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|Violência sexual

A propósito dos crimes de violação e de coação sexual

Em direito penal, há que procurar garantir a proteção efetiva dos bens jurídicos essenciais, sob pena de se legislar para satisfazer o politicamente correto, desvalorizando o juridicamente devido.

Créditos / HealthGoesUp

Encontram-se neste momento em apreciação na Assembleia da República dois projetos de lei tendentes à alteração do Código Penal, designadamente dos tipos legais de violação e coação sexual e respetivo impulso processual. São os Projetos de Lei n.º 1047/XIII (do PAN) e n.º 1058/XIII (do BE), que se legitimam pelo cumprimento da Convenção de Istambul, oportunamente ratificada por Portugal.

A propósito destas iniciativas legislativas, e sem ter como objetivo a sua análise técnico-jurídica aprofundada, cabe equacionar a oportunidade e a adequação das propostas apresentadas.

A abordagem desta temática tem como pressuposto a gravidade (que assumimos como) inquestionável deste tipo de criminalidade. No entanto, tal não implica que um melhor combate do fenómeno passe necessariamente pela reconfiguração da tipificação penal e/ou pela alteração do regime processual. E, exatamente pela gravidade da temática, impõe-se que qualquer iniciativa legislativa jurídico-penal acautele com especial rigor uma melhor tutela dos valores em crise.

A criminalização de determinada conduta pressupõe a gravidade da mesma e a necessidade de proteger bens jurídico-penais que (já) o são e como tal são assumidos pela comunidade. E o que vale, em sede de neocriminalização, vale por igual para as decisões de reconfiguração do tipo legal previamente existente, em particular quando se trata de tipos legais codificados. Não é, pois, legítimo utilizar o direito penal, e menos ainda o Código Penal, como instrumento de consciencialização social em prol de um determinado bem ou valor. Cabe a este propósito referir o caráter de “ultima ratio” classicamente atribuído ao direito penal, o que faz do mesmo necessariamente fragmentário e nunca um veículo de mudanças culturais, independentemente da validade das mesmas.

«a gravidade inquestionável deste tipo de criminalidade não implica que um melhor combate do fenómeno passe necessariamente pela reconfiguração da tipificação penal e/ou pela alteração do regime processual»

Uma das alterações marcantes nos projetos de lei em análise prende-se com a alteração da categorização processual do crime. Se hoje o processo depende de queixa do ofendido, as alterações preconizadas pretendem que o crime passe a ser público, bastando uma qualquer notícia do crime – que não necessariamente da sua vítima – para que o procedimento seja iniciado, com a subsequente investigação penal.

O crime público dirige-se em primeira linha ao interesse público (à partida inerente ao direito penal) mas secundariza o interesse eventualmente divergente da vítima, que pode preferir silenciar o crime em prol do seu bem estar ou até da sua saúde mental. Neste sentido, tornar o crime público pode corresponder a uma eventual instrumentalização da vítima face ao esclarecimento da verdade material que aquela preferia manter oculta. Os crimes de violação e de coação sexual configuram uma intromissão grave na intimidade da vítima. Sendo o crime público, corre-se o sério risco de também a perseguição penal o ser.

Impõe-se a este propósito uma série de questões relativas à bondade prática da alteração. Desde logo, este tipo de criminalidade não ocorre, em geral, de modo público, pelo que não será provavelmente expectável um aumento exponencial de notícias de crimes por parte de terceiros que, perante o conhecimento casual dos mesmos, os pretendam denunciar. Numa outra ótica, será de admitir a opção de uma qualquer vítima que, temendo a denúncia do crime por terceiros, opte por nem sequer relatar o crime que sofreu aos que lhe são mais próximos. Ou que evite recorrer a serviços de saúde que lhe seriam úteis.

«O crime público secundariza o interesse eventualmente divergente da vítima, que pode preferir silenciar o crime em prol do seu bem estar ou até da sua saúde mental. Os crimes de violação e de coação sexual configuram uma intromissão grave na intimidade da vítima. Sendo o crime público, corre-se o sério risco de também a perseguição penal o ser»

Cremos ser pertinente equacionar nesta sede uma certa violência processual contra a própria vítima que, em resultado do regime processual que se pretende alterar, se verá objeto de uma investigação penal que bem pode potenciar a sua revitimização. A este respeito cabe referir que a Convenção de Istambul, indicada como fundamento das alterações propostas, tem como finalidade a proteção da vítima (em concreto, mulher) contra todas as formas de violência, acautelando expressamente a vitimização secundária.

