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|água

Água não é Coca-Cola

É necessário assegurar o controlo público da água, para que não seja possível agravar ainda mais o problema que o controlo privado desse recurso natural representa nas relações de produção e na vida das populações.

Créditos / Wikiusuariodel

1. Pertencem ao domínio público:

a) As águas territoriais com os seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos;

Artigo 84.º da Constituição da República Portuguesa, Domínio público

São tarefas fundamentais do Estado:

(...)

d) Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais;

Artigo 9.º da Constituição da República Portuguesa, Tarefas fundamentais do Estado

A água não é Coca-Cola; porém, a água suja do imperialismo, para além das bolhinhas e vítimas, também contém H2O. Directa ou indirectamente, a água é necessária para toda a produção de mercadorias – sejam elas benéficas, prejudiciais ou assim-assim. Independentemente do carácter, aspecto, ou quaisquer idiossincrasias, todos os seres-vivos são compostos por água e necessitam dela para sobreviver. Se o desenvolvimento das sociedades tornou a questão do controlo da água algo de complexo, visto da perspectiva da sobrevivência, a questão é bastante simples: sem água, não existe vida. Ora, quem controla os recursos hídricos controla a produção dos meios para a sobrevivência, a existência, a própria vida – aquele que detém a água determina o que os outros podem beber, em quantidade e em qualidade.

Segundo o Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos de 2021, O Valor da Água:

«Quem controla a forma como a água é valorada controla a forma como ela é usada. Valores são um aspecto central do poder e da equidade na governança dos recursos hídricos. A incapacidade de dar o devido valor à água em todos os seus diferentes usos é considerada uma das principais causas, ou um dos sintomas, do descaso político com a água e de sua má gestão. Com muita frequência, o valor da água, ou todo o seu variado conjunto de valores, não tem lugar de destaque na tomada de decisões.»

Se a primeira frase introduz, mais ou menos bem, o problema do controlo desse recurso essencial, o restante parágrafo desvia o assunto da profundidade da questão. Os valores são cristalinos como a própria água e manifestam-se em todo o uso, não são algo de abstracto, que se reconhece ao ritmo de aplausos, enquanto caem no universo das ideias como uma gota num charco. Por esses valores serem tão evidentes é que existe disputa pelo controlo da sua aplicação prática. A subjugação do poder político ao poder económico faz com que a questão dos «valores» se dilua numa (aparente) abstracção.

A «tomada de decisões» políticas vai no sentido do lucro do grande capital. O problema é bem concreto, e temos 70% de água no nosso corpo para o comprovar. Ou seja, não existe uma incapacidade de dar o devido valor à água. Existe, sim, o interesse económico, que bem a valoriza e a capitaliza, para seu proveito. A única maneira de valorizar politicamente a água é tomando decisões políticas, de efeito prático, em função da sua preservação e utilização racional – não basta definir objectivos líricos. 

Não obstante esse olhar para a superfície, enquanto se vai deixando tudo ir por água abaixo, os recursos hídricos vão ficando em segundo plano no que ao povo em geral diz respeito. Enquanto se discutir, em bons modos idealistas, o que se pensa da água, não se transforma, na prática, as relações de propriedade da mesma. Pouco se fala dos seus valores, pouco se debate a validade das relações de propriedade. Quando há escassez de água, as lágrimas escorrem; quando abunda, rogam-se-lhe pragas. No entanto, é a gestão humana, ou a falta dela, que tudo afunda. 

«Não existe uma incapacidade de dar o devido valor à água. Existe, sim, o interesse económico, que bem a valoriza e a capitaliza, para seu proveito. A única maneira de valorizar politicamente a água é tomando decisões políticas, de efeito prático, em função da sua preservação e utilização racional – não basta definir objectivos líricos.»

Para nos mantermos à tona, agarremo-nos a alguns valores.

A História da humanidade é desenrolada através da interacção dos seres humanos com a Natureza, recolhendo e transformando os recursos, adequando-os à complexidade da vida. Obviamente, a água vale nesse processo como factor fundamental e fundador. Satisfaz a sede que toda a gente conhece – a desidratação aniquila a força de trabalho. É utilizada no processo de transformação de matérias-primas, e na conservação também. Seja no estado líquido, sólido ou gasoso, a água está presente como elemento determinante na superação das várias etapas da História. E é esse recurso essencial e primordial que o statu quo insiste em reter sob controlo de apenas alguns – pois são eles próprios que perpetuam o estado de coisas para seu próprio benefício. 

