«Se acontecer entrar na vida política, dêem-me uma corda para me enforcar»
Almirante Gouveia e Melo, 28 de Outubro de 2021
«Não gosto que me imiscuam na área política. Sou militar e não tenho a intenção de me candidatar a nada. Isto é um não; e quando digo não é não»
Idem, 18 de Maio de 2023
«Não incluo, nem excluo, a possibilidade de me candidatar»
Ibidem, 4 de Setembro de 2024
«Não há dúvidas, vou ser candidato à Presidência da República»
Ibidem, 14 de Maio de 2025
Das profundezas oceânicas, compreensivelmente fatigado de perseguições a navios russos «agressores» que, teimando numa espécie de passatempo sádico, lhe entupiam o periscópio, emergiu o Almirante. Navega agora a caminho do Palácio de Belém, seu destino garantido por ventos que sente soprar na direcção e no momento certos.
Venho para «responder ao apelo crescente de grande parte da população, com a vontade de fazer mais um serviço ao país», explicou o Almirante ao apresentar-se como o candidato que antes de ser já o era. Palavras que não são de hoje mas de todos os tempos, certamente foram proferidas por outros há cem anos, mais vírgula menos vírgula, porque também existia então, como ele agora alega, «esta instabilidade interna que está nos olhos de todos nós».
Um Messias, um Salvador, um enviado da Providência empenhado em cumprir de vez a missão que cabia ao sempre atrasado como desejado El-Rei D. Sebastião? Não, não e mais uma vez não. «E quando digo não é não», proclamou o Almirante.
Definindo a coligação inimiga
Apesar de tão convicta declaração, a maleabilidade e a flexibilidade são atributos do Almirante, provavelmente inspirados nas ondas dos mares, como se percebe por declarações proferidas quando ainda comandava a Marinha. «Estou a surfar a onda, não tenho tempo para me preocupar comigo senão ainda caio da onda». É assim o Almirante, sempre apagando-se quando estão em causa o sacrifício desinteressado, a Nação e mesmo a Europa, que ele adoptou como extensão da Pátria.
«Se a Europa for atacada, iremos morrer se tivermos de morrer para a defender», proclamou o Almirante já em registo de comandante-em-chefe, como quem volta a envergar o camuflado extraído do baú onde jazia desde os tempos de outro «serviço prestado à Nação»: o de vacinador-mor do Reino em regime de caserna, que este bom povo aceita sempre de bom grado, sobretudo quando o atemorizam. E o Almirante é bom, muito bom nisso, ao advertir que «devemos alertar a nossa população, o nosso sistema político para os problemas que já não estão lá muito longe, estão mesmo ali no horizonte e nós podemos só tentar abordar quando eles chegarem a casa, mas isso pode já ser um bocado tarde». Ora, «como a opinião pública pode não compreender essas coisas não podemos esconder esses problemas da opinião pública». «O problema existe», insiste, «basta olhar para Leste e não só para Leste mas para a coligação que está a formar-se e quer inverter a ordem internacional».
Na entrevista à RTP, da qual se retiraram estas palavras, o funcionário que lia as perguntas atreveu-se a sair do guião e confrontou o Almirante com o facto de as famílias poderem não ver com bons olhos a necessidade de os seus filhos morrerem para defender a Europa.
O entrevistado não hesitou: «podemos não morrer, mas então o nosso sistema democrático acaba». Além disso, lembrou, existe a busca da paz, objectivo que o Almirante, ou não fosse um recomendável arauto da civilização ocidental, admite encontrar-se no fim da guerra. Para ter a paz, assegura, «há que estar prontos para enfrentar o pior dos desafios». «Portanto, se não investirmos (na guerra) vamos ter problemas: quem não investir na sua segurança acabará por ser dominado; temos de ser capazes de mobilizar a população, o que pode passar pelo serviço militar obrigatório ou outra coisa mais inteligente». Infelizmente o Almirante foi omisso quanto a esta misteriosa «coisa mais inteligente», mas ele terá, certamente, qualquer ideia em mente, podemos não ficar descansados. E se for necessário que a Pátria funcione como um quartel ninguém melhor do que o Almirante para o conseguir, depois da bem sucedida manobra militar de vacinação nacional.
Chegará o tempo de ler a Constituição da República?
O Almirante é um homem prevenido pela sua experiência em terra e, sobretudo nos mares, pelo que tem a vantagem de valer por dois perante um povo português que ele considera necessitar do colinho de um pai.
