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Privatização da ANA: Criando as condições para a corrupção (II)

O que demonstra cada estudo sobre uma privatização em concreto é que as privatizações são a maior fonte de corrupção neste país, e só há uma coisa verdadeiramente séria a fazer: combatê-las!

CréditosJoão Relvas / Agência Lusa

Como se as razões tratadas no artigo anterior – que essencialmente se concentravam no valor real de venda e na diferença entre a avaliação realizada e o seu verdadeiro valor – não fossem já de uma enorme gravidade, o Tribunal de Contas aborda e ilustra ainda um vasto conjunto de processos, uns ilegais, outros irregulares, outros simplesmente perigosos, que criam as condições para a corrupção, e para que decisões completamente opostas ao interesse público acabem a ser defendidas e praticadas por quem deveria defender o interesse público.

Apresentemos primeiro a síntese que o próprio Tribunal de Contas realiza: «Para além do que já foi amplamente reportado sobre deficiências graves no processo de privatização (com desfasamentos materiais, falta de avaliação prévia, deduções ao preço, desequilíbrio dos contratos de concessão a favor do comprador, transição da administração da ANA pública para a ANA privada, incumprimento de legislação tributária e orçamental aplicável), a auditoria revelou desconformidades e inconsistências em documentação processual entregue pela Parpública».

Promiscuidade entre o público e o privado

O Tribunal de Contas aponta três momentos graves neste processo onde a mistura entre as funções de administração pública e privada criam riscos enormes e inaceitáveis.

A primeira situação é a nomeação da última Administração da ANA pública. As primeiras cartas-convite para iniciar o processo de privatização são enviadas a 7 de Setembro de 2012. O governo muda a administração da ANA em Outubro de 2012. O Tribunal de Contas começa logo por estranhar esta mudança, pois trata-se de uma administração completamente nova, necessariamente com menos experiência e conhecimento da empresa, para tratar da privatização da empresa, num quadro em que a ANA tem um papel muito relevante na avaliação das propostas técnicas dos diferentes candidatos.

Mas o verdadeiramente grave vem a ocorrer a 19/11/2012, quando um representante da Vinci declara em conferência de imprensa a intenção desta multinacional de manter na gestão privada a administração recém-nomeada para a ANA pública, «esta intenção foi confirmada depois da privatização, tendo sido mantidos todos os membros do CA da ANA pública».

E sublinha o Tribunal de Contas: «Esta declaração é precedida pela comunicação, em 6/11/2012, da ANA pública à Parpública, com a apreciação das propostas não vinculativas [negativa para a Vinci] e veio a ser seguida pela comunicação, em 17/12/2012, da ANA pública à Parpública, com a apreciação das propostas vinculativas [positiva para a Vinci]». «Da página 29 do Relatório da Parpública previsto no artigo 13.º do Caderno de Encargos consta sobre as propostas vinculativas “Quanto às propostas técnicas, verifica-se, de acordo com a opinião manifestada pela Administração da ANA, que a proposta da Vinci é a mais forte e a mais competitiva de todas as apresentadas pelos concorrentes”. Acontece que a apreciação da ANA à proposta não vinculativa da Vinci a tinha qualificado de irrealista e inexequível».

Ou seja, não só é nomeada uma administração nova especificamente para a venda, como essa administração é imediatamente contratada – e publicamente – por um dos concorrentes, como vai introduzir alterações à apreciação técnica das propostas em favor do concorrente que publicamente a contratara para a futura gestão privada. E o Tribunal de Contas diz expressamente não ter encontrado qualquer razão para essa alteração de posição.

(Uma das coisas que desapareceu com a privatização da ANA foi a informação sobre os salários dos seus administradores, que até lá constava dos Relatórios e Contas. Mas uma coisa sabemos: na ANA privada não têm o limite a que estão sujeitos os administradores públicos. Para termos uma ideia, o conjunto das remunerações do CEO da Vinci em 2022 foi de 5,9 milhões de euros, cerca de 40 vezes mais que o salário do presidente da ANA pública em 2011.)

