Como seria viver em cidades onde os carros deixassem de ser o centro das atenções? Em cidades sem o barulho constante, sem a poluição sonora e visual, sem intermináveis engarrafamentos? Em cidades onde os transportes públicos funcionassem e respondessem às necessidades das populações? Onde as ciclovias fossem extensas, seguras, bonitas? Onde o espaço hoje ocupado pelos automóveis desse lugar a passeios largos e acessíveis, a jardins e renques de árvores, a parques infantis, a zonas de lazer com bibliotecas itinerantes, bancos e mesas de piquenique?
As nossas cidades não foram originalmente construídas para os automóveis, mas foram progressiva e profundamente remodeladas para lhes dar muito espaço. Alargaram-se estradas, abriram-se túneis, reduziram-se passeios (e em alguns sítios nem passeio existe, só a berma), construíram-se rotundas, circulares, auto-estradas, instalaram-se semáforos, barreiras, protecções, numa parafernália sem fim de medidas, obras e acrescentos que transformaram os não-automobilistas em figurantes das cidades.
A centralidade do automóvel é-nos imposta como uma evidência, condicionando a nossa forma de pensar e de inventar alternativas. Para muitos, imaginar uma cidade sem carros é simplesmente impossível – a ideia parece irrealista, até absurda.
Em Portugal, o automóvel individual continua a ocupar uma posição de privilégio absoluto dentro do sistema de transportes e as pessoas e movimentos que defendem outras formas de organização do território têm imensa dificuldade em fazer ouvir-se. Aos automóveis, é dedicada parte essencial do espaço das nossas cidades, dos seus recursos financeiros e das suas infra-estruturas. Isto impõe uma distribuição injusta e profundamente antidemocrática do espaço disponível, na medida em que todo o espaço dedicado aos automóveis está vedado a outros usos. Não falamos apenas das ruas, estradas, avenidas, cruzamentos, rotundas, vias rápidas, túneis, rampas e viadutos, mas também dos parques e lugares de estacionamento, à superfície e subterrâneos, das gasolineiras e estações de serviço, das portagens, sinais de trânsito, radares, câmaras, sensores, painéis electrónicos… e de todo o espaço suplementar de que se apropriam, estacionando impunemente em segunda fila, nas ciclovias, em cima dos passeios, dos jardins e de qualquer espaço que não tenha sido delimitado por pinos que o impeçam. Pinos que, ao mesmo tempo que impedem o estacionamento, desfeando a paisagem, são obstáculos suplementares para pessoas com mobilidade reduzida – pessoas cegas que neles se esbarram e magoam, pessoas que usam uma cadeira de rodas e nem sempre conseguem passar, crianças que a correr neles tropeçam…
«A centralidade do automóvel é-nos imposta como uma evidência, condicionando a nossa forma de pensar e de inventar alternativas. Para muitos, imaginar uma cidade sem carros é simplesmente impossível (...).»
Os restantes meios de transporte – autocarros, eléctricos, bicicletas, etc. – são considerados secundários e subordinados à centralidade do carro, que não deve sofrer interferências de maior. Assim, por exemplo, em Portugal, boa parte da criação de corredores de autocarro dos últimos anos, fez-se onde não incomodava a circulação automóvel. Nas grandes artérias de Lisboa e do Porto, nos centros das cidades, os autocarros continuam a partilhar a via com os carros e os seus motoristas e passageiros a sofrer os atrasos e o desgaste que o pára-arranca dos engarrafamentos lhes impõe.
O que faríamos com todo este espaço, se ele não estivesse ocupado por carros? Foi o que imaginaram já muitas cidades, como Barcelona, Liubliana, Paris…
Em Barcelona, as autoridades testaram em 1993, num dos bairros do centro histórico (o antigo bairro do El Born), o modelo da superquadra (as supermanzanas), que tem vindo a ser considerado como um dos melhores exemplos de transformação urbana relativamente simples. Trata-se de uma reorganização do espaço que define um quadrado de três por três, dentro do qual o trânsito automóvel é reduzido ao mínimo. A velocidade é limitada a 10km/hora e o trânsito é reorganizado de tal forma, que não é possível atravessar estas ilhas urbanas para cortar caminho. Assim, de facto, os veículos que ali circulam são ou os dos residentes, ou alguma ambulância, algum táxi. Isto permitiu reduzir ao mínimo o espaço ocupado pelos carros, alargar os passeios, plantar árvores e jardins, instalar vasos, mesas de piquenique, jogos para as crianças, bancos para os vizinhos conversarem. Reduziu-se o barulho a que estava sujeito quem ali morava e sobretudo deu-se o exemplo, mostrando que sim, é possível transformar profundamente o espaço urbano em pouco tempo. O projecto estendeu-se gradualmente a outras zonas da cidade de Barcelona e a câmara está agora a transformar o famoso bairro do Eixample – as quatro grandes avenidas do bairro estão a ser convertidas em «eixos verdes» e os imensos espaços onde outrora havia cruzamentos, em praças ajardinadas que funcionam não só como espaços de calma e lazer, mas também como lugares de preservação da biodiversidade urbana.