Se  os valores de uso são facilmente verificados empiricamente, os valores de troca e financeiros enraízam-se na maximização do lucro (questão ambígua para a população em geral, embora de efeitos práticos bem acentuados), isso, sim, uma valorização enviesada e anti-democrática. Em 2020, pela primeira vez, abrindo (mais) um precedente catastrófico, a água entrou no mercado bolseiro, nos Estados Unidos da América, como negócio de «futuros». Neste tipo de contratos, os especuladores, compradores e vendedores, apostam no preço que a commodity terá no futuro. O contrato poderá obrigar ou não a que a mercadoria seja entregue na data estipulada. Neste caso específico, não existe essa obrigação, são contratos de acerto financeiro, entre os participantes da aposta.1

Wall Street gosta de chapinhar na lama. E nesse terreno lamacento, de corrupções várias, a manipulação dos preços, que tem um impacto bem real na vida das populações, é o que de mais comum existe. Pense-se por exemplo numa empresa privada que controla a nascente de um rio (como é o caso da Renova, que afirma que a nascente do rio Almonda é sua).2

Numa situação de apostas bolsistas, esse controlo que tem da água permite-lhe manipular os preços do jogo, que nem sequer devia existir. Existindo, está sempre enviesado, e o resultado pende sempre para os batoteiros.

 É necessário assegurar o controlo público da água, para que não seja possível agravar ainda mais o problema que o controlo privado desse recurso natural representa nas relações de produção e na vida das populações. Os «donos» dos recursos, e dos meios de produção, são tidos, na sociedade capitalista, como os criadores de riqueza. Por conseguinte, são valorizados como «de interesse público».3 Este contra-senso promove a entrega de mais recursos aos capitalistas. A apropriação dos recursos comuns possibilita a anulação de despesas, aumentando os lucros; sob pretexto de criação de riqueza para os países, perde-se a riqueza toda. O controlo público e em pleno da água beneficiaria o povo em geral, os trabalhadores, os verdadeiros criadores de riqueza dos países – os que merecem que as despesas sejam mitigadas.

Resumindo, onde o problema nasce e também desagua, passando por ciclos e fluxos vários, temos a criação de riqueza pela mão de quem trabalha, riqueza essa apropriada pelo capitalista – esta dialéctica, por muito negada que seja (não fosse esta uma questão dialéctica), é a base da luta económica e política que há muito se tem vindo a actualizar (desde que surgiu, através da História, tem sido sempre actual). Os mecanismos de alienação, tanto os modernaços como os serôdios e também os travestidos, fazem por laurear o capitalista como Midas, cujo toque transforma o tocado em oiro, e por isso tudo merece, até a água que sustém a existência. De louros na cabeça, é bem visto na «sociedade». O «seu» património brilha e ofusca a vista dos restantes. Alguns acham bem porque têm esperança de ainda nadar por esse rio acima; uns miseráveis apoiam na esperança que respingue para eles também; uns idealistas, afogados em passividade, dizem que daquela água nunca beberão, até ao dia que lá chegam perto dum charco. No entanto, ao arrepio das vozes que afirmam que é chover no molhado, uns lutam. Lutam com tudo o que têm, para satisfazer a sede de todos. Uma luta árdua, jamais árida. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura.

Este texto não vem acrescentar nada à luta pelo controlo público dos recursos hídricos. Não obstante essa mágoa afogada na minha incapacidade, serviu o presente texto para perceber a quantidade de expressões que existem a ver com «água», e muitas gotas ficaram de fora. 


Júlio F. R. Costa é licenciado em Filosofia e mestre em Mercados da Arte.

  • 1. Para quem não é especialista no mercado financeiro, como eu, este artigo explica a questão de forma simples
  • 2. Excerto de um comunicado da CDU em Torres Novas: «1. Perante o posicionamento assumido pela Renova na mensagem que dirigiu à Assembleia Municipal de Torres Novas, na qual afirma nomeadamente que "... A água não 'é nossa', no sentido em que tal afirmação foi proferida, a água não é pública, é particular: é nossa, mas da Renova - Fábrica de Papel do Almonda, SA…", em 1 de Agosto de 2022, a CDU endereçou ao Sr. Presidente da Câmara um pedido de esclarecimentos que visava, no essencial, clarificar o seguinte:
    a) Se o autarca se revê nas posições que aquela empresa assume a respeito da propriedade da água do Rio Almonda.
    b) Se, caso não se reveja naquelas posições, que medidas que pensa tomar para dar sequência à recomendação à CM Torres Novas que, sobre o mesmo assunto, a Assembleia Municipal aprovou em 27 de Julho passado.»
  • 3. Relembro outro texto meu que não foge muito ao tema

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