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Continuar a caminhar

O consenso de que a ditadura cometeu genocídio é a base fundacional da democracia argentina. O que se pode, então, esperar da destruição desse consenso?

Familiares de vítimas do terrorismo de Estado que passaram pelo centro de detenção, tortura e morte Campo de Maio, durante a ditadura (1976-1983) CréditosCarolina Camps / Página 12

Há anos atrás, numa parede de Buenos Aires, encontrei num cartaz esta frase de Juan Gelman, poeta, jornalista e tradutor argentino: «No se puede dejar descansar a la memoria, no se puede uno arrellanar en la comodidad del olvido, porque el hombre ¿es memoria o qué?». Fotografei o cartaz e trouxe comigo a frase e as ideias que lhe dão força e que nos permitem construir questões e reflexões.

Vale a pena relembrar: para que nos serve, então, o trabalho da memória? O que queremos recordar, enquanto comunidade? E o que fazemos com o passado? No seu discurso, quando foi galardoado com o Prémio Cervantes, em 2007, Juan Gelman disse: «Hay quienes vilipendian este esfuerzo de memoria. Dicen que no hay que remover el pasado, que no hay que tener ojos en la nuca, que hay que mirar hacia adelante y no encarnizarse en reabrir viejas heridas. Están perfectamente equivocados. Las heridas aún no están cerradas. Laten en el subsuelo de la sociedad como un cáncer sin sosiego. Su único tratamiento es la verdad. Y luego, la justicia.» Mas há que continuar a  ter «olhos na nuca», a não deixar de pensar o passado. Porque o esquecimento é cómodo, mas também perigoso. Não se pode olhar unicamente para a frente. Porque as feridas, afinal, não estão saradas. Ardem, ainda. Não devem, por isso, ficar sem resposta, sem «tratamento». Como é possível existir esse «para a frente», sem se resolver o passado?

«Mas há que continuar a  ter «olhos na nuca», a não deixar de pensar o passado. Porque o esquecimento é cómodo, mas também perigoso.»

A frase de Juan Gelman, encontrada na parede da cidade de Buenos Aires, pode servir, mais uma vez, para interrogarmos o que está a acontecer e o que pode vir a acontecer na Argentina. Mas estas perguntas não se aplicam unicamente, claro está, à conjuntura atual da Argentina. De alguma forma, podem ser trazidas para outros contextos.

Em relação ao que se passa na Argentina, podemos analisar a situação de diferentes lugares. Neste caso, escolho o da memória, sobretudo pensando na sua articulação com a verdade e democracia.

A 19 de novembro de 2023, Javier Milei (o candidato de La Libertad Avanza – LLA) e Victoria Villarruel (que surge associada à direita radical) ganharam a eleição presidencial na Argentina, com 55,7% dos votos, ficando Sergio Massa com 44,3%. Não foi uma surpresa. Mas há, apesar de tudo, um momento de quase incredibilidade. Por momentos, não se quer acreditar. E a inquietação que cresce no peito.

«Villaruel assumiu como vocação de sua vida defender ex-oficiais encarcerados por violação, assassinato e tortura, alguns dos quais  visitou na prisão. Ela recusa-se a usar a palavra "ditadura", a menos que se refira a administrações peronistas democraticamente eleitas, e em vez disso emprega "governo de facto" para a verdadeira ditadura.»

Uki Goñi

As afirmações e as propostas de Milei, durante a campanha eleitoral, não deixaram de causar uma profunda apreensão em vários setores da sociedade argentina, desde a dolarização da economia à questão do fim da possibilidade de interrupção voluntária da gravidez (uma conquista recente e muito significativa da sociedade argentina), até à ideia de que a justiça social é uma «aberração». Trata-se, inequivocamente, de um ataque à sociedede de bem-estar. Também a privatização dos meios de comunicação públicos indicia um ataque à liberdade de expressão.

Mas não devemos esquecer Victoria Villarruel, advogada, que defendeu os militares da ditadura acusados de crimes contra a Humanidade. Tal como relembra Uki Goñi, num artigo publicado no The Guardian, «Villaruel assumiu como vocação de sua vida defender ex-oficiais encarcerados por violação, assassinato e tortura, alguns dos quais  visitou na prisão. Ela recusa-se a usar a palavra "ditadura", a menos que se refira a administrações peronistas democraticamente eleitas, e em vez disso emprega "governo de facto" para a verdadeira ditadura.» A recusa em usar a palavra no contexto histórico correto e adequado é uma forma de suavizar, de amaciar, de adormecer o que significou a ditadura argentina. Porque as palavras contam. Têm peso, significados e sentidos que não podemos escamotear. Mudar o nome, para mudar o sentido. Com outro sentido, permitir a aceitação de determinadas políticas. Mais uma vez, trata-se de um caminho perigoso.

A 19 de novembro de 2023, um comunicado assinado pelas Abuelas de Plaza de Mayo, pelas Madres de Plaza de Mayo Línea Fundadora, Familiares de Desaparecidos y Detenidos por Razones Políticas e H.I.J.O.S. Capital adverte contra o negacionismo em relação aos crimes da ditadura argentina (do qual Milei é uma voz significativa) e contra a apologia do terrorismo de Estado. Relembram: «Há genocidas a votar pela sua impunidade.» Este negacionismo é uma arma poderosa na reinterpretação do passado e nas possibilidades de construção de futuros que não se adivinham democráticos.

O Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO), logo a 20 de novembro, não deixou de «expressar a sua preocupação pelo possível impacto das propostas autoritárias, intolerantes e regressivas» que foram apresentadas pelo candidato que ganhou as eleições. Como se pode ver no caso do aborto, direitos e conquistas correm o risco de serem perdidos.

«Esta vitória, como muitos têm advertido, pode ser entendida como uma ameaça à democracia argentina. Mas a questão não se resume apenas à Argentina. Em certo sentido, encerra a questão mais vasta de luta pelo passado.»

A tomada de posse de Milei está marcada para 10 de dezembro de 2023. No dia em que se cumprem os 40 anos da democracia argentina. Uki Goñi, no já citado artigo, levanta uma questão fundamental, quando afirma que o consenso de que a ditadura cometeu genocídio é a base fundacional da democracia argentina. O que se pode, então, esperar da destruição desse consenso?

Esta vitória, como muitos têm advertido, pode ser entendida como uma ameaça à democracia argentina. Mas a questão não se resume apenas à Argentina. Em certo sentido, encerra a questão mais vasta de luta pelo passado. Porque, afinal, o passado não é uma massa inerte. A sua interpretação tem efeitos e consequências que se estendem ao presente e que determinam o futuro.

A seguir a esta eleição, como em todas as quintas-feiras, as Mães estiveram na Praça de Maio, em Buenos Aires.

E nós estamos lá, com elas. E com todas e todos que resistem.


A autora escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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