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Da Arte da «improvisação» no Jazz

Ora, é a multitude quase infinita de tratamentos e desenvolvimentos que Monk «inflige» a um tema assim — cuja exposição de princípio a fim durará, no máximo, em tempo médio, 1m45s — que ocupa neste duplo CD em apreço a módica duração total de 1h47m08s! Já perceberam, então, o muito que terão para «gozar»...

O pianista e compositor Thelonius Monk
O pianista e compositor Thelonius MonkCréditos

A coisa aconteceu assim: um SMS amigo (e de confiança) avisou-me de que aparecera muito recentemente na FNAC um curiosíssimo disco de Thelonius Monk, tocando sobretudo a solo: um CD ainda por cima duplo e a um preço convidativo, contendo apenas improvisações do velho mestre sobre «I’m Getting Sentimental Over You», um velho clássico de George Bassman e Ned Washington tornado popular nos anos 30 pela orquestra de Tommy Dorsey. Assim mobilizado e curioso, lá fui comprá-lo imediatamente e, passado pouco tempo, aí estava a ouvi-lo sem conseguir interromper a audição, nem quando intimado para o almoço! E a coisa não era para menos!

Passo a explicar: estas gravações, absolutamente desconhecidas, fazem parte do amplo e riquíssimo espólio de gravações particulares (não editadas comercialmente) que hoje é carinhosa e criteriosamente documentado, anotado e divulgado por T. S. Monk, filho do pianista e compositor, também ele músico. Neste caso particular, trata-se da abordagem, passo a passo, pelo grande pianista, de um tema muito conhecido dos amadores de jazz, com uma melodia certamente de contornos agradáveis mas não especialmente entusiasmantes, não se antevendo muito bem (antes desta audição) porque haveria de interessar a tal ponto Thelonious, pese embora a «grelha harmónica» não ser isenta de sedutores e potenciais enriquecimentos.

The Ink Spots Créditos

Para terem uma ideia (aliás, deliciosamente situada no ambiente do seu tempo) do tema de «I’m Getting Sentimental...», sugiro, para já, que o ouçam aqui na versão totalmente straight de um histórico e famoso grupo vocal que foi dos primeiros a gravá-lo comercialmente: os célebres Ink Spots!

Como vêem — e quem quiser poderá segui-lo, passo a passo, pela pauta com o baixo cifrado que se junta a este escrito —, trata-se de uma canção que veio a tornar-se um standard do jazz apropriado por dezenas e dezenas de grandes músicos e cuja estrutura é a simples forma-canção de centenas de tantos outros êxitos: A—A—B—A’, com 8 compassos a ocupar cada parte, o que dá um total de 32 compassos. Ou seja, em princípio, o «trivial».

Ora, é a multitude quase infinita de tratamentos e desenvolvimentos que Monk «inflige» a um tema assim — cuja exposição de princípio a fim durará, no máximo, em tempo médio, 1m45s — que ocupa neste duplo CD em apreço a módica duração total de 1h47m08s!

Já perceberam, então, o muito que terão para «gozar»...

Sem cuidar aqui, por criteriosa ocupação de espaço, de traçar um retrato exaustivo (e muito menos biográfico) de Thelonius Monk, enquanto um dos mais geniais músicos e personalidades da História do Jazz (dadas as múltiplas fontes de confiança hoje à disposição, naturalmente escolhidas com critério por quem se sentiu minimamente mobilizado por este despretensioso escrito) — debrucemo-nos, então, sobre o conteúdo da obra que, espero, já tenham nas vossas mãos!

O primeiro CD, totalmente tocado em piano solo, tem a duração de 60m34s de música e é composto por cinco faixas. Todas elas foram gravadas em casa de Monk pela sua mulher Nellie, com um único microfone, num simples gravador de fita de ¼“. Musicalmente, para todos os efeitos, este CD funciona, nas suas várias componentes estratégicas e investigativas, como o verdadeiro «traçar de um plano».

O segundo CD, incluindo ainda o remanescente de gravações caseiras, bem mais descontraídas, dura 46m34s e tem a completá-lo três actuações ao vivo, realizadas entre 1961 e 1963, em vários concertos europeus, em Paris ou em Estocolmo, por diversas formações do quarteto de Monk, todas elas tendo como saxofonista Charlie Rouse, fiel companheiro do pianista. Musicalmente, é, ao fim e ao cabo, o completo e natural domínio do material, já inserido, agora, numa situação de emissão e recepção musical de total normalidade: a de um concerto público.

É preciso dizer-se, em primeiro lugar, que Thelonius Monk—The Transformer não é um disco de audição fácil. Ou melhor, sem hesitar nas palavras, trata-se de um disco bem «duro» de ouvir mas que é preciso enfrentar como um objecto artístico não imediatamente assimilável. E um dos principais interesses e privilégios auditivos vem do acompanhamento que podemos ir fazendo, em tempo real, da formação e evolução da estratégia musical de um grande mestre do jazz ao confrontar-se com a descoberta das potencialidades de um dado tema para sobre ele discernir, momento a momento, em termos de «desenvolvimento», neste caso através dos mecanismos da «variação» sobre a sua estrutura original, de uma forma improvisada e não-escrita, como o faria um compositor do domínio da «clássica».

