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SNS – O ataque continua

A verdadeira História da evolução dos cuidados de saúde em Portugal no último meio século está ainda por fazer, e tem aspectos particulares que colocam o nosso país como um caso particular na Europa.

Créditos / Porto24

Em Abril de 74, os cuidados de saúde estavam invulgarmente atrasados, assentando num rede incipiente de «Caixas», pequenas Misericórdias e nos hospitais do Estado, a que se juntava o exercício individual e fragmentado de pequenos consultórios médicos, não existindo grandes instituições privadas.

A vontade colectiva de reconstruir o país após décadas de ditadura possibilitou a implementação, em poucos meses, de iniciativas como o Serviço Médico à Periferia (1976-1983), que levou a primeira mudança na saúde ao interior do país, com a empenhada participação de jovens médicos, no que constituiu o verdadeiro arranque do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Nenhuma iniciativa deste género (pouco estudada ou falada entre nós) aconteceu noutros países europeus, nomeadamente na última metade do século passado.

Anos de espantoso crescimento do SNS arrancaram Portugal da cauda da Europa (85 mortes/1000 nascimentos em 1960), guindando-o para posições cimeiras nos principais indicadores da Saúde (3 mortes/1000 nascimentos em 2015).

Num recente artigo intitulado «5 Top Countries for Hight-Quality Health Care Around the world», da prestigiada jornalista ligada à Saúde, Elana Glowats (International Business Times 15-3-2017), Portugal é referido como um dos lugares do mundo onde é mais seguro nascer e o que mais melhorou em assistência nessa área.

A partir dos anos noventa, o poder dos grandes interesses passou à ofensiva com o crónico subfinanciamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS), a despudorada partidarização das administrações e chefias clínicas, a transferência massiva de doentes do SNS para os cuidados privados (através dos diversos programas de gestão de listas de espera - PECLEC, SIGIC), a desestruturação das Carreiras Médicas e desnatação dos seus quadros mais diferenciados.

Os lugares, obtidos por concurso no quadro das Carreiras Médicas, foram substituídos pelos mais diversificados tipos de contratos individuais, diminuindo o vínculo e aumentando a precariedade, passando urgências e consultas a serem asseguradas por empresas pagas à hora ou «à peça».

Tudo isso representou um enorme desperdício de eficácia e de dinheiro, hipotecando a estabilidade das equipas e a prestação assistencial, pondo em causa a formação e investigação clinicas, semeando o caos organizativo.

A introdução de taxas «moderadoras» e da lógica desviante centrada na corrida ao «lucro» nos serviços públicos, sacrificando as prioridades clínicas e assistenciais, foi acompanhada pelo encerramento ou fusão de serviços e unidades hospitalares, com devolução de outras às Misericórdias, enquanto surgiam as parcerias público-privadas (PPP) e grandes unidades hospitalares ligadas aos grupos financeiros que investiram na Saúde, cujos lucros cresceram a uma média anual de dois dígitos (segundo dados da própria empresa, o lucro da José de Mello Saúde teve um crescimento de 34,5 % em 2015).

O ataque ao SNS assentou também no denegrir da confiança e prestígio dos seus serviços, com noticiários da TV invadidos com queixas fundadas e infundadas, que a Tutela foi alimentando por recusa ou omissão de qualquer esclarecimento pedagógico, favorecendo simultaneamente a «judicialização» do erro que, conforme o clássico manual da Academia Norte Americana das Ciências «To Err is human – Building a Safe Health System», de 2004, não o evita, antes o aumenta.

«A continuada ofensiva contra o SNS promovida pelos governos PS,PSD e CDS, programada para abrir espaço à implantação e desenvolvimento dos grandes grupos privados, conseguiu mudar substancialmente o panorama da saúde em Portugal.»

As declarações de um ministro da Saúde (Correia de Campos) que chegou a afirmar publicamente que se o pai estivesse doente nunca o levaria a um Serviço de Atendimento Permanente (SAP), lançando o descrédito sobre um atendimento público que se encontrava em plena actividade e sob a sua tutela, são um bom exemplo desse processo de «governo contra o SNS».