Depois o Tribunal de Contas vai ainda recordar a inadmissível transição de membros da Administração privada da ANA para as entidades encarregues de regular a ANA e gerir o contrato de concessão: «Em 23/7/2015 cessa funções um dos membros do CA da ANA privada (transitado da ANA pública), por ter sido designado para o cargo de Presidente do CA da ANAC». «Em 31/12/2017, verifica-se a cessação de funções do Presidente do CA da ANA privada (transitado da ANA pública), por ter sido designado para o cargo de Presidente do CA da NAV. Porém, o objecto desta empresa requer a sua intervenção sobre actividades da ANA, como é o caso das situações referidas na apreciação da proposta não vinculativa da Vinci quanto à opção do Montijo para o NAL».

O próprio Tribunal recorda que, por diversas vezes, criticou o conflito de interesses, sem ter sido atendido pelo Governo. Uma situação que «importa não mais sustentar nem repetir». E conclui: «O não acatamento das recomendações do Tribunal para corrigir as situações de conflito de interesses na ANAC... teve e tem impacto material na auditoria sobre a ANA».

Num negócio que envolve, como demonstrado no parágrafo anterior, hipotéticos benefícios para um privado de vinte mil milhões de euros, é criminoso provocar este conjunto de conflitos de interesse. E não foi só o Tribunal de Contas que alertou para estes conflitos de interesses – no caso da ANAC fizeram-no os trabalhadores, as suas ORT, o PCP, e outras forças políticas. Mas o Governo PS não quis ouvir.

Incumprimento da legislação tributária

Um dos alertas que o Tribunal de Contas repete múltiplas vezes é que a audição foi prejudicada pelo facto de o Governo nunca ter atendido a outros alertas do TC, nomeadamente sobre «a falta de controlo da receita pública proveniente da concessão do serviço público».

«E não foi só o Tribunal de Contas que alertou para estes conflitos de interesses – no caso da ANAC fizeram-no os trabalhadores, as suas ORT, o PCP, e outras forças políticas. Mas o Governo PS não quis ouvir.»

De facto, desde 2019 que o TC alerta que as taxas que a ANA cobra e recebe são uma receita pública que o Estado deve contabilizar como despesa para com a concessão. O que continua a não acontecer. Diz o TC que a contrapartida pela prestação de actividades e serviços aeroportuários são taxas «que devem ser administradas por entidade pública legalmente incumbida da sua liquidação e cobrança», devendo essa cobrança «ser objecto de previsão e contabilização, como receita pública, tal como a entrega do produto destas taxas à concessionária, nos termos contratuais, também o deve ser, como despesa pública», e, acrescenta, «com a omissão da receita, é lesado o direito dos tributados à garantia pública de o valor exigido ser o devido e com a subsequente omissão na despesa, é lesado o direito dos cidadãos serem informados da receita e despesa pública relativas à concessão de serviço público aeroportuário». Esta omissão «é material», pois «a receita das taxas aeroportuárias sujeitas a regulação económica (receita regulada) reportada pela ANA perfez 3167 milhões de euros de 2014 a 2021, constituindo uma estimativa dos encargos públicos acumulados com a concessão atribuída à ANA em 14/12/2012».

Onde depois se torna particularmente clara a falta de controlo da receita pública é nas regras sobre os pagamentos a realizar pela ANA ao Estado, que são tão pouco claras, e sobre receitas tão pouco controladas, que para a entrega referente a 2022, houve as seguintes interpretações: 0,4 M€ (e 351 M€ em 2062), 8,5 M€ (e nada em 2062), 9,3 M€ (e nada em 2062). Depois de alguma discussão, decidiu a ANA: 8,5 M€ (e nada em 2062).

Façam o que mando, não o que faço

A venda da ANA foi realizada pelo Governo PSD/CDS, no quadro do pacto entre as troikas assinado por PS/PSD/CDS e a UE/BCE/FMI. O Tribunal de Contas constata que «A decisão de venda integral da ANA fez Portugal divergir da maioria dos países da UE, que optou por manter o sector sob gestão pública ou estar presente no capital social das empresas.» E exemplifica: em 2010, apenas um país tinha a rede aeroportuária privatizada (Chipre), e em 2016 eram apenas quatro (Chipre, Portugal, Hungria e Eslovénia). Como é evidente, os países que ordenaram a Portugal – para bem da economia portuguesa – a privatização dos aeroportos, nos seus países não o fizeram.