«O que faríamos com todo este espaço, se ele não estivesse ocupado por carros? Foi o que imaginaram já muitas cidades, como Barcelona, Liubliana, Paris...»
A radicalidade feliz destes projectos inclui por isso e também uma transformação do revestimento dos solos e a criação e preservação de superfícies não pavimentadas e permeáveis. Os solos permeáveis permitem a infiltração simples das águas das chuvas, alimentando os lençóis freáticos e os ecossistemas dependentes das águas subterrâneas, evitando inundações e despesas com sistemas de drenagem caríssimos. Os solos permeáveis não só não acumulam calor da mesma forma que os pavimentados, o que refresca as cidades, como permitem o crescimento de árvores saudáveis, que nos dão sombra, melhoram a qualidade do ar, diminuem o ruído (as suas copas e ramos absorvem e dispersam os sons urbanos), contribuem para a preservação da saúde mental das populações e servem de abrigo a tantas outras espécies animais. A pavimentação sistemática, imposta em parte pela centralidade do automóvel individual, estrangula os solos e não é compatível com as necessidades das árvores – ela impede a infiltração das águas, reduz o oxigénio nos solos e compacta-os, sufocando as raízes. Algumas árvores sobrevivem como podem, com pequenas aberturas no pavimento, mas crescem frágeis, desidratadas, com raízes superficiais e por isso, volta e meia caem, em cima dos carros, dos edifícios, das pessoas.
Nos bairros de Barcelona onde estes projectos têm avançado, a poluição – sonora, visual, atmosférica – diminuiu significativamente.
« Os solos permeáveis não só não acumulam calor da mesma forma que os pavimentados, o que refresca as cidades, como permitem o crescimento de árvores saudáveis, que nos dão sombra, melhoram a qualidade do ar, diminuem o ruído (...).»
Também Liubliana, na Eslovénia, lançou em 2007, um projecto de profunda transformação urbana, fechando o centro da cidade ao trânsito automóvel e convertendo cerca de 10 hectares em zona pedonal. Este projecto incluiu a criação de um serviço de transportes públicos gratuito que opera na zona pedonal. A frota é composta por pequenos veículos eléctricos, com capacidade para até 5 passageiros, que permitem às pessoas com mobilidade reduzida, às mulheres grávidas, às crianças, aos idosos, mas também aos restantes residentes e até aos turistas, deslocar-se facilmente. Em paralelo, a cidade investiu numa importantíssima rede de verdadeiras ciclovias, que tornaram seguro e viável o uso da bicicleta e em serviços de Park+Ride que permitem às pessoas deixar o automóvel fora da cidade e chegar ao centro de transportes públicos. Na Avenida Slovenska, a principal artéria da cidade, as emissões de carbono negro foram reduzidas em 70% e os níveis de ruído em toda a área caíram cerca de 6 dB. Liubliana é hoje, com quase 75% da sua área ocupada por zonas verdes, uma cidade dentro de um parque.
Também Paris está a fechar ruas ao trânsito automóvel e a plantar árvores e jardins. Em Março deste ano, um referendo organizado pela Câmara perguntou aos cidadãos se concordavam ou não com o fecho de 500 ruas ao trânsito automóvel e com a sua transformação em ruas-jardim. Quase 70% dos votantes responderam que sim e o projecto arrancou em Abril.
A lista de cidades que diminuíram o espaço dedicado aos carros é longa e muitos outros são os exemplos positivos que mostram que isto é possível e viável, através de políticas de urbanismo coerentes e corajosas.