Se ainda restasse alguma dúvida sobre essa concertada estratégia privatizadora, afirmações recentes de Jorge Simões (Público 11-3-17), presidente da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) de 2010 a 2016, ajudam ao seu esclarecimento.

«A ERS foi fundada em 2003 num contexto de tendencial privatização do Sistema Nacional de Saúde. No sector público, com a empresarialização dos hospitais e a participação do sector privado na prestação de serviços públicos, em especial através das parcerias público-privadas. No sector privado, com a abertura dos grandes hospitais ligados aos maiores grupos económicos e à banca – BPN, CGD, BES e grupo Mello – também eles ligados às PPP na Saude»…

E o ex-presidente da ERS acrescenta:

«A coligação de governo saída das eleições de 2002 preconizava um sistema de saúde misto assente na complementaridade entre público, social e privado. Este “novo” Sistema Nacional de Saúde baseava-se em redes de cuidados sem que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) se constituísse em referência preferencial.»

Os governos de Sócrates e de Passos Coelho continuaram a avançar no anticonstitucional apagamento do SNS, deixado de ser «referência preferencial» da política governamental, utilizando a expressão do ex-presidente da Entidade Reguladora da Saúde, instituição que também serviu para esmagar os restos da pequena medicina liberal, com taxas e exigências «técnicas» que abafaram os pequenos consultórios.

De resto, sobre a «neutralidade» da regulação, há que dar algum crédito à tardia confissão do ex-ministro Correia de Campos (grande impulsionador da PPP e co-autor, com Jorge Simões, de um livro sobre a Saúde) que, regressado à oposição e mudando a agulha do discurso, afirmou que uma das desvantagens da privatização da saúde é «exigir uma regulação forte», mas que acaba por ser «torneável e susceptível de ser enganada, alimentando conluios e fraudes ainda maiores aos do sistema público» (Público 21-1-13).

A continuada ofensiva contra o SNS promovida pelos governos PS,PSD e CDS, programada para abrir espaço à implantação e desenvolvimento dos grandes grupos privados, conseguiu mudar substancialmente o panorama da saúde em Portugal.

Apesar da sua menor capacidade assistencial e técnica, a (grande) «privada» passou a ser atractiva para muitos doentes que têm alguma capacidade económica ou seguro de saúde (impostos a boa parte da população como condição de empréstimos pedidos à banca), tanto mais que as taxas moderadoras possibilitaram preços concorrenciais na primeira abordagem dos cuidados privados, que exploram uma mão-de-obra médica cada vez mais mal paga.

O SNS, subfinanciado, partidarizado e burocratizado, começou a ser reservado para os mais pobres e para doenças complexas e «caras», menos lucrativas, numa «americanização» de todo o sistema, imitando o pior dos mundos (os USA, mesmo com o enviesado Obamacare, têm um dos mais caros e ineficazes sistema de saúde dos países desenvolvidos).

Ao contrário da propaganda que diz o SNS gastador, insustentável, cheio de desperdícios, dados recentes (OCDE «Health Statistics 2016»), mostram que Portugal teve metade dos gastos per capita que a França e a Alemanha e cerca de um quarto dos USA, tendo resultados semelhantes ou claramente melhores.

PaísDespesa saúde % PIBCustos saúde "per capita"(USD-PPP)Mortalidade infantilEsperança de vida (anos)
Alemanha11,1%4.811,03,3/100080,9
França11,0%4.288,03,5/100082,3
Portugal8,9%2.642,42,9/100080,8
Reino Unido9,8%3.213,23,9/100081,1
EUA16,9%8.745,06/100078,8

Apesar destes resultados (ameaçados pelo contínuo corte no orçamento do SNS), com a progressiva privatização da saúde, apresentada como «natural» e «moderna», as mais chocantes imagens de desumanização da medicina liberal dos Estados Unidos, denunciadas no filme Sicko de Michael Moore, com doentes com cancro expulsos dos hospitais e abandonados à porta de instituições caritativas por lhes ter acabado a cobertura do seguro, passaram a ter a sua réplica em Portugal, com os hospitais privados a despejarem doentes oncológicos a meio do tratamento por falta de pagamento, deixando-os à porta do SNS (que felizmente existe para os socorrer).