A fidedignidade da documentação

Por diversas vezes o Tribunal dá conta do seu desagrado por várias inconformidades na documentação entregue pela Parpública, que «revelam o risco material de deturpação de documentação processual» ou, noutra expressão, o «risco material de falta de fidedignidade de documentação processual».

O próprio Tribunal reconhece que o tempo mediado entre a privatização e a auditoria facilitam a ocorrência dessas incongruências. Mas falta claramente documentação-chave no processo que é preciso localizar e analisar.

Recordamos que a privatização foi concluída em 2013, e a lei só exigia que a documentação fosse preservada por cinco anos (o que o TC contesta e denuncia). A auditoria agora publicada foi solicitada pela Assembleia da República a 10/10/2018, e o Tribunal ainda a arrastou mais cinco anos (e as justificações apresentadas, sendo reais, não justificam o tempo decorrido).

Nada disto é transparente, nada disto salvaguarda o interesse público. É impressionante a forma leviana e quase secreta como se pode vender uma empresa pública estratégica, no mesmo país em que para contratar um trabalhador para uma empresa pública é precisa a assinatura de dois ministros e um longo processo de requerimento.

Privatização não salvaguardou o interesse público

Por fim, e de forma muita taxativa, o Tribunal de Contas deixa claro que «A privatização da ANA não salvaguardou o interesse público»; Não maximizou «o encaixe financeiro resultante da alienação das acções representativas do capital social da ANA» (como visto no primeiro texto); Não se verificou «o reforço da posição competitiva, do crescimento e da eficiência da ANA, em benefício do sector da aviação civil portuguesa, da economia nacional e dos utilizadores e utentes das estruturas aeroportuárias geridas pela ANA»; «não ter sido minimizada a exposição do Estado português aos riscos de execução relacionados com o processo de privatização, não se tendo assegurado que o enquadramento deste processo protegeria cabalmente os interesses nacionais».

As duas últimas alíneas prendem-se com a forma como o Governo entregou, em monopólio, um sector estratégico nas mãos de uma multinacional, cujos interesses podem naturalmente divergir dos interesses nacionais, sem verdadeiras salvaguardas para o caso de a multinacional não satisfazer – ao longo de 50 anos – o interesse nacional.

O Tribunal não o analisou, mas como já denunciámos publicamente num anterior artigo no AbrilAbril, o investimento caiu para metade com a privatização, menos 600 milhões de euros em dez anos, com esse não investimento a ser transferido para os lucros da multinacional.

A auditoria analisou, e considerou particularmente grave, a forma como foi negociada a construção do Novo Aeroporto de Lisboa (NAL), com o Governo a ter entregue a construção e exploração do NAL à Vinci sem ter acautelado o interesse nacional face à possibilidade – que se veio a confirmar – desta insistir na proposta Portela+Montijo, considerada irrealista e irrealizável pela própria ANA pública (até Novembro de 2012). E o Tribunal ainda estranha que ninguém no Governo tenha entendido ser preciso acautelar os impactos provocados pelo facto de a Vinci ser igualmente detentora da Lusoponte. «Em suma, o projecto do Novo Aeroporto de Lisboa que, à data da privatização, estava associado à construção de uma terceira ponte é indissociável do processo de privatização pelo valor que aportou à ANA, sobretudo para a Vinci, que já era detentora da maioria do capital social da Lusoponte.»

Foi a privatização que levou à não construção do NAL e que o continua a travar, foi a privatização que entregou a uma multinacional, não só o dinheiro necessário para construir o Aeroporto, como a possibilidade de decidir da sua construção ou não.

É preciso perder as ilusões

O Tribunal de Contas faz toda esta auditoria acreditando ser possível fazer privatizações salvaguardando o interesse público. É esse o seu mandato, mas até acredito que a maioria dos membros do Tribunal alimenta ilusões de que tal é possível.

Mas o que demonstra cada relatório, cada inquérito, cada estudo sobre uma privatização em concreto, é que as privatizações – e as suas primas, as PPP – são a maior fonte de corrupção neste país, e só há uma coisa verdadeiramente séria a fazer perante uma privatização: combatê-la!)


Tanto neste como no artigo anterior, todas as citações são do Relatório do Tribunal de Contas (TC) à privatização da ANA, publicado a 5/1/2024.

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