O carácter antidemocrático da centralidade do automóvel não é, no entanto, apenas definido pela orientação infraestrutural das cidades. O automóvel é também um produto de consumo e uso investido de privilégios de tipo colonial, de uma forte carga emocional e de simbolismo sexista que sustenta a organização patriarcal das nossas sociedades. São os recursos sobreexplorados do sul global – petróleo, terras raras, vidas transformadas em mão de obra escrava – que permitem a circulação diária dos milhões de automóveis que entopem as nossas vidas. O fabrico dos carros eléctricos, por exemplo, apontados como uma solução para a poluição sonora e atmosférica e elemento importante da chamada transição energética, necessita de matérias primas, como cobalto, lítio, grafite, terras raras, em quantidades astronómicas e a sua extracção consome imensa água. Na Argentina, no Chile, em Marrocos, as minas que sustentam o fabrico de carros eléctricos estão a poluir terras, a esgotar recursos hídricos, a privar as populações do acesso à água potável e a forçar a sua deslocação. A indústria automóvel investe milhões em campanhas publicitárias que promovem o carro como símbolo de liberdade e independência, de força, de domínio, de poder, de eficácia tecnológica e romantizam a ideia da conquista e do controle. Todos estes enunciados codificam os atributos da masculinidade hegemónica.
Tal como no colonialismo, em que a dominação física e simbólica estabelece e legitima hierarquias, a cultura automóvel perpetua padrões de masculinidade ligados ao poder sobre o mundo e sobre os outros. Em muitos aspectos, os automóveis dão forma a metáforas sexistas – pensemos, por exemplo, nos países onde as mulheres estão proibidas de conduzir, ou, aqui entre nós, na suposta incompetência tecnológica das mulheres ou na sua pretensa aselhice na estrada. Por isto, não é um acaso que o volante permita e exacerbe comportamentos de masculinidade tóxica. Os crimes rodoviários, como a condução sob o efeito de álcool ou drogas; a condução imprudente e perigosa, ou sem habilitação legal; a ofensa à integridade física e o homicídio por negligência num acidente rodoviário; a omissão de auxílio aos acidentados (a dita fuga), são comportamentos eminentemente masculinos e os dados existentes mostram, para Portugal e para toda a União Europeia, que são infinitamente mais os homens do que as mulheres envolvidos em mortes rodoviárias. Na União Europeia, em 2023, 77% dos mortos nas estradas eram homens.
Afirmar tudo isto não é ignorar que, no quadro do capitalismo, o automóvel individual permitiu a algumas mulheres aceder a privilégios que foram durante muito tempo exclusivamente masculinos, como o de uma relativa liberdade de circulação, mas é antes sustentar que a centralidade dos automóveis nas nossas cidades e nas nossas vidas, reproduz, no cômputo geral, normas e comportamentos de género patriarcais. O domínio do automóvel não organiza apenas o espaço urbano, ele mantém e distribui privilégios, estrutura desigualdades sociais atrozes, nacionais e internacionais. São estas mesmas relações de poder que definem quem pode e quem não pode circular com segurança, com autonomia e com dignidade, à escala local, nacional, internacional.
Nas cidades, a centralidade do automóvel molda toda a lógica da mobilidade. A prioridade dada às infra-estruturas para os carros, aos investimentos em estradas e estacionamentos e a cultura da circulação/mobilidade individual influencia directamente a concepção e o funcionamento dos transportes públicos colectivos, que refletem, em grande medida, padrões de desigualdade social.
Aparentemente, a rede de transportes públicos é concebida para todas e para todos e a única restrição formal de acesso é ter um título de transporte válido. No entanto, um pouco por todo o mundo, os movimentos de pessoas com deficiência, os movimentos feministas, os movimentos anti-racistas, vêm destronando esta ilusão e demonstrando que as redes de transportes públicos estão longe de ser universalmente acessíveis e que, à parte algumas notáveis excepções, elas refletem e reproduzem padrões classistas, validistas, sexistas e racistas. Assim, por exemplo, os horários dos transportes públicos colectivos, organizados em volta da noção de «horas de ponta», descuram profundamente as necessidades dos trabalhadores e das trabalhadoras a meio tempo, de quem tem horários fracionados (como tantas vezes acontece na restauração), de quem que trabalha por turnos; descuram profundamente as necessidades das mulheres que continuam a realizar a esmagadora maioria das tarefas inerentes à vida familiar e que nos intervalos que dia de trabalho permite, antes de entrar, depois de sair, na hora do almoço, vão às compras, vão resolver questões administrativas, vão ao infantário, vão à escola, vão comprar o passe, vão à lavandaria, vão ao sapateiro, vão ao médico com crianças e idosos, etc., etc., etc.
