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Consciência de um problema: o futuro da nossa profissão

Não acredito num mundo sem trabalho. Mas também não acredito num mundo em que devemos tornar-nos – ou deixar que nos tornem – reféns dele. Numa sociedade ideal, o trabalho deveria, de entre todas as outras partes essenciais da vida, ser uma fonte de prazer e enriquecimento pessoal. 

Créditos / Indicca

Num momento em que a inteligência artificial se torna cada vez mais uma realidade iminente, diversas vozes têm-se levantado sobre qual o futuro do trabalho. Assumindo que, num futuro relativamente próximo, a tecnologia seja capaz de substituir boa parte das funções desempenhadas por seres humanos, cedo se adivinha um grande desafio: o desemprego. Ora, os mais idealistas argumentam que, com a substituição da mão-de-obra humana por tecnologia, a produtividade – ou seja, a produção de bens e serviços – aumentará exponencialmente, e, consequentemente, tudo ficará mais barato. Segundo Elon Musk, numa entrevista dada em 2017, «com a automação, virá a abundância». Na mesma entrevista, Musk assume que, face ao desemprego massivo causado pela substituição da mão-de-obra, os governos do mundo deveriam assegurar a atribuição de uma espécie de renda básica universal que garanta o sustento daqueles que, forçados a abandonar os seus empregos, deixarão de ter fonte de rendimento. 

Por mais que nos possa parecer generosa esta afirmação de um dos homens mais ricos do mundo (e que, diga-se de passagem, tem destinado grande parte da sua fortuna à colonização espacial), há uma contradição evidente que não pode deixar de soar a hipocrisia: a quem servirão os proveitos dessa produção massiva? Não será ao Estado com certeza, e muito menos à população empobrecida. 

Assumir que a evolução tecnológica no campo da produção de bens e serviços é apenas uma consequência natural do progresso civilizacional e não uma estratégia política motivada pela vontade de grandes corporações para reduzir os custos de fabrico e aumentar os lucros, parece-me no mínimo ilusório e no máximo uma crença deliberada na propaganda de mercado. Veja-se o que está a acontecer em Hollywood: no início do ano, veio a público a notícia de que os grandes estúdios pretendem sistematizar a utilização de inteligência artificial na escrita dos guiões dos seus projectos, relegando o papel dos argumentistas para meros revisores destas obras. Como tal, os estúdios apresentaram uma proposta de modificação (redução) das condições de trabalho destes autores, o que, naturalmente, levou a uma greve massiva por parte do seu sindicato, o Writer’s Guild of America, ao qual, em Julho, se juntou o dos actores, o Screen Actor’s Guild. 

Sem querer simplificar demasiado a questão, que de resto é extremamente complexa, sobretudo do ponto de vista jurídico, o que me parece essencial está à vista: os estúdios pretendem substituir o trabalho dos guionistas com o único objectivo de cortar os custos dos seus salários. O que isto quer dizer, mesmo que de forma imperceptível, é que os empresários donos desses estúdios consideram que o trabalho tecnológico vale tanto, ou mais, que o dos argumentistas. 

Quando se trata da substituição de mão-de-obra humana por tecnologia, o que está em causa é sempre um processo de avaliação qualitativa: se uma máquina produz mais rápido, é natural que o dono da fábrica a prefira ao empregado que, para além de menos eficaz, acarreta mais custos e, pior que tudo, pode fazer greve. O que não se compreende é que, desde os tempos áureos da industrialização e com a sucessiva substituição da mão-de-obra por automação, a qualidade do trabalho humano não tenha melhorado significativamente. Pois, se o progresso tecnológico trouxe enormes vantagens civilizacionais, elas deveriam reflectir-se em dois benefícios imediatos: por um lado reduzir os custos de produção e aumentar os lucros das empresas; e por outro substituir as tarefas dos trabalhadores por actividades mais satisfatórias e bem remuneradas. Em suma, empregos mais dignos que valorizem os trabalhadores e que não tenham como assente a ideia de que mais cedo ou mais tarde serão substituídos por alternativas mais rentáveis. Esperemos que, num mundo mais evoluído, a generalidade dos trabalhos se transforme em profissões: tarefas essenciais adaptadas às necessidades de produção tanto quanto aos desejos daqueles que produzem. Ainda temos, para já, um longo caminho a percorrer, uma vez que, na cabeça dos empresários de hoje, nenhum trabalhador é insubstituível, se a moeda de troca for o lucro imediato. Para isso, como afirma o antropólogo sindicalista David Graeber, os grandes capitalistas criaram a noção de que o trabalho, para ser útil, não pode ser gratificante, pois isso anula o seu papel disciplinador: o verdadeiro trabalho é aquele que não tem significado. E é por isso que existem empresas que acham que não têm de pagar às pessoas que fazem arte ou qualquer coisa que lhes possa dar prazer. 

Voltando a Hollywood, ficamos com uma questão entre mãos: poderá a inteligência artificial ser criativa? Mesmo não havendo resposta para esta pergunta, há pelo menos um dado que não pode ser ignorado: quando uma plataforma de inteligência artificial (tipo ChatGPT) gera um resultado, ela está, na sua base, a recorrer a conteúdos criados por seres humanos. Isto quer dizer que, quando uma ferramenta como esta é tornada pública ou adquirida por uma empresa privada, poderá estar, em última instância, a violar a privacidade ou o direito de autor. É por este motivo, entre outros, que os argumentistas não poderão, para já, sair completamente da equação. Por mais que os estúdios se queiram ver livres deles, ou relegá-los para o lugar de meros editores, a lei obriga a que qualquer obra literária original tenha de ter pelo menos uma componente humana, que garanta a sua autenticidade. Não é por acaso que esta greve dura há vários meses: é um jogo de forças entre os trabalhadores (são cerca de 11.500 os argumentistas inscritos no Sindicato), e os poderosos estúdios. 

Num dos episódios mais marcantes, iniciado em Julho, foi apresentada uma denúncia contra a Universal Studios por alegadamente ter ordenado a poda das árvores que se situam numa das ruas em frente ao estúdio, um dos locais onde marcham os grevistas. Segundo a queixa, que poderá levar ao pagamento de uma multa por parte da Universal, a poda das árvores foi feita fora de época e sem autorização do município, com o único intuito de reduzir as zonas de sombra dos grevistas durante a vaga de calor. Sobre as negociações não há, para já, um fim à vista, mas a história tem mostrado que os grandes capitalistas, depois de um breve período de cedência, logo voltam para reconquistar os bens cedidos. 

A escritora americana Ursula K. Le Guin, num discurso nos National Book Awards, ilustrou bem esta batalha: «O desejo de lucro entra quase sempre em conflito com a finalidade da arte. Vivemos no capitalismo. O seu poder parece inescapável. Porém, também a sagrada monarquia o aparentava. Qualquer poder humano pode ser resistido e mudado por seres humanos, e geralmente isso começa na arte, e sobretudo na nossa arte, a arte das palavras. (...) Nós que vivemos da escrita queremos e devemos exigir a nossa quota parte dos ganhos. Mas o nome da nossa maravilhosa recompensa não é o lucro. O seu nome é liberdade».
 

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