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|50 Anos de Futuro

As conquistas de Abril e o desenvolvimento das crianças

As relações e os ambientes familiares são preponderantes nos primeiros anos de vida e muito salientes nos anos que caracterizam a segunda infância e adolescência.

Crianças de várias escolas básicas de Coimbra manifestam-se, em frente à Câmara Municipal, contra o trabalho infantil
Crianças de várias escolas básicas de Coimbra manifestam-se, em frente à Câmara Municipal, contra o trabalho infantilCréditosPaulo Novais / Agência Lusa

Induzido pela frescura da recente celebração 25 de Abril e pela coincidência de, em conjunto com os alunos de Mestrado de Psicologia e Psicopatologia do Desenvolvimento, ter realizado recentemente uma revisão do estado da arte sobre adversidade, pobreza, resiliência, e o delineamento de trajectórias de desenvolvimento socioemocional, ajustamento e saúde mental, pareceu útil partilhar algumas ideias que procurarei relacionar com as conquistas de Abril e a outras que, na senda de Abril, continuam ainda por concretizar, cabendo às nossas gerações esse desígnio.

1) Se os modelos clássicos de psicopatologia davam a ideia de que a resiliência era uma característica dos indivíduos, as últimas quatro décadas de psicopatologia do desenvolvimento, (valendo-se de estudos longitudinais focados na complexidade multideterministica do desenvolvimento das pessoas, tendo em conta o tempo e o contexto), revelam bem outro panorama. O que a evidência acumulada sugere é que a maturação de estruturas, capacidades e competências, em diversos domínios do desenvolvimento (ex.: neurológicos, psicomotores, emocionais, cognitivos, personalidade, socialização, etc.), deve-se mais ao balanço entre experiências adversas e favoráveis a que as pessoas estão sujeitas no decurso da sua vida (de acordo com o grau de maturação evolutiva), e aos períodos do desenvolvimento em que as adversidades ocorrem, que a qualquer essência constitutiva dos indivíduos.

Assim, à luz da evidência empírica, os fenómenos caracterizados como resilientes não se ficam a dever a uma característica individual misteriosa ou a uma eventual vigorosa vontade subjectiva de alguns.

«a visão da comunidade científica sobre o conceito de resiliência mudou significativamente. Hoje em dia é bastante aceite que são os processos desenvolvimentais, as ecologias e os contextos relacionais dos indivíduos que probabilisticamente favorecem, ou não, as trajectórias de desenvolvimento que conduzem a resultados mais ou menos resilientes face às adversidades vivenciadas»

É certo que os resultados positivos de ajustamento face à adversidade, isto é, resilientes, resultam em benefícios para os indivíduos. Mas estes resultados de ajustamento social (avaliados maioritariamente com medidas gerais e globais de sucesso académico, popularidade na rede de pares, escolaridade, medidas gerais de bem-estar, etc.) são melhor explicados pela interacção entre a idade, intensidade, durabilidade dos efeitos directos (interacções onde o sujeito participa) ou indirectos, dos factores de risco e factores protectores nos indivíduos e seus contextos. Por outro lado, os estudos sobre resiliência ensinam-nos que, mesmo quando os sujeitos obtêm valores de ajustamento nestas medidas gerais de adopção, tal não deve ser interpretado como se esses resultados excluíssem a presença de sofrimento psicológico significativo, ou mesmo perturbações psicoafectivas que tendem a permanecer encobertas a este tipo de medidas (ex. problemas internalizados, baixa auto-estima, sintomas depressivos ou ansiosos).

As características individuais dos sujeitos (genéticas, neurológicas, fisiológicas, comportamentais, emocionais e cognitivas, etc.) e a «susceptibilidade estatística» para determinados resultados, são mediadas ou moderadas pelo encaixe dinâmico com as vicissitudes dos contextos relacionais mais próximos e pela ecologia social e cultural em que estes se inscrevem. É esta interacção conjunta de factores que determina, por um lado, os estímulos disponíveis e as experiências em que os sujeitos participam e, por outro, o modo como são individual e/ou colectivamente subjectivadas.

Por esse motivo, a visão da comunidade científica sobre o conceito de resiliência mudou significativamente. Hoje em dia é bastante aceite que são os processos desenvolvimentais, as ecologias e os contextos relacionais dos indivíduos que probabilisticamente favorecem, ou não, as trajectórias de desenvolvimento que conduzem a resultados mais ou menos resilientes face às adversidades vivenciadas.

2) O efeito da pobreza nas trajectórias desenvolvimentais dos indivíduos, quando estudada na sua complexidade, vai muito para além do que é evidenciado pelos estudos que se limitam a definir a pobreza como uma variável sócio-demográfica (ex: estatuto sócio-económico). A pobreza, como fenómeno extenso e complexo, social, familiar e individual, envolve um amplo conjunto de factores e múltiplos domínios da existência que interagem com os processos psicológicos e sociais. Nas situações de pobreza, estes factores estão associados cumulativamente à experiência que os indivíduos fazem das suas frágeis ecologias. O acesso limitado a recursos de segurança, proteção, saúde, educação e cultura prevalece. Os contextos relacionais são com frequência adversos, com elevados índices de desafios e instabilidade, a presença de stress e o stress nocivo, caracterizam muitas das relações próximas. É comum a ruptura de redes sociais de suporte e, por vezes, a violência domina as relações.

