|Jorge C.

Nem todas as proclamações são vanglória

Não é a primeira vez que personalidades ligadas ao universo da arte e da cultura dão o seu apoio a projetos políticos que representam o oposto da sua própria intervenção artística e de muitas causas com as quais se identificam.

CréditosFilipe Amorim / Agência Lusa

No início da década de 1940, Francisco José Tenreiro participou na coletânea Novo Cancioneiro, que assinala a afirmação da poesia neorrealista no panorama cultural português, com a obra Ilha de Santo Nome. A par da sua intervenção artística e com uma carreira académica desenvolvida em Portugal, o poeta e intelectual são-tomense esteve entre os nacionalistas africanos da Casa dos Estudantes do Império e fundou, com Amílcar Cabral, Agostinho Neto, entre outros, o Centro de Estudos Africanos. Apesar destas ligações e do trabalho que desenvolveu, Tenreiro rejeitou juntar-se à oposição ao regime fascista e colonialista português. Com uma carreira académica e administrativa assente em relações com altos cargos do Estado português, Francisco José Tenreiro acabaria por servir instituições ultramarinas, através de Adriano Moreira e entrar na Assembleia Nacional, a convite de Marcelo Caetano. Morreu cedo, pouco depois da eclosão da Guerra Colonial, e a sombra da sua cooptação pelo regime é, ainda hoje, um tema sensível.

Há dias, o espectro político da esquerda recebeu em choque o apoio político de Dino d'Santiago à candidatura presidencial de Luís Marques Mendes – uma candidatura inequivocamente comprometida com o histórico das políticas do PSD e com o atual governo. Convidado pelo candidato para assumir o papel de mandatário para a Cultura, Diversidade e Inclusão, Dino d’Santiago aceitou o convite, anunciando a sua decisão numa publicação nas redes sociais, ao lado do seu pai. O espanto vem, sobretudo, da incoerência entre a intervenção política do artista, associada à luta antirracista, anticolonial e de denúncia das desigualdades e injustiças sociais, e um apoio a um político que está intimamente ligado a opções políticas e ideológicas que promovem essas mesmas desigualdades e injustiças, com consequências diretas nas comunidades mais permeáveis à exploração, como o são as comunidades periféricas racializadas.

A incoerência é, de facto, espantosa, mas não deveria surpreender. Não é a primeira vez que personalidades ligadas ao universo da arte e da cultura dão o seu apoio a projetos políticos que representam o oposto da sua própria intervenção artística e de muitas causas com as quais se identificam. Assume-se que o artista é um intelectual estruturado e que o seu trabalho resulta da sua consciência política. Ao mesmo tempo, ignora-se que a génese da motivação artística pode ser apenas performativa, conquistando um espaço procurado mas não ocupado, ainda. Não que seja necessariamente o caso, mas esta é uma hipótese que devemos colocar quando nos deparamos com um objeto artístico ou de entretenimento com aparência de intervenção política. Ignora-se, também, a sociologia dos artistas.

Se houve algo que sempre caracterizou o artista (ou o atleta) que superou determinados obstáculos sociais foi a motivação para provar o seu valor e a superação, sempre insuficiente, dos patamares alcançados. Nesse processo de superação, surge muitas vezes a necessidade de garantir a si próprio que não está a trair as suas raízes e que será, de resto, uma espécie de primus inter pares, que irá denunciar as injustiças. Ele, sozinho, será a voz que irá transformar o rumo das coisas. Porém, a sua ambição (onde inicialmente estavam sonhos e expectativas) prevalece quase sempre sobre essa missão – uma decorrência da realidade do meio que passou a integrar. Tal missão não lhe foi exigida, ela foi instrumental para lidar com a sua própria consciência e, a certa altura, afirma-se como uma ferramenta promocional eficaz.

