

 

Entre os acontecimentos do 25 de Abril e do 1.º de Maio de 1974, As Armas e o Povo mostra-nos ainda a libertação dos presos políticos e a chegada a Lisboa de Cunhal e Soares. Mas o corpo do filme é dedicado às celebrações do 1.º de Maio em Lisboa, mostrando uma massa imensa de gente nas ruas que vai desaguar no antigo estádio do INATEL (agora, «1.º de Maio») para ouvir vários sindicalistas e os discursos de Soares e Cunhal. Ao longo de todo o filme, vemos ainda as entrevistas «relâmpago» de Glauber Rocha, o cineasta brasileiro que se encontrava exilado na Europa naquela data, filmadas a cores, em vários pontos da cidade e num bairro dos arredores.

As Armas e o Povo é um documento único, testemunho de um tempo excecional partilhado por quem é filmado e por quem filma, e em que cada frase e cada plano são uma explosão de sentimentos e de afirmações, emocionadas, de quem tem a certeza absoluta de que tudo seria possível dali para a frente. Exemplo brilhante do cinema militante europeu e latino-americano dos anos 70, o filme tem a dupla intenção de registar um presente com dimensão histórica e de estimular quem o visse a perceber que esse presente precisava de todos para se tornar futuro. Esta segunda dimensão falhou, uma vez que o filme foi pouco visto no seu tempo, tendo tido apenas duas exibições públicas conhecidas em 1977, seguida de passagens esporádicas na Cinemateca a partir de 1980.

Aguardava-se, portanto, com muita expectativa que o filme começasse uma segunda vida após a sua digitalização pela Cinemateca, operação que permitirá a sua edição em DVD — acompanhada de um curto documentário de Manuel Mozos com entrevistas a vários participantes do filme —, e sobretudo o seu regresso às salas de cinema. Mas também este processo de redescobrimento do filme pareceu frustrado pela pandemia da Covid-19. Estava a história da pouca visibilidade do filme destinada a repetir-se? Felizmente, isso não veio a acontecer, porque o filme foi exibido na RTP1 na noite do 25 de Abril deste ano, encontrando-se também temporariamente disponível, com muitos outros filmes e documentos, num sítio criado pela Cinemateca para assinalar os 46 anos da Revolução.

«Exemplo brilhante do cinema militante europeu e latino-americano dos anos 70, o filme tem a dupla intenção de registar um presente com dimensão histórica e de estimular quem o visse a perceber que esse presente precisava de todos para se tornar futuro.»

 

A emissão do filme na televisão foi um momento extraordinário sobre o qual vale a pena refletir. Em primeiro lugar, foi extraordinário pela possibilidade de o mostrar (em horário nobre) a um público tão alargado e que, em muitos casos, o via apenas agora pela primeira vez. Mesmo sem ter acesso aos dados sobre as audiências, não tenho a menor dúvida que, naquela noite, As Armas e o Povo foi visto por mais pessoas do que durante toda a sua história. Em segundo lugar, a experiência da emissão televisiva, naquele dia tão especial e num momento em que as tradicionais celebrações do 25 de Abril e do 1.º de Maio foram suspensas, pareceu-me recuperar a experiência do que era ver cinema na televisão antes da multiplicação de canais, antes do cabo, do time shifting (com as «boxes») e do video on demand. Nesses tempos, todos víamos o mesmo filme – ou o telejornal, ou o novo episódio do Bonanza — no mesmo dia, à mesma hora e ao mesmo tempo. Essa televisão do passado proporcionava-nos uma experiência coletiva e simultânea que continuávamos a partilhar no dia seguinte, nas conversas que tinham como premissa a certeza que o nosso interlocutor também tinha visto o mesmo que nós.

«Na melhor homenagem que poderia ter sido feita ao espírito de Abril e ao espírito da feitura coletiva do filme, juntou-se agora este estranho, um pouco agridoce, mas também maravilhoso, visionamento coletivo do filme.»

 

Não podia haver maior paradoxo do que ver um filme que mostra tantos milhares de pessoas nas ruas numa altura em que estamos impedidos de voltar a ocupar essas mesmas ruas para celebrar o 25 de Abril e o 1.º de Maio. Dia 25 de Abril à noite, muitos de nós voltámos a essa experiência de televisão «comunitária», quando, às 22h, sintonizámos o mesmo canal e, todos juntos, embora separados e confinados, vimos do interior das nossas casas as multidões colossais que encheram as ruas há precisamente 46 anos. E, hoje, aí estão as mensagens nas redes sociais, os telefonemas e as videochamadas em que comentamos o filme que vimos e, sobretudo, em que partilhamos o que sentimos ao ver esse filme. Houve pessoas que se reconheceram, então jovens, e que recordaram o que sentiram — a alegria, a esperança — naquele instante em que a câmara as registou. Houve outros que se emocionaram ao reconhecerem figuras públicas, amigos e familiares entretanto falecidos, da política às artes, do sindicalismo ao cinema e ao jornalismo. Outros, ficaram deslumbrados com a nitidez da fotografia e a vividez das cores, capazes de os transpor novamente para aquele passado ou de trazer aquele instante para o nosso presente. Muitos, emocionaram-se com as longas sequências da libertação dos presos políticos, em vez dos breves excertos que estamos habituados a ver. Outros, falaram de como gostaram da atenção dada às mulheres e da força das suas palavras. Outros, ainda, notaram a presença – e a voz – no filme de vários negros e os slogans contra o racismo e o colonialismo. Muitos, também, impressionaram-se com a meticulosa mise en scène dos discursos de Soares e de Cunhal, a antecipar o célebre debate televisivo que teria lugar no ano seguinte: de um lado, o improviso populista de Soares e a sua linguagem corporal emproada, do outro, o texto lido por Cunhal e o excesso simbólico de puxar dois militares para o ladearem durante o hino nacional.

As Armas e o Povo tocou profundamente quem viu agora o filme pela primeira, ou quem o redescobriu nesta nova cópia. Na melhor homenagem que poderia ter sido feita ao espírito de Abril e ao espírito da feitura coletiva do filme, juntou-se agora este estranho, um pouco agridoce, mas também maravilhoso, visionamento coletivo do filme. A experiência televisiva do filme recordou-nos o poder maravilhoso do cinema e de todas as coisas que se fazem em conjunto, ontem como hoje.

O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AE90)