A discussão fiscal do Orçamento do Estado deixa bem claro o que pretendem as classes privilegiadas: (1) reduzir os impostos deles e (2) reduzir a despesa pública com as nossas necessidades. A redução dos seus impostos faz-se, neste Orçamento, muito pela redução do IRC e pelo IRS Jovem, mas abundam as propostas e reivindicações que vão todas no sentido de baixar os impostos de quem mais tem e eliminar de vez o carácter progressivo dos impostos. Quanto à redução da despesa pública, e dos serviços públicos, ela (1) vai continuar a criar novas oportunidades de negócio para as camadas privilegiadas aplicarem capital e (2) vai criar um conjunto de novos impostos, a serem pagos pelas famílias, quer se chamem «seguros de saúde», «complementos de reforma», «fundo de pensões», «empréstimo para a educação» ou outros, impostos que deixam de se chamar impostos porque deixam de ser pagos ao Estado, mas passam a ser pagos directamente ao grande capital.
E podemos começar exactamente por aqui. Aqueles (os papagaios dos interesses das camadas privilegiadas) que nos dizem que em Portugal se pagam muitos impostos e depois nos comparam com os países da OCDE fazem sempre um pequenino truque: incluem nos «impostos» a Segurança Social, e depois fazem a comparação com países onde não há qualquer segurança social, onde os cidadãos, se querem ter reforma quando deixarem de trabalhar, têm de pagar ou arranjar quem pague um Fundo de Pensões privado, onde a Saúde está quase toda privatizada, e sobreviver implica pagar ou arranjar quem pague um seguro de saúde (e estes seguros de saúde não custam o que custam em Portugal, custam muito mais, porque nesses países não existe o recurso ao SNS quando se está mesmo doente, como em Portugal), países onde não existem subsídios de desemprego, de doença ou invalidez, porque tudo isso tem que ser comprado no mercado, a bom preço, ou, se o azar bater à porta, há sempre a solução de morar na rua, países onde um jovem estudante começa a sua vida activa com uma dívida de centenas de milhares de euros para ser paga a um banco, se algum aceitar ganhar dinheiro com ele.
«Aqueles (os papagaios dos interesses das camadas privilegiadas) que nos dizem que em Portugal se pagam muitos impostos e depois nos comparam com os países da OCDE fazem sempre um pequenino truque: incluem nos "impostos" a Segurança Social, e depois fazem a comparação com países onde não há qualquer segurança social, onde os cidadãos se querem ter reforma quando deixarem de trabalhar têm de pagar ou arranjar quem pague um Fundo de Pensões privado (...).»
Só para vos dar uma ideia concreta: nos EUA os trabalhadores não pagam Segurança Social como os trabalhadores portugueses. Mas pagam um prémio médio mensal de 703 euros no Seguro de Saúde! Sim, setecentos e três euros! Que não são formalmente impostos, pois não são pagos ao Estado, mas que são impostos aos trabalhadores e suas famílias se querem sobreviver a uma unha encravada. É isto que uma parte da burguesia nacional nos quer vender: deixarmos de pagar 11% (nós) e 23% (o patrão) do nosso salário à segurança social para passarmos a pagar 703 euros em média directamente ao capital financeiro através das seguradoras. E se além de acesso à saúde também se quer ter acesso a uma reforma digna ou a um fundo de desemprego, são mais umas centenas de euros por mês... e fazer figas para «o nosso» fundo de pensões não desaparecer na especulação capitalista. Nos mesmos EUA, em média, cada estudante termina o curso com uma dívida bancária de 36 000 euros! Sim, trinta e seis mil euros!
E para terminar com o exemplo dos EUA, este país possui o melhor e mais avançado sistema de saúde do mundo. Um sistema de saúde que é responsável por 18,9% do seu PIB! Nas dez empresas com maior capitalização bolsista, duas são do sector da saúde e são norte-americanas, e das 50 maiores do mundo, 11 são do sector da saúde e são norte-americanas. Mas a esperança de vida de um norte-americano é inferior à de um português. Parece que a excelente saúde do 1% de multimilionários e dos 20% muito abastados não compensa – estatisticamente – a saúde mais degradada da parte menos privilegiada. Mas compensa financeiramente!
É que, não só colocam os trabalhadores a pagar mais (e não menos como prometem), como criam novas oportunidades de negócio para aqueles que vivem sem trabalhar, vivem de aplicar capital.
As propostas fiscais da direita
É por ter este plano para os serviços públicos – mesmo se só à IL cabe a tarefa de o expressar com todas as letras –, que, quer o PSD, quer o CDS, quer o CH, quer a IL avançam com um vasto conjunto de propostas para reduzir os impostos dos mais ricos.
A primeira base para essa redução é a do IRC. O PSD/CDS propõe baixar a taxa de IRC de 21% para 19% em 2025. A taxa de IRC é paga pelas empresas, com uma percentagem sobre os lucros (os primeiros 50 000 € de lucro são taxados a 17% e passariam a sê-lo a 15%). As contas da UTAO apontam para uma redução de 693 Milhões de euros de impostos usando os números de 2023, extrapolando um valor de 841 milhões para 2025.