Em determinados patamares tudo acaba por ser calculado com base no efeito que tal terá nesse caminho de superação ou de consolidação da sua posição concorrencial. O artista passa, ele próprio, a ser uma mercadoria útil num mercado onde até há espaço para a denúncia do próprio modelo económico que o sustenta. A denúncia, que passa a ser meramente performativa, é o mecanismo de alargamento das potencialidades económicas daquela mercadoria, disfarçando-se de uma certa consciência política e chegando a um público que se julga impermeável aos instrumentos do capitalismo. Numa indústria periférica e num mercado pequeno, as características singulares do artista são apropriadas como características distintivas de um produto que encontram um lugar de afirmação e destaque. Para sustentar esse posicionamento, o artista é estimulado a promover tais características, numa clássica proposta de negócio de compra e venda. 

«Existem, contudo, centenas de artistas em Portugal comprometidos com os valores que apregoam, conscientes que o seu posicionamento lhes poderá ser desfavorável. [...] Num momento como este é importante valorizar essa coragem para que saibam que não estão sozinhos e que essa luta vale sempre a pena.»

O problema não reside no indivíduo em si, no seu caráter ou nos seus valores, mas no mecanismo que passou a condicionar as suas opções. Inevitavelmente, revelam-se contradições entre a sua linha de intervenção política e posições que decorrem da necessidade de sustentar a sua frágil posição num mercado economicamente limitado e sem capacidade de expansão. Ao artista resta, por isso, a afirmação meramente performativa de determinadas singularidades que o mantêm integrado num circuito comercial onde poderá continuar a prosperar. É a porta de entrada do artista no status quo, onde nasce a possibilidade de ser convocado para validar a agenda aparente dos projetos políticos que salvaguardam o poder dominante. É um jogo de compensações que perpetua e legitima esse mesmo poder.

Nada disto é, portanto, novo na nossa história contemporânea, em que a cultura popular foi sempre utilizada com objetivos de propaganda política para a legitimação do poder dominante. Num processo de chantagens e condicionalismos, a intervenção artística mantém-se, com recurso ao mesmo tipo de frases e proclamações de sempre, mas a sua projeção mediática, com o seu aval, é apropriada por aqueles que lhe permitem continuar a ter valor comercial. 

Tal acontece não apenas na cultura ou no desporto. A cooptação de determinadas personalidades, seja no meio académico ou institucional, seja na comunicação social, é uma das mais sofisticadas armas do capitalismo para enfraquecer as fileiras do movimento progressista. Através de processos de sedução para o sucesso e valorização individual, cria-se em cada indivíduo a convicção de que ali está uma oportunidade para prosperar, ao mesmo tempo que será uma voz ativa nos valores que defende. Esta mitomania tem efeitos brutais na confiança dos que abnegadamente se recusam a entrar num jogo viciado e a serem usados como bandeira daqueles que estão a combater. Até porque, eventualmente, aquele que se sente julgado pela sua cooptação defender-se-á, atacando e responsabilizando os seus próprios pares pelos insucessos, entropias ou desvios da sua luta.

Da ingenuidade ao cálculo egoísta, foram sempre muitos os que tomaram decisões que, mais cedo que tarde, se revelaram inconsequentes para a transformação da sociedade. A sua cooptação poderá favorecê-los momentaneamente, no estatuto social e económico e, no limite, em alguma estabilidade financeira – uma compensação pela legitimação do modelo hegemónico. Não se trata, portanto, de uma questão moral, mas de uma ilusão que se compreende num quadro social e económico que estimula os valores do individualismo.

Existem, contudo, centenas de artistas em Portugal comprometidos com os valores que apregoam, conscientes que o seu posicionamento lhes poderá ser desfavorável. Essa coragem é visível para além de simples proclamações e está, todos os dias, em cada gesto solidário, em cada movimento em direção à transformação do mundo, em cada luta a que se associam fora dos palcos ao lado de milhares de anónimos. Num momento como este é importante valorizar essa coragem para que saibam que não estão sozinhos e que essa luta vale sempre a pena. 


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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