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|E o mundo é a nossa tarefa

Desastre

E o mundo é a nossa tarefa é uma escolha semanal de Manuel Augusto Araújo

O Almoço do Trolha, Júlio Pomar
"O Almoço do Trolha", Júlio PomarCréditosJúlio Pomar

Desastre

Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito, 
Soltando fundos ais e trémulos queixumes; 
Caíra dum andaime e dera com o peito, 
Pesada e secamente, em cima duns tapumes. 

A brisa que balouça as árvores das praças, 
Como uma mãe erguia ao leito os cortinados, 
E dentro eu divisei o ungido das desgraças, 
Trazendo em sangue negro os membros ensopados. 

Um preto, que sustinha o peso dum varal, 
Chorava ao murmurar-lhe: "Homem não desfaleça!" 
E um lenço esfarrapado em volta da cabeça 
Talvez lhe aumentasse a febre cerebral. 

Flanavam pelo Aterro os dândis e as cocottes, 
Corriam char-à-bancs cheios de passageiros 
E ouviam-se canções e estalos de chicotes, 
Junto à maré, no Tejo, e as pragas dos cocheiros.
 
Viam-se os quarteirões da Baixa: um bom poeta, 
A rir e a conversar numa cervejaria, 
Gritava para alguns: "Que cena tão faceta! 
Reparem! Que episódio!" Ele já não gemia. 

Findara honradamente. As lutas, afinal, 
Deixavam repousar essa criança escrava, 
E a gente da província, atónita, exclamava: 
"Que providências! Deus! Lá vai para o hospital!" 

Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos; 
Mornas essências vêm duma perfumaria, 
E cheira a peixe frito um armazém de vinhos, 
Numa travessa escura em que não entra o dia! 

Um fidalgote brada a duas prostitutas: 
"Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!" 
Bisonhos, devagar, passeiam recrutas 
E conta-se o que foi na loja dum barbeiro. 

Era enjeitado, o pobre. E, para não morrer, 
De bagas de suor tinha uma vida cheia; 
Levava a um quarto andar cochos de cal e areia, 
Não conhecera os pais, nem aprendera a ler. 

Depois da sesta, um pouco estonteado e fraco, 
Sentira a exalação da tarde abafadiça; 
Quebravam-lhe o corpinho o fumo do tabaco 
E o fato remendado e sujo da caliça. 

Gastara o seu salário — oito vinténs ou menos —, 
Ao longe o mar, que abismo! e o sol, que labareda! 
"Os vultos, lá em baixo, oh! como são pequenos!" 
E estremeceu, rolou nas atracções da queda.
 
O mísero a doença, as privações cruéis 
Soubera repelir — ataques desumanos! 
Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos 
Andara a apregoar diários de dez-réis.

Anoitecia então. O féretro sinistro 
Cruzou com um coupé seguido dum correio, 
E um democrata disse: "Aonde irás, ministro! 
Comprar um eleitor? Adormecer num seio?"
 
E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro, 
— Conservador, que esmaga o povo com impostos 
Mandava arremessar — que gozo! estar solteiro! — 
Os filhos naturais à roda dos expostos... 

Mas não, não pode ser... Deite-se um grande véu.. 
De resto, a dignidade e a corrupção... que sonhos! 
Todos os figurões cortejam-no risonhos 
E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu. 

E o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala imensa, 
Na tumba, e sem o adeus dos rudes camaradas: 
Isto porque o patrão negou-lhes a licença, 
O Inverno estava à porta e as obras atrasadas.
 
E antes, ao soletrar a narração do facto, 
Vinda numa local hipócrita e ligeira, 
Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefacto: 
"Morreu! Pois não caísse! Alguma bebedeira!"

                                              Cesário Verde
 

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