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Um vírus no cerne de grandes mudanças? (I)

Vários são os impactos deste coronavírus. Ele tem estado a afectar a economia e a saúde, as instituições, as relações entre países, afectando os próprios modelos de desenvolvimento.

Mulher usa uma máscara de protecção, em Nova Iorque, estado de Nova Iorque, Estados Unidos da América.
Créditos / New York Post/Getty Images

É escabroso as multinacionais estarem a tomar medidas para lucrarem chorudamente à custa dos sistemas públicos de saúde, subfinanciados pela austeridade posterior à crise 2008/2009, que, ajudadas pela irresponsável expectativa de muitos governos, que estiveram dois meses sem fazer nada, deixou esses sistemas sem capacidade de montarem de um dia para o outro a defesa contra esta pandemia.

O facto de os Estados Unidos da América (EUA) não terem conseguido, até agora, os meios suficientes para a sua defesa face ao coronavírus – e de, por exemplo, no passado dia 2 de Abril, um grande avião russo ter aterrado em Nova Iorque, com apoio que Trump agradeceu e que solicitara a Putin e a presidentes de outros países – poderia lançar bases para uma nova cooperação. Mas o que vai acontecer nos EUA deve ainda merecer a nossa melhor atenção.

Mesmo nesta debilidade inquietante, os EUA insistem nas provocações aos seus «inimigos do costume» (China, Rússia, Irão, Cuba, Venezuela) e foi in extremis que tiveram de cancelar manobras militares da NATO que estavam preparadas para se realizar da ponta mais ocidental da Europa até às fronteiras da Rússia, cuja «ameaça» tinham que conter…

Com a globalização e o neoliberalismo pelas ruas da amargura, o que é que os oligarcas (que não cedem o poder!...) que dirigem de facto muitos governos vão encontrar, como um novo paradigma (deles) em torno do controle dos cidadãos e regimes com democracias ainda mais débeis?

A generalidade das empresas médias, pequenas ou os empresários sem outros trabalhadores esperam capitalização urgente. Os trabalhadores receiam pela sua subsistência e lutam para ter dinheiro. A economia não pode recuperar sem resolver estas questões. A concentração do capital, a pauperização crescente dos trabalhadores e da classe média, está a ser geradora de um maior agravamento das desigualdades que a crise de 2008-2019 já nos trouxe e que, pelos vistos, são para ser continuadas.

Previsível catástrofe nos EUA

Estando a ser o país do mundo mais afectado pela COVID-19, a enorme queda da produção e a subida em flecha do desemprego vai gerar nos EUA muita miséria, muita fome, muita revolta.

O prolongamento das quarentenas vai provocar certamente o adiamento das eleições presidenciais, mas Trump tem um controlo executivo alargado conferido pela situação de excepção.

E os militares, nessa situação, poderão ter uma presença mais forte no dia-a-dia e ninguém pode afastar a possibilidade de integrarem as estruturas de poder formais com um outro tipo de controlo sobre a sociedade. Há que ter em conta o pessoal militar, o Pentágono e a CIA dirigida, de facto, por Mike Pompeo, que dela foi catapultado para o Departamento do Estado.

Quanto à reserva Federal (FED), poderá ocupar o vértice de uma estrutura de comando de empresas da Wall Street, para as maiores das quais tem vindo a deslocar cerca de 3 triliões de dólares, a pretexto de uma «crise de liquidez» que ainda não foi justificada em termos credíveis.

É uma previsão algo especulativa, mas que poderia ser a continuidade de efeitos interrompidos no pós-crise 2008-2009, com a ajuda da engenharia genética no aparecer desta pandemia, canalizando o mundo para uma sociedade totalitária bem mais perversa que a imaginada por Georges Orwell em 1984, recreado pela Endemol para o seu Big Brother.

Vários episódios abalaram a coesão interna da UE

O conflito verbal entre António Costa e um ministro holandês sobre a necessária solidariedade entre países da união, que levou o primeiro a classificar como «aberrantes» declarações do segundo, ultrapassou em muito as relações bilaterais entre os dois países, com pedidos de desculpas e uma crise no seio da coligação que governa a Holanda.

A presidente da Comissão Europeia (CE) pediu desculpas à Itália pela resposta «desleixada» da união às queixas deste país para apoio redobrado na luta contra a CODIV-19, prometendo um crédito de 100 mil milhões de euros para ajudar a nação atingida.