Para o declínio dolosamente provocado no SNS, os governos do PS, PSD e CDS encontraram, nos profissionais da saúde, os seus bodes expiatórios.

As queixas registadas por agressões nos locais de trabalho aumentaram de 35, em 2007, para 582, em 2015, segundo a Direcção Geral de Saúde. Estes números, contudo, representam apenas a ponta do icebergue, porque a maior parte dos incidentes, mesmo de alguma gravidade, são resolvidos informalmente não sendo registados.

Também o abuso da dedicação ao trabalho dos profissionais e o preocupante estado de esgotamento em que se encontram, têm sido bem estudados:

Num estudo promovido pela Universidade Católica, em 2015, 27% dos médicos e enfermeiros que trabalhavam em cuidados paliativos estavam num acentuado estado de esgotamento (burn-out).

Num outro trabalho mais recente, publicado por Malôco e colaboradores na revista Acta Médica Portuguesa de Janeiro de 2016, abrangendo 466 médicos e 1262 enfermeiros com uma média de 36,2 anos de idade, avaliados entre 2011 e 2013, 21,6% dos profissionais encontrava-se num estado moderado de esgotamento e 47,8% num estado de burn-out elevado, segundo a graduação do Masrlash Burnout Inventory.

Uma grande investigação encomendada pela Ordem do Médicos ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em 2016, abrangendo uma amostra invulgarmente alargada (mesmo considerando o panorama internacional) de 9.176 médicos, mostrou que 66,1% sofriam um alto nível de exaustão emocional, situando-se 22,5% num nível médio e 10,4% num patamar mais baixo).

Resultados impressionantes que deviam merecer a maior preocupação da Tutela, não sendo ainda interiorizados por muitos médicos e profissionais da Saúde, que consideram o estado de cansaço e desmotivação uma situação «normal», subestimando as suas potencialmente gravosas consequências.

Aproveitando a dificuldade de respostas rápidas e organizadas dos trabalhadores da saúde à bem concertada ofensiva governamental contra o SNS (por muitos confundida com «erros», «má informação» ou «incompetência»), o poder central e os seus tentáculos locais, sempre afirmando «amizade» e «admiração» pelo SNS, exploraram, até ao tutano, as pequenas rivalidades e mesquinhas ambições de carreira, promovendo a divisão e fragmentação de departamentos, serviços e equipas, levando a cabo fusões e encerramentos sem sentido, de que a «fusão» dos dois hospitais centrais de Coimbra (com o hostil esvaziamento do Hospital do Covões) é um dos mais catastróficos exemplos.

E, enquanto analistas e altos dirigentes políticos asseguravam a solidez da banca (nas vésperas dela ruir), o pior parecia provir da «crise» na sustentabilidade da Saúde, com reportagens televisivas sobre um SNS ineficaz e cheio de desperdícios, em que «tudo vai mal», aguçando a crítica a reais ou imaginárias deficiências e ao desempenho dos seus profissionais.

Não será estranho, por isso, que mais de 75% de uma amostra de 1.495 médicos questionados, num estudo da investigadora Marianela Ferreira, do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, tenham admitido trocar o SNS pelo sector privado, estando 76,7% descontentes com a sua remuneração, 63,3% com a frequência com que ultrapassavam o horário de trabalho sem terem boas perspectivas de carreira, encarando, cerca de 40%, a possibilidade de antecipar a reforma por exaustão, com aproximadamente um terço a equacionar a hipótese de emigrar (Público 13-1-17).

O novo governo de Costa, com um programa eleitoral cheio de cedências à direita, só em parte travadas pelos acordos à esquerda, abriu uma pequena janela de esperança numa nova política que revertesse as tropelias feitas ao SNS pelos governos anteriores.

Contudo, apesar do anúncio de pontuais medidas positivas (nem sempre postas em prática), a continuidade parece ser o lema do ministro da Saúde Adalberto Fernandes, continuando a desestruturar e dividir o SNS, agora também através da sua «municipalização», não hesitando em avançar com outras iniciativas demagógicas e sem substância.