Monk não se limita a tomar a estrutura do tema e a debitar, como qualquer pianista minimamente talentoso, uma série de variações/improvisações mais ou menos insinuantes e virtuosas ou mesmo tecnicamente arrebatadoras, às quais imediatamente poderíamos aderir pela «convivência» habitual (leia-se: pela abundância de clichés) com o que nos seria proposto, portanto, sem que fôssemos particularmente inquietados ou chamados a também reflectir sobre este intrincado processo «criativo».

Pelo contrário, o Mestre torna tudo muito mais exigente, a começar pela atitude perante si próprio: por exemplo, a audição da primeira faixa do fabuloso CD 1 é particularmente esgotante, ao seguirmos Monk a partir da segunda parte do tema na busca quase doentia, tortuosa e incessante dos acordes através do quais pretende desconstruir (para não dizer «destruir») a simplicidade tão singela da «grelha» harmónica original, por vezes procurando somar ou subtrair tal ou tal nota nos aglomerados sonoros que vai criando, nas dissonâncias cada vez mais agressivas que vai experimentando, naquilo que é a prodigiosa tradução auditiva do seu próprio pensamento musical, à medida que este se vai formando e desviando por novos caminhos.

Já a audição da faixa 2 do mesmo CD 1, demonstra agora a assumpção plena do tema, enquanto tal, pela primeira vez exposto na sua versão integral, mas ainda e sempre de um modo sui generis, em constante rubato, deixando à vista desarmada numerosas hesitações, embora continuando aqui a não haver ainda qualquer ideia de variação. E como sinal das surpreendentes e inexplicáveis «manias» de Monk, surge pela primeira vez, depois de uma ligeiríssima cadência, um trilo final nos agudos do teclado, parecendo ser esta uma descoberta especialmente «gostosa», já que será repetida ao longo do disco inúmeras vezes... Mistérios!

A 3ª. e 4ª. faixas representam, dir-se-ia, a evolução natural para uma situação mais familiar aos amadores de jazz. Dominada que está a interiorização, por Monk, das potencialidades e contornos de «I’m Getting Sentimental Over You», seguem-se à exposição integral do tema, pela segunda vez assumida como tal, no primeiro caso, cinco variações (em calão jazzístico: cinco choruses) e, no segundo caso, 15 variações, tudo terminando com a reexposição do tema... sem esquecer o tal trilo final!

Por último — e ainda estamos no CD 1 — na faixa 5, os choruses (as variações) contam-se por 25, sendo que entre o 21º. e o 22º., Monk parece dar-se por satisfeito, passando à reexposição do tema. Subitamente, entretanto, o tal trilo final parece ter mexido consigo e despertado novas comichões, pelo que a coisa prossegue até ao 25.º chorus, agora sem reexposição do tema e, em sua substituição, um final breve e meio surreal, inopinadamente de carácter «rapsódico»...

Créditos

Pelo meio, o pianista experimenta de tudo: «dobragem do tempo», acelerações e ralentandi, modos mais ou menos percussivos de atacar o teclado, e, sobretudo, a consagração definitiva (aplicada a «I’m Getting Sentimental...») de um estilo pianístico e de um desenvolvimento improvisativo absolutamente inconfundíveis, com constantes linhas descendentes por «tons inteiros», saltos de intervalos (aumentados ou diminutos) afastados entre si, choques de intervalos próximos, insistência ou obsessão num ou noutro motivo melódico contrastando provocatoriamente com mudanças harmónicas, inversões de acordes, até por vezes enganos e, num caso, mesmo roubo de tempos, que T. S. Monk ali deixa ficar, como verdade absoluta, como marca pessoal, certamente porque o seu pai decidiu não interromper nesse momento a gravação.

Mas é ainda a conjugação da inabalável paixão pela tradição do piano-jazz — traduzida na influência do acompanhamento stride da mão esquerda, ouvida a tantos mestres antigos do ragtime, com quem convivia em Harlem — com a prematura ideia de modernidade que, a exemplo de Charles Mingus (outro maldito!), marcou Monk como um dos mais geniais e singulares criadores do jazz moderno dos anos 40 e seguintes, que fica a enriquecer o final do primeiro CD e a natural transição para o segundo, confirmando este, plenamente, o domínio total de um material temático específico e das múltiplas saídas criativas que, a partir daqui, o mestre evidencia amplamente, quer no seu recolhimento individual quer ao lado dos seus pares de circunstância.

Todo este material, todo este documento histórico, foi digitalmente remasterizado pelo célebre engenheiro de som Rudy van Gelder e originalmente editado na etiqueta Thelonius Records em 2002, sendo depois reeditado em 2007 por uma editora independente, Explore Records, a um preço verdadeiramente simbólico — ainda por cima mais amortecido por uma conjuntural «promoção especial» da FNAC.

Ou seja, estes 1h47m08s de música sublime estão à nossa disposição apenas por 3 euros: o preço de um arroz doce ligeiramente amornado, a adornar um repasto bem regado no restaurante ali da esquina!

Tenham bom proveito!

Em tempo: Salve Alexandra Lucas Coelho pelo apaixonante texto sobre a Cerimónia da Abertura dos Jogos.

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