Uma das alterações propostas nos projetos de lei em apreciação prende-se com as molduras penais e respetivos limites mínimos e máximos.

Em termos de limites mínimos, quando estes são fixados nos 5 anos, fica-se em dúvida sobre a motivação do limite estabelecido: se o é pela gravidade intrínseca da conduta ou se apenas reflete uma configuração artificial da pena mínima admitida que a torne, na prática, imune a uma eventual decisão judicial de suspensão da execução da pena de prisão aplicada.

Como resulta da lei, a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos pode ser suspensa se, verificadas uma série de circunstâncias, o tribunal assim o decidir. Caso se considere estar esta figura mal configurada em termos genéricos, deverá a mesma ser alterada em conformidade. Já não será legítimo reconfigurar os limites mínimos das molduras penais com o propósito de afastar artificialmente a aplicação deste regime. Acresce ainda que esta suspensão corresponde a uma decisão judicial face ao caso concreto e não a uma decorrência direta da lei.

Já quanto aos limites máximos, uma das molduras indicadas no projeto de lei apresentado pelo PAN prevê uma pena máxima de 16 anos, em linha, designadamente, com a pena máxima do crime de homicídio simples. Aparenta ser esta uma opção incompatível com o paradigma vigente, em que os crimes que afetam o bem vida são os conceptualmente mais graves, sendo por isso passiveis das punições mais elevadas. Acresce que admitir uma pena máxima de 16 anos poderá ser vislumbrado como indício legislativo da desvalorização reflexa do bem vida, o que cremos ser de evitar.

«Em termos genéricos, as molduras penais propostas parecem estar mais centradas na repressão penal do que na proteção de bens jurídico-penais, finalidade última do direito penal, no que adota uma perspetiva eminentemente preventiva. A Convenção de Istambul, indicada como fundamento das alterações propostas, tem como finalidade a proteção da vítima (em concreto, mulher) contra todas as formas de violência, acautelando expressamente a vitimização secundária»

Em termos genéricos, as molduras penais propostas parecem estar mais centradas na repressão penal do que na proteção de bens jurídico-penais, finalidade última do direito penal, no que adota uma perspetiva eminentemente preventiva. Não nos parece que, neste âmbito, o crime se cometa ou deixe de cometer em função de uma menor ou maior moldura penal e não resulta demonstrado nos projetos de lei apresentados que exista correlação comprovada entre tais fatores.

Caso seja sinalizado um problema na aplicação judicial da lei pela generalidade dos magistrados judiciais (na “cultura judicial”, tal como referido no projeto apresentado pelo BE), impõem-se alterações a nível da formação inicial e contínua dos magistrados. Já se a questão se colocar ao nível de alguns magistrados, será de indagar a adequação dos mecanismos de avaliação e disciplinares vigentes.

Será também de acautelar a qualidade da prova, tendo designadamente em conta as condições reais em que as investigações são realizadas, os meios materiais de que os investigadores dispõem, a possibilidade da prova chegar “fresca” ao julgamento ou de estar já depreciada pela passagem do tempo, pois tudo isto são condições objetivas que cabe garantir para uma administração da justiça célere e de qualidade.

Face a alterações penais pretendidas, cabe sempre equacionar a título prévio se é expectável que a criminalidade desça em função de tais alterações. A não ser assim, não se legitimam as alterações pretendidas.

Em direito penal, há sempre que procurar o melhor modo de garantir a proteção efetiva dos bens jurídicos essenciais e não legislar em função de apelos externos que, aparentando (neste caso) preocupação com a situação feminina, poderão suscitar alterações à letra da lei que correm o risco de nada mudar de fundamental na sua aplicação prática. Sob pena de se estar a legislar para satisfazer o politicamente correto, desvalorizando o juridicamente devido.


Sandra Tavares é Professora Universitária e Jurista.

A autora escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AE90)

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