A actual planificação dos horários de transporte, responde primordialmente às necessidades dos trabalhadores homens, de longe menos sujeitos a horários irregulares e à sobrecarga do trabalho doméstico. Transportes públicos menos frequentes durante o dia prejudicam e desgastam essencialmente as mulheres e entre elas as mulheres mais pobres, que vivem nas periferias mais afastadas dos grandes centros urbanos.
Nas ditas «horas de ponta», apesar de mais numerosos, os transportes públicos também não respondem às necessidades das populações e são mais uma vez lugar de experiências violentíssimas para muitas mulheres e especialmente para mulheres racializadas e para mulheres com deficiência. Autocarros, comboios e metros abarrotados, dificultam o acesso de pessoas com mobilidade reduzida e facilitam o assédio sexual, os encostos, os olhares insistentes, o roçar, o apalpar, o respirar no nosso pescoço… Em 2024, a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género revelava que, em Portugal, 73% (73%!!!) das mulheres se sentem inseguras nos transportes públicos. Cá, ao contrário do que acontece noutros países, ainda não foi lançada nenhuma campanha de repressão eficaz destes comportamentos e os canais para apresentar queixa são praticamente inexistentes e de uma complexidade desencorajadora.
«Nas ditas «horas de ponta», apesar de mais numerosos, os transportes públicos também não respondem às necessidades das populações e são mais uma vez lugar de experiências violentíssimas para muitas mulheres e especialmente para mulheres racializadas e para mulheres com deficiência.»
Os horários e a sobrelotação não são, no entanto, as únicas questões a ilustrar o planeamento sexista, validista, classista, racista, dos nossos sistemas de transportes públicos colectivos. Pensemos nos túneis longos e escuros de muitas das nossas estações de comboio e metro, esvaziadas de pessoal, onde todas nós já nos sentimos desconfortáveis e aceleramos o passo, ou nas paragens de autocarro que são apenas um poste e uma tabuleta instalados na beira de um passeio, sem qualquer protecção, sem iluminação própria, sem bancos nem coberto; pensemos nos lugares esconsos e mal iluminados onde são instaladas as casas de banho e na inexistência ou no fecho generalizado das casas de banho das estações e transportes públicos, que tanto prejudica as mulheres e as crianças – onde se aliviam as mulheres grávidas? Onde nos mudamos quando andamos com o período? Onde se leva uma criança aflita? Pensemos em todos os percursos com escadas e sem alternativas para quem se desloca numa cadeira de rodas, para quem é cego ou amblíope, para quem empurra um carrinho de bebé, para quem tem idade, para quem carrega sacos de compras, para quem traz uma criança nos braços. Pensemos na falta de sinalização e de informação adequadas para as pessoas cegas, amblíopes, surdas, para as pessoas autistas e as classificadas com deficiências intelectuais.
Pensemos na dificuldade de acesso ao cais dos comboios, nos degraus do autocarro que a muitas e a muitos impedem a subida e a descida, na inexistência de um serviço de assistência para os passageiros com mobilidade reduzida digno do nome, correctamente estruturado, com pessoal suficiente e devidamente formado. Pensemos na estigmatização e na vigilância selectiva baseada em critérios racistas, na falta de informação em línguas minoritárias, no facto de bairros racialmente marginalizados serem servidos por menos linhas, com menor frequência e horários muito limitados. Assim estruturadas, as nossas redes de transportes públicos colectivos são hostis para as mulheres e crianças, para as mulheres e homens com deficiência, para as pessoas de idade, para as pessoas racializadas.
Para destronar a centralidade do automóvel, é preciso encarar com seriedade todos estes problemas e tornar os transportes públicos universalmente acessíveis, é preciso que eles sejam de fácil acesso e uso para todas e para todos; é preciso que eles sejam eficazes, confortáveis, seguros e baratos ou mesmo gratuitos. Pelo mundo fora, muitas são já as cidades onde os transportes públicos são gratuitos para os residentes e em alguns casos também para os não residentes: Hasselt, na Bélgica, desde 1997; Tallin, na Estónia, desde 2013; Kharkiv, na Ucrânia, desde 2022; Montpelier, na França, desde 2023; Belgrado, na Sérvia, desde 2025, são apenas alguns exemplos. O mais fantástico é seguramente o do Luxemburgo, que se tornou em 2020 o primeiro país do mundo onde todos os transportes públicos são gratuitos, para residentes ou não, nacionais ou não. No Luxemburgo, entramos e saímos livremente de autocarros, de metros e comboios, em todo o país, da mais pequena aldeia à capital. Não se perdem horas em filas para carregar o passe, não há a preocupação de ter que ter dinheiro para o comprar, nem a preocupação de nos termos esquecido dele ou de o termos perdido, não há torniquetes nem barreiras a empecer o caminho e acabou o desperdício de recursos e a poluição causada pelos bilhetes.