Sob a autoridade dos seus estrelados galões, sabe muito bem que brandir a ameaça russa, sempre a Rússia, autêntica incarnação do diabo seja soviética ou putinista, é um instrumento de comprovada eficácia quando o objectivo é pastorear o rebanho de uma população aterrorizada.
Advertiu o Almirante que a «agressora coligação de países» em formação quer impôr a «lei da força», «a autocracia» em vez da democracia liberal e da «lei da razão»; quer «espezinhar a ordem estabelecida segundo princípios aceites pela maioria dos países». Traduzindo: «a ordem internacional baseada em regras» norte-americana que se sobrepõe ao Direito Internacional.
«O entrevistado não hesitou: "podemos não morrer, mas então o nosso sistema democrático acaba". Além disso, lembrou, existe a busca da paz, objectivo que o Almirante, ou não fosse um recomendável arauto da civilização ocidental, admite encontrar-se no fim da guerra.»
A «ordem estabelecida» é, como sabemos, a que invoca os direitos humanos para violar os direitos humanos, que assenta ainda na herança dos tempos em que dilatávamos a fé e o império com a nossa raça única e indomável; que civilizava os bárbaros, os quais, numa vingança inadmissível, querem agora esmagar essa mesma civilização que não souberam aprender nem quando usámos todos os métodos que o bom e misericordioso Deus depositou nas nossas mãos. A mundovisão do Almirante explica-nos que estamos perante «um avanço da Rússia com instintos que são praticamente imperiais, que não fazem sentido nos dias de hoje». Nos quais, acrescente-se, no mundo real o que continua a fazer sentido é o império onde o sol nunca se põe, outrora britânico e hoje ocidental sob o comando dos Estados Unidos, apesar das instabilidades dos humores do cidadão Trump. Nesse império residem os sacrossantos «princípios aceites pela maioria dos países» – que alternativa têm eles senão submeter-se?
A coligação do mal, no entanto, vai-se implantando entre a esmagadora maioria da população do mundo, assentando no restabelecimento da vigência do Direito Internacional e na cooperação multilateral e multipolar. Mas esta prática da cooperação, helas, detectou o presciente Almirante, já não existe, «está esgotada»; restam-nos então o «confronto absoluto, que é indesejável»; ou a «dissuasão: evitar que o agressor possa satisfazer os seus instintos».
Para isso, lembra o experiente marinheiro, existe «a NATO, organização de defesa colectiva que, graças a Deus, garantiu a defesa dos Estados Unidos e da Europa nos últimos 50 anos, pelo menos». Deus tem sempre as costas largas, apesar da sua conhecida imaterialidade, quando se trata de abençoar o terrorismo e o expansionismo do império ocidental ou o genocídio puro e simples como o praticado por Israel.
E não, outra vez não; perante as ameaças que temos na Europa, a NATO «não existe para atacar ninguém, é para se defender». Os povos do Afeganistão, do Iraque, de países que deixaram de existir por obra e graça da Aliança, como a Líbia e a Síria, poderão não ser da mesma opinião. A «ordem estabelecida» teve de exercer a sua autoridade militar quando julgou necessário? É inegável, mas apenas em circunstâncias indispensáveis para salvaguardar o primado das nossas inquestionáveis civilização e cultura. Das quais a eleição do Almirante será, certamente, o garante.
O candidato presidencial que veio dos mares – o seu antecessor Thomaz era marinheiro de sequeiro – tem cuidado do seu léxico político-militar e para isso lá estão os ex-assessores de José Sócrates, figura muito bem cotada no manuseamento do conceito de «não é não», além do «porreiro, pá». Nos seus discursos e entrevistas, por exemplo, o Almirante deixou de usar a palavra democracia, certamente um conceito vago e, no limite, traiçoeiro, optando pela expressão democracia liberal, garante da aplicação da selvajaria económica neoliberal e da imprescindível adaptação dos princípios democráticos aos interesses ocidentais, mesmo quando estes são defendidos por regimes filofascista como o ucraniano e o sionista. Assegura o Almirante que a democracia simples, não adjectivada, como a que vigorou a seguir ao 25 de Abril de 1974 e produziu a Constituição em vigor, deu no que deu: «deixou-nos à beira de uma nova ditadura». Embora fraquinho e muito mal informado em História Pátria, revela-se firme em inventonas, preconceitos e ideias feitas, o que é indispensável para exercer, nos dias de hoje, a suprema magistratura da Nação.