Em Janeiro deste ano, no meio do habitual surto de gripe do Inverno, o Ministério da Saúde anunciou à comunicação social que as «equipas das urgências e hospitais vão receber de acordo com o desempenho» (Público, 7-1-17).

Assim «o valor que o hospital e que os profissionais vão receber por cada doente que atendem vai depender do resultado do trabalho que fizerem».

A medida, aparentemente inócua, dispara em várias direcções, todas elas erradas:

Em primeiro lugar, transmite a ideia que a melhoria dos Serviços de Urgência depende de um maior empenho dos profissionais, desleixados e preguiçosos, e que essa malandrice desaparece com mais uns euros de prémio, fazendo-os trabalhar a um ritmo mais acelerado (os estudos sobre o burn-out devem ser uma aldrabice…).

Em segundo, que quanto mais doentes forem «despachados» nas urgências, melhor. Talvez seja pior para doentes que necessitem de serem bem assistidos, para os jovens profissionais que precisem de ser bem ensinados, e para os doentes que, no futuro, irão ser tratados por médicos treinados em «despachar». Mas, pelo menos, os médicos e o hospital terão mais um saco de euros como estímulo.

Em terceiro, que quanto mais doentes sem patologia justificativa procurarem o Serviço de Urgências, melhor, já que os médicos «despacham» um maior número em menos tempo.

«O novo governo de Costa, com um programa eleitoral cheio de cedências à direita, só em parte travadas pelos acordos à esquerda, abriu uma pequena janela de esperança numa nova política que revertesse as tropelias feitas ao SNS pelos governos anteriores.»

Por último, conclui-se que, sabendo o ministro que a solução do problema das Urgências é mais complexa que esta patetice – implicando uma boa coordenação com os cuidados primários e uma profunda alteração do desastre organizativo com contratos de empresas e de médicos «soltos» –, fica-se a saber que a Tutela, para além de descarregar as culpas em cima dos profissionais, apenas quer encenar uma solução de fachada sem, na realidade, pretender resolver nada.

Numa outra imposição governamental cheia de um falso moralismo, em Fevereiro do corrente ano, passou a ser proibida a realização de jornadas ou congressos científicos nas instalações do SNS, quando apoiadas ou patrocinadas por laboratórios ou firmas de dispositivos médicos ou material cirúrgico.

Para além do implícito manto de desconfiança lançado sobre os profissionais do SNS, como o Estado nunca subsidiou nenhuma dessas actividades essenciais à formação, actualização e investigação clínicas, que apenas subsiste com o apoio das farmacêuticas e firmas de produtos médicos, o resultado é que os pequenos encontros e jornadas científicas (os grandes já são feitos em hotéis e centros de congressos) ficam mais dificultados e terão também de alugar salas em hotéis.

As consequências desta demagógica imposição são difíceis de abarcar em toda a extensão.

Como apoio à hotelaria, compreende-se. Quanto à Saúde, para além das limitações à formação científica já referida, também serão anuladas ou prejudicadas acções em outras áreas, porque é com fundos conseguidos nesses encontros que se compram livros e revistas científicas para as bibliotecas dos serviços, se cobrem despesas com trabalhos de investigação e se financiam prémios, bolsas e convites a colegas estrangeiros para debates e conferências.

Talvez estas medidas sem nexo funcionem como cortina de fumo enquanto o ministro negoceia a continuação da PPP de Cascais, desaproveitando a oportunidade de fazer reverter as parcerias público-privadas para o sector público, assumindo novos compromissos com os grandes grupos financeiros que vincularão o país por muitos anos, disfarçando essa clara (e má) opção política e ideológica, sob a capa de uma falsa «neutra» baseada numa análise puramente técnica de custo/benefício.

E este é um claro sinal de que, no essencial, pouco mudou no Ministério da Saúde, apesar de uns retoques e alguma conversa em contrário.

O ataque ao SNS continua. A luta dos cidadãos pela sua defesa também.

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