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«Raiva»: ninguém transforma o Mundo sozinho (I)

O filme, realizado por Sérgio Tréfaut, é uma adaptação para cinema de Seara de Vento, marcante obra neo-realista de Manuel da Fonseca, publicada em 1958.

Fotograma do filme <em>Raiva</em> (2018), do realizador Sérgio Tréfaut
Fotograma do filme Raiva (2018), do realizador Sérgio TréfautCréditos / Faux

Já se vivia em liberdade em Portugal quando Baptista-Bastos escreveu o prefácio para o romance Seara de Vento de Manuel da Fonseca. O texto foi incluído numa edição publicada em 1974 quase imediatamente após o fim da censura, com o título «A Letra de um Homem», e terminava com este parágrafo:

«A presença do pão parece ter modificado tudo.» Principia assim o capítulo cinco de Seara de Vento. Quem dignamente ousou viver, durante o ultraje fascista, sabia que, inversamente, a falta de pão iria, um dia, modificar tudo. As coisas modificam-se, alteram-se e transformam-se porque a marcha das coisas é irreversível. Todavia, há palavras que ajudam a apressar a alteração das coisas. Quem dignamente ousou escreve, durante o ultraje fascista, sabia que estava a contribuir para a modificação do nosso mundo. Que ninguém duvide que Manuel da Fonseca escreveu muitas dessas palavras. Que ninguém duvide que Seara de Vento foi um desses livros.

Raiva (2018), realizado por Sérgio Tréfaut, é uma adaptação para cinema desta marcante obra neo-realista publicada em 1958. O livro foi inspirado nos acontecimentos trágicos que ocorreram em 1933 no Cantinho da Ribeira, aldeia da Trindade, município de Beja, não muito longe de Baleizão, onde a vida de Catarina Eufémia seria ceifada duas décadas mais tarde. António Dias Matos, operário agrícola, tinha sido empurrado para o contrabando, após ficar sem trabalho por ter enfrentado o latifundiário Manuel Coelho, dominador da região e do seu povo. Foi acusado de roubar cereais ao senhor das terras e encarcerado. A mulher de António também acabou por ser presa quando procurava o seu homem e suicidou-se na cela. Mais tarde, o trabalhador foi assassinado pela GNR depois de ter atacado a tiro a família de Coelho, que foi morto junto com o seu filho.

O Diário de Notícias chamou-lhe na altura «a tragédia de Beja». António foi levado ao desespero e nunca mais saiu desse estado. O seu crime e o seu assassinato pertencem a uma cadeia sequencial de violência que mais parece um círculo vicioso. Como explicou Manuel da Fonseca num programa de televisão de 31 de Março de 1975, junto à casa da família pobre: «As metralhadoras funcionaram sobre esta família de camponeses. […] Vieram aqui em volta do monte desalojar um homem na sua casa para levá-lo a continuar a escravatura anterior a ele e que depois dele devia continuar.» Havia um palheiro debaixo do telhado que os guardas incendiaram — e as balas e o fogo deitaram um homem revoltado ao chão, ferindo-o até à morte.

Capa do folhetim informativo do Diário de Notícias sobre o caso

Para o realizador, «[o] livro é um grito de indignação face à injustiça social no Alentejo, onde ser dono das grandes propriedades significava também ter mão no poder político, na guarda, na igreja e ser dono dos homens.» Seara de Vento retrata com rigor e expressividade, em forma romanceada, a realidade social do Alentejo que pouco se tinha alterado nos anos que mediaram entre os acontecimentos históricos e a escrita literária. Era a mesma pobreza das famílias de trabalhadores. Era a mesma riqueza das famílias dos proprietários agrários. Era a mesma planície de pequenos montes e pouca sombra. Era como se o tempo tivesse parado e o mundo não tivesse volta. Todavia, é falso que assim seja. A paisagem muda ciclicamente, mesmo que não pareça, e é moldada pela habitação humana. A força e acção humanas vão transformando o mundo, mesmo que só um aglomerado de gente torne essa transformação mais visível e efectiva.

Tréfaut desenvolveu a ideia do projecto depois de ter realizado o documentário Alentejo, Alentejo (2013) sobre o cante, expressão polifónica antiga com raízes na região alentejana e no seu povo, com espaço para a improvisação de modas sobre o tempo presente. Nasceu no trabalho dos campos e no convívio das tabernas e foi transmitido de geração em geração, como quem guarda e desenvolve uma identidade a partir da memória e da observação colectivas, até em comunidades na diáspora. O realizador leu Seara de Vento quando estava a preparar este filme documental. Numa entrevista a uma publicação brasileira em 2017, Tréfaut comentou como chegou ao livro e como o leu:

o romance era tido como a obra mais emblemática dos conflitos ancestrais dessa região. […] Durante a leitura, percebi depressa que seria um filme forte, simultaneamente local e universal. As tensões do Alentejo são as mesmas que existem há milhares de anos em toda a bacia do Mediterrâneo e em grande parte da América Latina.

Fica a pergunta: que tensões tão permanentes são essas? O cineasta ofereceu uma resposta: «Neste filme, que retrata os anos 1950, o grande proprietário rural é a única pessoa ou entidade que oferece trabalho e que tem dinheiro na região. Os camponeses dependem totalmente dele. […] As pessoas praticamente lhe pertencem e é ele quem dita a justiça. Esse paradigma do poder e do seu abuso permanece de forma camuflada até os dias de hoje.»

Raiva é dedicado à memória do pai do cineasta, Miguel Urbano Rodrigues (1925-2017), jornalista e escritor, militante comunista tal como Manuel da Fonseca. Miguel nasceu na cidade de Moura e viveu exilado no Brasil durante a ditadura fascista, entre 1957 e 1974, período durante o qual Tréfaut nasceu. Esta história pessoal e familiar foi investigada pelo realizador no documentário Fleurette, com um foco na sua mãe francesa cujo nome dá título ao filme. Quanto a Raiva, de alguma maneira permitiu prolongar a redescoberta e o reencontro com as raízes alentejanas presentes na sua família depois de Alentejo, Alentejo. Tal como o tio Urbano Tavares Rodrigues, o seu pai Miguel rompeu com a classe social da sua família de grandes proprietários agrícolas no Alentejo.

Fotograma do filme Raiva (2018), do realizador Sérgio Tréfaut Créditos

A leitura atenta do livro permitiu a Tréfaut retirar algumas conclusões, já a pensar no futuro filme. O seu propósito foi, desde o princípio, respeitar a força narrativa da obra literária, mesmo tendo em vista que o tom e as características estéticas da obra cinematográfica seriam diferentes:

Seara de Vento tem algo de western, com tiroteios, paisagens desertas e um herói soturno. Mas também tem algo de épico. É um romance militante, marcado por um certo romantismo político. Viria logo a ser proibido e retirado das livrarias. A frase final do romance «um homem só não vale nada», atirada em forma de grito desesperado por uma velha que representa a própria terra, significa talvez «unidos podemos mudar o mundo». A esperança na revolta e no ideal socialista está no horizonte.

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