As situações de pobreza duradoura são caracterizadas por um desequilíbrio entre a presença mais vincada de factores de risco e reduzida de factores protectores. Nestas ecologias e contextos relacionais, os processos desenvolvimentais das crianças e jovens estão sujeitos à presença de múltiplas experiências desfavoráveis ou pouco favoráveis, com negativos efeitos cumulativos em múltiplos níveis: orgânicos, comportamentais, emocionais, cognitivos, relacionais e sociais. Mais ainda, estes efeitos têm tendência para escalar entre si.

Quando situações de vulnerabilidade como a pobreza são duradouras e intensas, tendem a estar fortemente associadas ao desenvolvimento de stress familiar, que por sua vez, pode estar associada a baixa disponibilidade psicológica e afectiva nas relações parentais (ex: os cuidadores têm que manter vários trabalhos tendencialmente precários e actividades instáveis como fonte de rendimento; é frequente o conflito relacional no casal e a degradação da comunicação no sistema de relações familiar, entre outros). Estas circunstâncias podem conduzir alguns cuidadores a adoptar estratégias parentais mais coercivas ou indulgentes, podendo nas situações mais graves gerar fenómenos de negligência e maus-tratos.

«A pobreza, como fenómeno extenso e complexo, social, familiar e individual, envolve um amplo conjunto de factores e múltiplos domínios da existência que interagem com os processos psicológicos e sociais. Nas situações de pobreza, estes factores estão associados cumulativamente à experiência que os indivíduos fazem das suas frágeis ecologias. O acesso limitado a recursos de segurança, proteção, saúde, educação e cultura prevalece»

A presença destes factores de risco no contexto familiar está associada à emergência nas crianças de sintomas e problemas internalizados (ansiedade, depressão, etc.) e/ou externalizados (agitação, problemas de conduta, de oposição, etc.), que se associam, no curso do seu desenvolvimento, a dificuldades de integração nas relações com os pares ou ao baixo rendimento escolar. Estes, por sua vez, associam-se também à emergência de problemas de ansiedade e depressão ou a comportamentos de risco, condutas delinquentes, consumos de substâncias, precocidade de condutas sexuais e gravidez na adolescência, entre outros problemas sociais e de saúde.

Ainda que os efeitos «compensadores» de experiências favoráveis e factores protectores tenham um papel a desempenhar na probabilidade com que certos processos conduzem a resultados negativos no desenvolvimento, a interacção em escalada dos factores de risco que caracterizam a complexidade fenomenológica das situações de pobreza, tende a atingir diversos domínios do desenvolvimento individual, da personalidade e diversas áreas do funcionamento das famílias. Adicionalmente, o acesso reduzido a diferentes estruturas e recursos formais das comunidades, à cultura e dinâmicas relacionais na vizinhança e comunidade mais alargada, canalizam trajectórias de vida que em parte tendem a perpetuar-se por gerações.

3) As relações e os ambientes familiares são preponderantes nos primeiros anos de vida e muito salientes nos anos que caracterizam a segunda infância e adolescência. A qualidade afectiva das relações familiares, por um lado, e o amplo impacto das funções da parentalidade, por outro, são factores cuja função reguladora face às experiências favoráveis ou adversas é central.

No entanto, as famílias existem em ecologias precisas e contextos sociais com dinâmicas específicas. A qualidade e o efeito positivo do contexto familiar é mediada, por vezes moderada, pela maior ou menor presença, maior ou menor durabilidade de factores de risco e stressores. O acesso a recursos de saúde, educação, protecção social, apoio à gravidez e à parentalidade durante as idades de desenvolvimento, não são abstracções e meras sensibilidades humanistas, têm efeitos concretos positivos nos processos desenvolvimento das crianças, mas também, no funcionamento das famílias, rotinas e práticas parentais, constituindo-se como factores protectores de experiências favoráveis. O desemprego, a precariedade, os baixos salários, a mobilidade laboral, a desregulação dos horários e dias de trabalho, por sua vez, são fonte efectiva de stress e de redução da disponibilidade psicológica e emocional dos cuidadores das crianças.

Posto isto, torna-se então evidente que as conquistas de Abril, no seu enquadramento histórico, foram bem mais extensas e não se esgotaram naquelas que dizem respeito à liberdade de expressão e associação política. Colocando fim a 48 anos de regime fascista, tempo de obscurantismo, opressão e esmagamento da liberdade, o 25 de Abril pôs fim à marginalização dos trabalhadores e do povo da vida política activa do país. Não podemos esquecer, que é somente com o papel activo do povo a influir nas escolhas de novas políticas que se perspectivaram os caminhos do desenvolvimento do país e a construção de uma sociedade mais livre e democrática, porque mais justa na redistribuição da riqueza. Modificou-se a subordinação do país e do povo aos interesses de uma minoria de grandes monopolistas e latifundiários, aliados do grande capital e do imperialismo.