«Hoje a Europa está a mobilizar-se ao lado da Itália. Infelizmente, nem sempre foi o caso», disse Ursula von der Leyen numa carta publicada pelo jornal italiano La Repubblica na semana passada.

«É preciso reconhecer que, nos primeiros dias da crise, diante da necessidade de uma resposta europeia comum, muitos [...] pensavam apenas nos seus próprios [...] problemas», afirmou.

O pedido de desculpas não impressionou os políticos italianos, pois tinham desafiado a União Europeia (UE) não apenas a conversar, mas a provar que é realmente uma União. «Acredito que todos acabarão por perceber, mesmo nesses países, que uma resposta europeia compartilhada, ordenada, forte e rápida é a única solução», disse o primeiro-ministro italiano Giuseppe Conte à TV espanhola La Sexta, não se referindo às declarações de der Leyen. «Uma resposta lenta seria uma resposta inútil», sublinhou.

Uma resposta semelhante veio de Matteo Salvini, dirigente da Liga, hoje na oposição, o partido político mais popular da Itália. Enquanto reclamava um «grande Plano Marshall», no Twitter ridicularizou o pedido de desculpas de Ursula von der Leyen e disse que recusa a alternativa que ela avançara, argumentando já existir o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), porque «não quer que os alemães e holandeses venham a exigir dinheiro de nossos filhos». E «o recurso ao MEE é uma hipoteca sobre o futuro dos italianos», declarou.

Ursula von der Leyen foi forçada, pelas reclamações dos italianos e o impacto que elas tiveram em todo o mundo quanto à quebra da solidariedade no seio da UE, a desencadear um apoio particular para Itália.

Nestes desentendimentos pesam preocupações que não são a ideologia dos partidos dos respectivos governos mas uma desconsideração em relação àqueles países que mais foram atingidos que, não por acaso, eram do Sul da Europa.

Mais tarde, a presidente da CE, aparentemente tentou acrescentar alguma substância real ao pedido de desculpas, lançando a ideia de um novo pacote financeiro para subsidiar salários de empresas que lutam contra as consequências do coronavírus. O esquema, chamado SURE, forneceria um total de 100 mil milhões de euros (109 mil milhões de dólares) em empréstimos a estados membros da UE para evitar o lay-off em massa. A CE pediria empréstimos nos mercados financeiros internacionais e depois emprestaria fundos aos membros da UE, particularmente aqueles com economias já danificadas. Mas a UE exige uma garantia de 25 mil milhões de todos os membros, para acederem a este esquema.

Para realmente ser implementado, o plano deve ser aprovado por todos os estados membros da UE, o que à partida não está garantido. Na semana passada, os países da UE já tinham entrado em conflito com uma ideia semelhante de emitir eurobonds – às vezes chamados de coronabonds – dívida apoiada pela UE para ajudar os Estados membros a sair da recessão e aumentar os gastos com saúde. A ideia do coronabond foi apoiada pelos países mais afectados pelo vírus, a Itália, a Espanha e a França. Outros membros da UE, mais abastados, como a Alemanha e a Holanda, opuseram-se fortemente à ideia de emitir títulos de países fortemente endividados.

Nestes desentendimentos pesam preocupações que não são a ideologia dos partidos italianos na área do poder. Questões como a de Itália ter sido o primeiro grande país europeu a integrar a nova rota da seda que a China está a montar, com a crítica de outros dirigentes europeus, da própria EU e do BCE, bem como da NATO.

Não foi um incidente isolado que a nove grandes aviões russos, enviados em apoio da Itália com muitos médicos e os diferentes equipamentos para identificar e ajudar a suster o vírus, tenha sido vedado o espaço aéreo de vários países da Europa Oriental, obrigando o seu voo a fazer a trajectória Sochi-Mar Negro-Turquia-Grécia-Itália.

Os EUA aproveitaram a pandemia para se distanciarem da OMS e atacarem Venezuela e Cuba

O director-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus passou a ser alvo de reservas por parte da administração Trump depois de ter salientado por várias vezes os sucessos da China neste combate.

Ghebreysus declarou, em conferência de imprensa no passado dia 3 de Abril, que o impacto económico para os países que levantam as restrições muito cedo pode ser ainda mais severo e prolongado, levando potencialmente a uma segunda onda de infecções. Destacou ainda a importância de financiar a resposta à saúde, que ele descreveu como um «investimento essencial» para «salvar vidas» e também para a «recuperação social e económica a longo prazo».