Como o grosso dos lucros se encontra nos grandes grupos económicos, seriam eles quem veria um maior desconto. Olhemos para um exemplo ilustrativo:
A EDP registou nos primeiros nove meses deste ano um lucro de 1083 milhões de euros, um aumento de 14% (o que nada tem a ver com o custo absurdo da electricidade, que todos os dias nos explicam ser culpa da Rússia, do Hamas e dos imigrantes). Vai para lucros de 1400 milhões em 2024. Esse lucro teria uma base de colecta no IRC de cerca de 370 milhões, que baixaria para 335 milhões com a proposta do PSD. Um desconto de 35 milhões euros que, garante Luís Montenegro, é o que vai permitir à EDP aumentar salários!
«Como o grosso dos lucros se encontra nos grandes grupos económicos, seriam eles quem veria um maior desconto.»
Mas a IL diz que não chega, que a taxa de IRC deve baixar para 12%1. Já estaríamos a falar de mais de três mil milhões de desconto no IRC. No caso já citado da EDP, seriam mais 160 milhões de lucros para distribuir aos accionistas da EDP.
Mas a IL e o CH dizem que não CHEGA! É preciso também acabar (a IL) ou reduzir (CH) a Derrama Estadual. A Derrama Estadual é uma taxa contabilizada nas receitas do IRC, mas que só é paga pelas empresas com lucros superiores a 1,5 milhões de euros, sendo que o grosso da derrama é das empresas com lucros superiores a 35 milhões de euros (em 2023, 689 milhões de euros de derrama paga pelas empresas com mais de 35 milhões de lucro, de um total de 1082 milhões). Na Derrama Estadual, as propostas da IL custariam mais 1082 milhões ao Orçamento e as do CH 329 milhões (usando os números de 2023 fornecidos pela UTAO).
Voltando ao exemplo da EDP, o desaparecimento da derrama implicaria uma nova redução de 150 milhões a pagar no IRC, usando os números de 2023. A IL e o CH garantem que essa redução de impostos seria usada pelos administradores da EDP para baixar os preços e aumentar salários, não para aumentar os lucros e os dividendos distribuídos. Claro!
Nos restantes impostos, a lógica é igualmente sempre a mesma. A IL propõe, por exemplo, reduzir os últimos escalões do IRS para 28%, ou seja, colocar os mais ricos, e só esses, a pagar quase metade do IRS que pagam actualmente (e recordamos que o IRS é para todos os rendimentos dos contribuintes singulares, não apenas os do trabalho). E explica que o seu projecto é baixar esse imposto até os 15% para os mais ricos. Também há propostas para reduzir o que pagam os senhorios de IRS. E o IRS Jovem vai servir, essencialmente, para que os jovens de maiores rendimentos tenham um benefício fiscal que de nada servirá à maioria de jovens cujos salários rondam o Salário Mínimo.
Finalmente, o PS
Este texto não ficaria completo sem uma referência ao PS. Sofrendo a mesma pressão que sofrem os restantes partidos da política de direita, e sendo cúmplice com o resultado final, ele ocupa um lugar fundamental na estratégia da progressiva redução dos impostos sobre as camadas privilegiadas. O seu papel é assumir que a luta, que o espectro de opções «realistas» é entre o que está e o que propõe a direita. Permitindo apresentar como vitória uma «ligeira redução» no IRC, usando a gasta desculpa do «podia ser pior».
«A IL e o CH garantem que essa redução de impostos seria usada pelos administradores da EDP para baixar os preços e aumentar salários, não para aumentar os lucros e os dividendos distribuídos. Claro!»
Sem o PS a fazer de esquerda do sistema, o que estaria em debate, era se se deveria reduzir o IRC ou aumentar o IRC (já alguém ouviu falar das propostas do PCP para aumentar o IRC sobre os lucros superiores a 250 milhões de euros?). Era se se deveria reduzir o IRS dos mais ricos ou se estes deveriam ser taxados por todos os seus rendimentos (englobamento obrigatório acima de 83 mil euros como propõe o PCP). Era como se acabam com os benefícios fiscais ao grande capital que custaram, só em deduções à colecta no IRC, um total de 1087 milhões de euros no ano de 2023 (governo de maioria absoluta PS). Era como se consegue corrigir o desvio anticonstitucional na carga fiscal, com o peso crescente dos impostos indirectos, mais injustos (e por isso o PCP propõe baixar o IVA da electricidade, gás e telecomunicações, tudo com incidência directa e controlável sobre os preços cobrados às famílias).
A deslocação do debate político e mediático para a direita, dirigida pelos interesses das classes privilegiadas, só é possível pelo papel activo nesse estratagema do conjunto dos partidos da política de direita – PS, PSD, CDS, IL, CH.
- 1. E já agora, uma nota de rodapé. Nas eleições, a IL propunha 15% como taxa de IRC. Na altura dissemos que era apenas um passo na corrida para zero. Como o PSD já colocou a fasquia nos 15%, a IL avança com 12%, assim confirmando que o seu projecto é eliminar o IRC e colocar todas as receitas fiscais sobre os ombros dos trabalhadores.
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