«Pensemos na estigmatização e na vigilância selectiva baseada em critérios racistas, na falta de informação em línguas minoritárias, no facto de bairros racialmente marginalizados serem servidos por menos linhas, com menor frequência e horários muito limitados.»
Os modos de financiamento encontrados por todos estes territórios são diferentes, mas eles provam que, ao contrário do que muitos querem fazer crer, os transportes públicos gratuitos para todas e para todos são viáveis e possíveis, à escala local e nacional, desde que haja vontade política e um planeamento eficaz. Não sejamos, no entanto, ingénuos: a gratuitidade universal dos transportes públicos é uma medida importante e incontornável, mas ela não é por si só suficiente. É preciso em paralelo criar condições concretas para que se alterem hábitos, é preciso tirar espaço aos automóveis, é preciso lançar campanhas de educação popular, como aquelas que conhecemos a seguir ao 25 de Abril, que permitam alargar horizontes e reduzam a importância que o carro continua a ter como símbolo de sucesso pessoal, de prestígio e de poder. Medidas avulso não funcionam. É precisa coragem política para tomar medidas sérias e concertadas, que vão num primeiro tempo desencadear a fúria, não das populações, mas daqueles que realmente ganham com este sistema, à semelhança do que vem acontecendo em Barcelona, onde a câmara se vê diante dos tribunais, a braços com processos esgotantes, intentados pela associação patronal Foment del Treball e pela Barcelona Oberta, verdadeiro lobby do comércio fundado em 2014, que tem entre os seus patrocinadores o grémio dos Hotéis de Barcelona, o grupo Saba e o jornal de direita La Vanguardia. Que não haja ilusões, menos automóveis a circular, são menos carros e menos litros de combustível vendidos, menos impostos sobre os combustíveis, menos portagens pagas. A promoção do automóvel individual como meio privilegiado de transporte enriquece a indústria automóvel e empobrece as trabalhadoras e os trabalhadores que dele dependem, a braços com orçamentos em combustível, com portagens, com a prestação ao banco, com o seguro, com as reparações, com uma infinidade de despesas que levam parte significativa dos rendimentos familiares, causam stress e preocupações.
Acabar com a centralidade do automóvel nas nossas cidades e nos nossos territórios não é tornar o dia a dia ainda mais difícil. É tomar medidas que simplifiquem a vida individual e colectiva, que devolvam o espaço às pessoas. É criar sistemas de transportes públicos verdadeiramente universais, confortáveis e seguros para todas e para todos, isentos de pressupostos classistas, sexistas, racistas, validistas; é definir linhas de transporte público a pedido, que respondam a necessidades muito específicas de trajecto ou de horário que não podem ser cobertas pelo serviço regular; é construir ciclovias seguras, que não sejam apenas uma linha pintada no chão, partilhada com automóveis, autocarros, táxis, ambulâncias, onde o ciclista arrisca constantemente a sua vida; é investir em sistemas de bicicletas públicas gratuitas e em sistemas públicos de empréstimo ou aluguer de carros para pequenos percursos e pequenas tarefas, como existem lá fora; é criar autocarros escolares, que levem as crianças à escola; é criar sistemas gratuitos de entregas de compras em casa, como outrora tantas cooperativas de consumo faziam; é plantar árvores e jardins onde agora existem estradas, rotundas, cruzamentos e parques de estacionamento; é desimpermeabilizar os solos e garantir espaço à biodiversidade urbana; é alargar passeios, que não sejam meros tapetes de cimento, estreitos, esburacados, escorregadios, inseguros, atulhados de esplanadas selvagens, de caixotes do lixo, de carros e motas em estacionamento indevido; é promover o andar a pé; é revitalizar o comércio de bairro; é deixar de ter medo que à imediata saída da porta as nossas crianças e idosos sejam atropelados; é facilitar o encontro entre vizinhos e conhecidos; é combater a solidão e o isolamento que marcam as nossas sociedades.
Acabar com a centralidade dos carros não é perder, é ganhar - ar puro, tranquilidade, espaço, vida!
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