Para evitar que se repitam tais riscos abrilistas, o valeroso marinheiro tem agora todo um programa político explicado em meia dúzia de palavras. A saber: «O Presidente da República, por ser eleito por maioria e por não ser dependente de partidos, pode contribuir de forma decisiva para a estruturação política de médio e longo prazo, com uma visão estratégica, e para as reformas estruturais que há muitos anos estão por fazer na sociedade portuguesa».
Ainda que, por modéstia e precaução, se recuse a admiti-lo, o Almirante irrompe assim pelo panorama político como alguém disposto a acabar de vez com o que ainda resta dos devaneios imaturos, talvez indignos da corporação, de uma anterior geração de camaradas de armas. Desmandos praticados quando ele não passava de um prometedor adolescente em fuga de Moçambique para o Brasil, como fizeram muitas famílias gradas da administração colonial, como a sua, para não sofrer os efeitos, já se disse, «da ditadura comunista».
Devido a uma vida sempre muito afadigada a «servir a Pátria», o Almirante pode não ter tido tempo para ler a Constituição da República. Caso contrário, não recomendaria no seu programa uma «estruturação política» – sem sofismas, uma mudança de regime.
Funções como as que citou não estão atribuídas ao Presidente da República Portuguesa. Homem de lei, como diz ser, o Almirante passa por cima da Lei Fundamental da Nação, o que não é um bom prenúncio, sobretudo quando somado à volatilidade do seu «não é não».
«Procurarei ser um actor independente e um árbitro isento», promete o Almirante. As arbitragens, verdade se diga, atravessam tempos de pouca fiabilidade, o que talvez jogue também a seu favor. Uma vez que o Almirante, em poucos anos, saltou do não para o sim, passando pelo nim; uma vez que à apresentação da sua candidatura compareceram figuras negras como Passos Coelho/troika e seguidores; uma vez que escolheu para mandatário de candidatura essa figura esquiva e intriguista, um populista falhado que dá pelo nome de Rui Rio, com o papel de trair e fraccionar o próprio partido; e uma vez que o gang onde Ventura é o gauleiter visível decidiu não apresentar candidato presidencial logo que o Almirante quebrou o tabu, temos perante nós uma convergência estratégica e organizada do reacionarismo português mais incompatível com a democracia.
A corda que afinal não usou
O Almirante, como homem do mar que gosta de «surfar a onda», segue fielmente as tendências da moda política, económica e militar. Tem uma coerência adaptável a cada ocasião e consoante objectivos do momento, isto é, navega muito bem à vista ou não fora um cotado marinheiro; assenta-lhe tão bem como a farda, seja de gala ou camuflada, aquela frase inspirada de um dirigente de futebol que fez história: o que é verdade hoje pode não o ser amanhã.
«Se acontecer entrar na vida política, dêem-me uma corda para me enforcar», pediu o Almirante, «que não gosta de snobismos», no final de um almoço numa coisa snob, patrioteira e sombria chamada «International Club of Portugal». Pelo sim, pelo não, que se mantenham as cordas longe do Almirante.
«Devido a uma vida sempre muito afadigada a "servir a Pátria", o Almirante pode não ter tido tempo para ler a Constituição da República. Caso contrário, não recomendaria no seu programa uma "estruturação política" – sem sofismas, uma mudança de regime.»
O drástico pedido suicida foi feito em 2021. Dois anos depois, nova e veemente jura proferida numa entrevista à Rádio Renascença: «Não gosto que me imiscuam na área política. Sou militar e não tenho a intenção de me candidatar a nada». E rematou solenemente: «Isto é um não; e quando digo não é não».
Em 2024 foi possível detectar que a convicção amainara. «A ideia de que os militares não podem participar na política é antidemocrática», disse à Euronews em Agosto desse ano. Menos de um mês depois, o Almirante amaciou ainda mais o discurso: «Não incluo, nem excluo, a possibilidade de me candidatar» à Presidência da República.
O então chefe do Estado Maior da Armada atravessava nessa altura, como explicou, a fase do «nim», nem sim nem não, ao que parece ditada pela insistência dos jornalistas em esclarecerem os rumores sobre a entrada na corrida a Belém. Na ocasião, invocou a qualidade de militar no activo como pretexto para não poder assumir uma posição clara e cultivar assim o tabu, aliás muito conveniente como instrumento de propaganda. O sim era apenas um segredo de polichinelo: os fazedores de imagem já estavam em acção
Em Fevereiro de 2025, confessando-se ao Expresso, deu indícios ainda mais fortes de que se posicionara na linha de partida: «transformar a Presidência da República num apêndice dos interesses partidários é uma ameaça à capacidade da democracia liberal para manter um sistema equilibrado e funcional». Ficou claro que o Almirante percebera o êxito da estratégia venturista de ataque aos partidos políticos do «sistema» para arrebanhar votos. Até um politólogo regimental da nossa praça reconheceu o objectivo do putativo candidato de «caçar no eleitorado do Chega».
