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O futuro do cinema português nas mãos das multinacionais?

A lei do cinema do PS permite às multinacionais não investir sequer em filmes ou séries portuguesas, mas «europeias», e não obriga a que a rodagem seja em Portugal, ou que os filmes sejam falados em português.

Créditos / schoolmedia

Foi no domingo passado tornada pública uma carta aberta de trabalhadores portugueses do cinema contra a nova legislação proposta pelo Partido Socialista na Assembleia da República para este setor, já aprovada na generalidade, cuja votação na especialidade estava marcada para hoje.

A carta é assinada por proeminentes técnicos, atores, produtores e realizadores de cinema de Portugal. A cada hora que passa conta com mais assinaturas, que são já mais de 700.

Sou trabalhador do cinema. Após a publicação da carta, uma colega escreveu-me, diretamente da rodagem de uma série. Dizia não saber se deveria subscrever o texto, por não gostar muito do cinema feito em Portugal – embora goste muito de alguns filmes – preferindo os filmes estrangeiros, feitos a pensar na audiência.

A dúvida da minha colega tem toda a razão de ser. As empresas multinacionais americanas de distribuição de cinema estão há vários anos a tentar manipular a opinião pública para ver se as deixamos: 1) não pagar impostos; 2) ter o monopólio da distribuição de cinema da Europa. Estas multinacionais perceberam que a melhor forma de nos convencer foi dizer-nos que se forem eles a mandar na produção do cinema dos nossos países, esse cinema, por exemplo o português, passaria a ser feito «para o público» e mais gente iria gostar dele, ao contrário do que, dizem eles, atualmente acontece.

A questão é que o objetivo destas multinacionais não é que o cinema português passe a ser feito para o público: é não ter os seus lucros taxados e acabar com a concorrência. E é isso que a nova Lei do Cinema do Partido Socialista, a médio prazo, lhes dá.

«Estas multinacionais perceberam que a melhor forma de nos convencer foi dizer-nos que se forem eles a mandar na produção do cinema dos nossos países, esse cinema, por exemplo o português, passaria a ser feito "para o público" e mais gente iria gostar dele, ao contrário do que, dizem eles, atualmente acontece.»

Goste-se de cinema de autor, de cinema comercial, ou dos dois, há uma questão que está acima dessas, que é: quem deve decidir que cinema é feito em Portugal? Os portugueses ou empresas estrangeiras? E que empresas devem ficar com os lucros feitos por esses filmes, as portuguesas ou as estrangeiras?

Desde o pós-Segunda Guerra Mundial, a maioria dos países da Europa taxa uma pequeníssima parte dos proveitos das empresas que fazem lucros no ramo do cinema, usando esse pouco dinheiro para produzir filmes locais, atribuído através de concursos públicos a produtores locais.

Para quê? Para não termos de importar todos os filmes que vemos – importações significam dinheiro a sair do País –, para dar emprego às pessoas – para que atores, técnicos, realizadores e produtores não tivessem de emigrar para a América, como acontecia nos anos 40 e 50 do século XX –, para haver filmes que representem as culturas, tradições e línguas de cada país.

Atualmente, simplificando, Portugal financia estes filmes através de uma taxa de 4% sobre os preços pagos pela publicidade nos cinemas e nas televisões, e cobrando às empresas de serviços de subscrição – como a TV por cabo – dois euros por ano por cada cliente que tenham.

Só que as novas tecnologias criaram novos modelos de negócio e, tal como a Uber ou a Airbnb apareceram e não pagavam impostos, prejudicando o sector do táxi ou da hotelaria, também no cinema apareceram negócios como a Netflix, a Amazon ou a HBO, que não pagam nenhuma taxa ou imposto para operar em Portugal, apesarem de levarem muito dinheiro de Portugal para o estrangeiro.

A cada ano que passa, menos gente vê cinema nas salas de cinema ou nos canais de televisão generalistas, e o mercado da publicidade está em crise. Portanto, o dinheiro taxado para investir em cinema local é cada vez menos. Aos poucos, as empresas como a Netflix ficarão com o monopólio do mercado. Mas esta lei do cinema do PS, em vez de taxar estas empresas tal como taxa todas as outras que lucram com o cinema e com o audiovisual, não o faz.

Em vez disso – apesar de taxar alguns modelos de negócio até aqui isentos, o que leva o secretário de Estado do Cinema e do Audiovisual, Nuno Artur Silva, a argumentar que as receitas para o cinema português vão aumentar –, abre um grave precedente: permite às multinacionais, não apenas decidir que filmes serão por si produzidos com o dinheiro das taxas que deveriam ser cobradas, mas, mais que isso, permite que estas empresas distribuidoras tenham o estatuto de co-produtoras dos próprios filmes, reduzindo os produtores portugueses a prestadores de serviços, elos mais fracos sem qualquer poder.

«(...) também no cinema apareceram negócios como a Netflix, a Amazon ou a HBO, que não pagam nenhuma taxa ou imposto para operar em Portugal, apesarem de levarem muito dinheiro de Portugal para o estrangeiro.»

Mas é pior ainda: a lei do cinema do PS permite às empresas multinacionais decidir não investir sequer em filmes ou séries portuguesas, mas em filmes ou séries «europeias». Permite que os técnicos contratados sejam de quaisquer países europeus, não obriga a que a rodagem seja em Portugal, ou que os filmes sejam falados em português – podendo, por exemplo, só dar trabalho a atores portugueses que saibam falar inglês para papéis falados em inglês –, ou tenham de tratar temas que interessem ao público português.

As multinacionais podem simplesmente decidir filmar no país da Europa onde os governos locais dêem mais incentivos fiscais ou investimento direto nas suas produções, levando ao possível absurdo de que um governo ainda tenha de dar dinheiro para reter no país as produções feitas com o dinheiro que lhes deveria taxar (ver programa Cash Rebate do Instituto do Cinema e do Audiovisual, que dá dinheiro a produções para as convencer a filmar em Portugal).

Esta lei ameaça, a longo prazo, os produtores portugueses de extinção. E no dia em que, daqui a anos, qualquer técnico do cinema tenha de negociar o seu salário, não com um produtor português, mas com secretários de secretários, intermediários de grandes poderes monopolistas audiovisuais estrangeiros, numa pirâmide hierárquica abismal, nesse dia esse trabalhador vai perceber que a Lei do Cinema do Partido Socialista de 2020 tornou a sua vida um inferno ainda maior do que já é hoje, resultado de décadas de falta de políticas para o cinema em Portugal.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AE90)

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