Essencialmente, a subordinação do poder económico ao poder político democrático, assente no controlo social dos sectores básicos e estratégicos da economia, com o Estado a ter o papel essencial na dinamização do desenvolvimento económico, permitiu o investimento público na defesa e promoção da produção nacional, garantindo direitos aos trabalhadores e às famílias. O direito ao trabalho com direitos, indissociável de justa remuneração, o direito a dignas condições de vida, à rede de saneamento, aos transportes públicos, à valorização dos serviços e funções sociais do Estado, em particular à Educação, Saúde e Segurança Social, pública e universal. Estas mudanças tiveram forte impacto na melhoria e reforço dos factores protectores. do desenvolvimento da generalidade das crianças em Portugal.

«é importante continuar não só a defender as conquistas de Abril, como a lutar pelas que ainda hoje são alvo de ameaça. Como os direitos das crianças a brincar livremente, a usufruir de espaços e contextos informais de interacção e socialização entre pares e outras figuras da comunidade, hoje em dia postos em causa pela combinação de vários factores desfavoráveis ao desenvolvimento e funcionamento das famílias»

A revolução de Abril representou, neste respeito, um passo de gigante na transformação das ecologias e contextos de desenvolvimento das crianças. Não só incrementou factores protectores como reduziu factores de risco para as trajectórias desenvolvimentais. Disso são exemplos a melhoria muito significativa de indicadores como o analfabetismo, a mortalidade infantil, o trabalho infantil, a quase eliminação da fome, a redução dos índices de pobreza, o aumento da escolaridade obrigatória, o aumento de jovens com formação superior, etc. Não se tratou somente de nivelar as oportunidades, como se costuma dizer, mas sim, de aumentar e generalizar oportunidades de experiências favoráveis.

As conquistas políticas do 25 de Abril foram também conquistas para as crianças e jovens de Portugal, uma vez que tiveram um forte impacto à escala nacional em efectivar direitos e contribuir para contextos de desenvolvimento mais favoráveis a trajectórias de vida positivas mais generalizadas na população.

Não obstante, é importante continuar não só a defender as conquistas de Abril, como a lutar pelas que ainda hoje são alvo de ameaça. Como os direitos das crianças a brincar livremente, a usufruir de espaços e contextos informais de interacção e socialização entre pares e outras figuras da comunidade, hoje em dia postos em causa pela combinação de vários factores desfavoráveis ao desenvolvimento e funcionamento das famílias. Neste respeito, pensamos com preocupação nas condições de vida que, fruto de escolhas políticas e das crises económicas que marcam o nosso século, afectam muitas famílias e crianças em Portugal. É exemplo o flagelo da pobreza a aumentar de novo, fruto de políticas que conduzem ao aumento de factores de risco nas famílias: o desemprego, a precariedade, os baixos salários, a mobilidade e desregulação dos horários e dias de trabalho. Factores, que combinados, fazem perigar os tempos de qualidade em família e colocam em risco a capacidade para o desempenho da parentalidade.

A estes aspectos, acrescem outras assimetrias ecológicas resultantes das políticas dominantes. Por exemplo, associado à mudanças nas actividades produtivas e a fenómenos de gentrificação, nas sociedades ocidentalizadas e nos centros urbanos cosmopolitas, assiste-se à progressiva deterioração das redes informais de suporte social e das comunidades em vizinhança, com a descaracterização dos espaços urbanos e com o não planeamento de espaços e «estruturas» urbanas fundamentais ao desenvolvimento das crianças, à brincadeira e socialização livre e espontânea, à convivência entre famílias e na comunidade.

Neste sentido, hoje ainda é importante lutar e defender as alterações de política que visem a promoção de ambientes familiares, diríamos, «suficientemente bons». Políticas que alterem o balanço entre factores de risco e protectores em sentido favorável. Políticas que, para além das respostas reparadoras face à vulnerabilidade, cumpram a função preventiva e promotora do desenvolvimento, que proporcionem experiências adequadas, favoráveis e estimulantes. Políticas que favoreçam trajectórias de desenvolvimento às gerações futuras, que correspondam à oportunidade de desenvolverem melhores capacidades sociais, emocionais, cognitivas e com menos problemas ao nível da saúde mental. Políticas que fomentem ecologias e contextos característicos dos processos desenvolvimentais resilientes face à vulnerabilidade e adversidade que a vida sempre comporta.

Bruno Raposo Ferreira é Psicólogo Clínico, Psicanalista, Docente de Psicologia e Psicopatologia do Desenvolvimento no Mestrado Psicologia e Psicopatologia do Desenvolvimento e Investigador no William James Center for Research | ISPA-IU.

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