Em Março de 2025 recusou-se ainda a assumir uma posição clara: «o meu papel neste momento é esperar pelas eleições legislativas» (18 de Maio), disse o Almirante. Afinal, parece ter sido vencido pela ansiedade e, mais uma vez, não conseguiu manter a palavra: em 14 de Maio, perante uma assembleia onde pontificavam algumas das mais destacadas figuras do arcaico reaccionarismo português, o Almirante declarou que «não há dúvidas, vou ser candidato à Presidência da República». Dúvidas já não havia, mas o Almirante não foi assim tão redundante na escolha do slogan: «Unir os portugueses». Um contorcionismo de marketing que oferece aos saudosistas, aos insatisfeitos puristas e revanchistas do novembrismo, aos acéfalos fabricados pela máquina mediática manipuladora e ao rebanho da máfia venturista uma nova e regeneradora união nacional assente num populismo antipartidos que, por ora, são apenas os do «sistema». Mas o «sistema», como percebemos pelo esboço programático do Almirante, deverá ser esvaziado através das «reformas estruturais que há muitos anos estão por fazer na sociedade portuguesa» e de uma Constituição transfigurada.
Três acções combinadas e convergentes montaram nos dias de hoje, pela primeira vez desde 25 de Abril de 1974, uma estratégia de raiz, e até agora bem sucedida, do velho ultramontanismo revanchista lusitano: a candidatura do Almirante, assente numa divisão ostensiva do PSD ao desviar a reacionaríssima «facção Chega» do partido de qualquer hipotético apoio à candidatura de Marques Mendes; o crescimento desmedido do espaço de influência do fascismo mal encoberto da confraria golpista que sustenta Ventura – a qual, significativamente, abdicou de candidato próprio quando o Almirante se chegou à frente; e a acção concertada de um patronato da comunicação social funcionando, cada vez mais às claras, como principal suporte da propaganda populista fascista.
«Três acções combinadas e convergentes montaram nos dias de hoje, pela primeira vez desde 25 de Abril de 1974, uma estratégia de raiz, e até agora bem sucedida, do velho ultramontanismo revanchista lusitano (...).»
O Almirante, por muito que o próprio diga que não, apresenta-se como o Salvador, o Messias, o homem providencial – pedra angular dessa estratégia. Além disso, foi o Almirante quem nos ensinou o quanto valem as suas palavras, suas promessas e declarações desde o não é não ao sim é sim, passando pelo «nim». Acresce que no conceito de «democracia liberal», por definição associado ao federalismo antidemocrático e à doutrina do neoliberalismo selvagem, cabe tudo, até o fascismo e a «democracia orgânica» do Prof. Marcello. Não nos esqueçamos dos primeiros sinais dados pelo Almirante em relação aos seus conceitos de debate e de oposição. Opiniões manifestadas por um candidato em relação à sua candidatura deram-lhe apenas «vontade de rir».
Há dados e factos mais do que suficientes para que os democratas autênticos estejam cientes dos perigos pairando sobre a sociedade portuguesa e o que resta da democracia nascida em 25 de Abril de 1974.
As falinhas convergentes, mansas e trauliteiras, estão identificadas, a mentira e a manipulação também. E sabemos quem é quem à medida que vamos conhecendo e reconhecendo os que põem a cabeça de fora.
Se Portugal e a sua democracia necessitam de ser salvos – e necessitam – é ao povo, na manifestação livre da sua vontade, que cabe essa tarefa. Os salvadores não querem saber do povo a não ser para o arrebanhar, manipular, estupidificar, enganar, explorar e reprimir.
Primeira tarefa: esclarecer, informar, clarificar, congregar, lutar e resistir, porque a democracia corre risco de vida. Sabemos o que significam as proclamações daqueles que surgem do nada, neste caso das profundezas submarinas, decididos a fazer “sacrifícios” pessoais para responder aos «apelos do povo» e cumprir uma missão «de serviço» à Nação. Sim, porque como sempre disseram esses «desejados» ao longo dos tempos, é preciso acabar «com esta instabilidade que temos sob os nossos olhos».
Salvemo-nos, enquanto é tempo, de mais um salvador.
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