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A roda do povo

Para este mundo agreste, os transmontanos descobriram, à sua escala e com as devidas diferenças, o que a tanta gente custa entender. Se todas as praças e avenidas deste país fossem rodas do povo jamais governariam os que nos abrem feridas.

Créditos / topgeres.wordpress.com

Há seis anos, com uma das mais bonitas tranças que vi até hoje, dias antes de morrer, a irmã quase nonagenária da minha avó contou-me a história da deserção do meu bisavô.

Acamada e ensombrada pela cegueira num lar transmontano, desdobrou a memória e falou do rapaz que andou clandestino durante meses pelas montanhas do Larouco. Não fazia ideia de quem era Lénine e do que havia sido a Conferência de Zimmerwald mas aquele pastor e contrabandista decidia há cem anos adiar a morte evitando uma guerra que não lhe dizia nada.

No tempo em que viajar a Lisboa era quase mudar de país, uma geração de transmontanos atravessada pela pobreza acabou por se lançar pela aventura da migração. De Fiães do Rio, com 15 anos, saiu Bento Gonçalves para Lisboa onde acabaria como torneiro mecânico no Arsenal da Marinha.

Não muito diferente foi a história de Militão Ribeiro que, com apenas 13 anos, começou a trabalhar como operário têxtil no Brasil. O jovem de Murça acabaria por ser expulso daquele país por militar no Partido Comunista Brasileiro e não teve dúvidas em desafiar o fascismo português, ingressando no PCP precisamente depois de Bento Gonçalves assumir a direcção do partido.

Oito anos depois da morte do então secretário-geral no campo de concentração do Tarrafal, Militão Ribeiro era também conduzido à morte na prisão pelos esbirros. Antes conseguiu escrever com o próprio sangue uma carta em que jurava fidelidade aos ideais por que lutava.

Avessos às imposições estatais, a fronteira transmontana foi das mais violadas do país. As mulheres e homens que desafiaram as autoridades de ambos os lados da fronteira fizeram-no para alimentar as suas famílias. Mas os barrosões e galegos também rasgaram as convenções que pretendiam barrar a convivência milenar. Fizeram do contrabando uma arte e nem a sintonia entre o regime de Salazar e os fascistas espanhóis, que se levantaram em 1936, comandados por Franco, conseguiram esmagar a solidariedade galaico-portuguesa.

Milhares de refugiados e resistentes anti-franquistas, pertencentes à parte democrata da guerra civil, procuraram abrigo na região do Barroso. Foram muitas as famílias transmontanas que deram abrigo às vítimas da barbárie fascista.

Já depois de consolidada a vitória de Franco, as montanhas da zona foram visitadas por grupos guerrilheiros que se haviam recusado a abandonar a luta armada. Se houver um deus no mundo que seja rezado por foragidos, devia chamar-se Larouco.

A divindade pagã, que é também o mais alto dos montes da região, não foi só refúgio dos que guiavam os seus rebanhos pelas encostas. Deu também esconderijo a guerrilheiros, protegeu a identidade de emigrantes e refugiados políticos. Mas, principalmente, serviu de caminho a contrabandistas.

«Quem nos afundou as pescas, quem nos enterrou os campos, quem nos desmantelou as fábricas, quem nos encheu as aldeias de silêncios de cemitério fê-lo porque um rico faz-se sobre as sombras divididas de muitos pobres.»

No dia do funeral da minha tia-avó Maria, entre o nevoeiro e o frio, o padre Fontes, uma das figuras mais carismáticas do Barroso, conduzia a missa de corpo presente. Lembrei-me, então, do Cinco dias, Cinco Noites.

Na adaptação da obra de Álvaro Cunhal ao cinema, foi o próprio que interpretou o barqueiro que conduz o militante comunista ao outro lado da fronteira. Lambaça, o passador responsável por entregar André ao dono da embarcação, carregava também com ele essa dureza que seca o rosto, que abre sulcos nas mãos e que transmite por vezes frieza no trato.

Provavelmente, as marcas de um povo calejado por uma história difícil mas forjado na resistência de que falava Miguel Torga. O mesmo padre Fontes, que participou nas campanhas de alfabetização ao lado do poeta comunista Manuel Gusmão, foi um dos responsáveis pela defesa e recuperação de fortes elementos comunitários e pagãos na cultura barrosã, uma herança que passou de geração em geração.

Imagine-se uma terra em que é uma roda a que mais ordena. Uma roda feita de casas e casas feitas de gente. Imagine-se que, desde tempos de que não fala a memória, é neste relógio de ruas lamacentas e habitações de granito que o sentido dos ponteiros decide, a cada semana, quem faz o pão. Imagine-se mulheres e homens que planificam as actividades económicas do seu dia-a-dia sob regras que aliviam o peso do indíviduo e fortalecem a comunidade.

Até há bem pouco tempo, era assim em boa parte das aldeias de Montalegre. Em algumas, ainda restam hábitos desse trabalho levantado pela força dos braços unidos. A quem tem dez cabeças de gado cabe-lhe o dobro de dias, vinte, nas encostas do Larouco, a pastar os animais de toda a povoação. A regra é igual para todos e abre espaço para que cada um tenha tempo para cuidar de outras tarefas individuais ou comunitárias.

Embora as terras estejam divididas e cada um tenha a sua colheita, em geral, a segada era feita em conjunto. Todos comiam. Independentemente da propriedade, o que definia o respeito por cada habitante era o trabalho. A quem não possuía animais ou terras cabia-lhe arranjar os caminhos e o património comum da aldeia como o Forno do Povo.

Para este mundo agreste, os transmontanos descobriram, à sua escala e com as devidas diferenças, o que a tanta gente custa entender. Se todas as praças e avenidas deste país fossem rodas do povo jamais governariam os que nos abrem feridas.

Quem nos afundou as pescas, quem nos enterrou os campos, quem nos desmantelou as fábricas, quem nos encheu as aldeias de silêncios de cemitério fê-lo porque um rico faz-se sobre as sombras divididas de muitos pobres.

Talvez devamos aprender mais com os que sujam as mãos de terra e menos com os que enchem os bolsos de dinheiro. A união dos que trabalham é o que ilumina um dos maiores valores universais da humanidade: a justiça social.

O rio da história avança e cresce trazendo até nós a experiência acumulada de séculos de luta contra a opressão. É também o passado que se traduz nas conquistas que hoje tratamos de defender. Foi de lá que nos chegou, em Agosto, a mensagem que operários de uma fábrica de cimento desenterraram em Kamensk, Rússia.

Há meio século, funcionários locais deixaram uma nota para ser lida no centenário da revolução de Outubro: «Passarão anos e vocês, a geração de 2017, substituirão os veteranos da Revolução. Pedimos que cumpram com o legado leninista e fazê-lo tornar-se realidade junto das gerações seguintes».

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