Os EUA pretendem tirar proveito da situação epidemiológica na Venezuela para realizar neste país um novo golpe de estado, já tentado e falhado anteriormente várias vezes. Mas, à sombra dos EUA, outras potências ocidentais estão interessadas também nesses desenlaces.

De facto, no passado dia 31 de Março, o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, apresentou uma proposta para formar um «governo de transição» na Venezuela.

No meio da pandemia de coronavírus, em que está a ser observada uma «moratória deste tipo de intervenções políticas em todo o mundo», e quando na Venezuela todas as energias deveriam estar viradas para evitar a crise pandémica que também se regista no país, a proposta do governo Trump dá-se em paralelo à recusa do Fundo Monetário Internacional (FMI) em conceder ao governo de Nicolás Maduro assistência financeira para conter o coronavírus, e ao anúncio pelos EUA de irem perseguir judicialmente o presidente e outros destacados dirigentes do país com a falsa acusação de «tráfico de drogas».

Nesse dia, as autoridades dos Estados Unidos apresentaram um plano para formar um «governo de transição» no qual Juan Gaidó assumiria progressivamente a presidência, apesar de este estar envolvido em várias tentativas de derrubar o governo venezuelano, com o apoio de forças mercenárias.

E, no dia seguinte, um navio turístico registado em Portugal abalroou e afundou uma corveta das autoridades venezuelanas que o ia abordar por navegar em águas do país, sem ter recolhido e tratado os marinheiros que escaparam do abalroamento, ao arrepio de disposições internacionais aplicáveis a situações como esta. As autoridades venezuelanas convidaram as de Curaçau (ilha holandesa do Caribe onde o navio depois acostou) a dizer que turistas transportava, porque o acto criminoso poderia configurar o de uma tentativa de desembarcar mercenários nas costas venezuelanas, no pico das pretensões golpistas dos EUA. Só três dias depois a empresa que fretou o navio disse que não havia passageiros nele…

O chamado «Quadro Democrático para a Venezuela» determinaria uma série de condições, cujo cumprimento seria acompanhado por um levantamento gradual de sanções, aplicadas durante anos pelo governo Trump, com o objectivo de retirar Maduro da presidência.

A política dos EUA atinge também Cuba. Um envio de material médico para a América Latina – oferecido pela Fundação Jack Ma e o sítio de comércio online Alibaba (ambos chineses) cujos donativos já tinham alcançado mais de cinquenta países em todo o mundo – não pôde chegar a solo cubano. Tratou-se de um carregamento de dois milhões de máscaras, 400 mil kits de diagnóstico rápido e 104 ventiladores, para 24 países da da América Latina e Caribe, entre eles Cub. No dia 24 Março uma mensagem do embaixador chinês no Panamá confirmava a próxima chegada a esse país de 100 mil máscaras e 10 kits de diagnóstico, enquanto o seu colega em Havana confirmava o mesmo. Ainda em 30 de Março, anunciavam-se envios adicionais de equipamentos tais como ventiladores, luvas e fatos médicos protectores.

Mas… o transportador – uma empresa norte-americana contratada para o efeito – recusou à última hora essa encomenda. Argumentou que as regulações do bloqueio económico, comercial e financeiro imposto contra o país de destino, e reforçadas pela actual administração dos EUA, a impediam de o fazer.

Já no dia 2 de Abril, na Assembleia-Geral das Nações Unidas, os EUA, o Reino Unido e a UE, assim como a Ucrânia e a Geórgia, rejeitaram um projecto de declaração russo exigindo o levantamento de sanções unilaterais para combater a COVID-19. A missão permanente de Moscovo na ONU emitiu uma declaração questionando a razão de a Ucrânia, a Geórgia, o Reino Unido, os EUA e a UE terem rejeitado a sua proposta, argumentando que essas nações «se recusavam a deixar de lado abordagens e interesses politizados» e que a sua decisão poderia afectar negativamente «um grande número de pessoas» – especialmente em países em desenvolvimento actualmente sob sanções. A moção rejeitada pedia ampla cooperação internacional no combate à disseminação da COVID-19, bem como a «rejeição de guerras comerciais e sanções unilaterais adoptadas sem o mandato do Conselho de Segurança da ONU, a fim de garantir o acesso rápido a alimentos e medicamentos». A proposta também pedia aos Estados membros que rejeitassem «estigmatizações de Estados, povos e indivíduos por causa da pandemia e a necessidade desobre ela apenas circularem informações fiáveis e baseadas na ciência».

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