|50 Anos de Futuro

43 anos depois da criação do Salário Mínimo Nacional

«Finalmente puderam comprar mobília ou electrodomésticos»

Entrevista a Avelino Gonçalves, ministro do Trabalho no I Governo Provisório, entre Maio e Julho de 1974, sobre a criação do salário mínimo nacional, um mês depois da Revolução de Abril.

Avelino Gonçalves numa conferência sobre a Constituição de 1976 promovida pela Escola Superior de Tecnologia e Gestão, em Felgueiras. Abril de 2016
Créditos / Instituto Politécnico do Porto

Avelino Pacheco Gonçalves foi o primeiro ministro do Trabalho depois da Revolução de Abril. Bancário de profissão, destacou-se no movimento sindical antes e depois do 25 de Abril, no Sindicato dos Bancários do Porto e na Intersindical.

O decreto que aprova a criação de um salário mínimo nacional, publicado pouco mais de um mês após a Revolução, tem a sua assinatura e teve o seu contributo central, enquanto ministro da tutela. Um ano depois, é eleito para a Assembleia Constituinte nas listas do PCP, partido em que milita desde 1965.

Como surgiu a necessidade de criar um salário mínimo nacional, logo um mês depois da Revolução?

A necessidade era anterior. Sob o salazarismo, era extrema a exploração das classes e sectores mais desprotegidos. Nas vésperas do 25 de Abril, os operários da indústria têxtil e do vestuário, das pescas, da agricultura, do mobiliário e da construção civil, por exemplo, eram muito, muito mal remunerados.

Mas não só esses. Entre os trabalhadores da Função Pública, foi mais alta do que no sector privado a percentagem dos trabalhadores beneficiados pela criação do salário mínimo nacional (SMN). Os desníveis salariais eram muito acentuados. Na indústria têxtil, os operários ganhavam pronunciadamente menos do que o pessoal de escritório. Os empregados bancários tinham salários oito a dez vezes mais altos do que os dos operários têxteis.

Os trabalhadores foram ganhando consciência de que esta situação devia ser corrigida. Em Novembro de 1973, a reunião da Intersindical Nacional reivindicou a criação do SMN. Tínhamos o entendimento de que a melhoria das remunerações era o rumo certo, não apenas no plano social mas também no terreno económico.

Assim sendo, pela minha parte e por parte do PCP, representado no governo pelo próprio secretário-geral, o camarada Álvaro Cunhal, foi desde sempre proposta a criação do SMN. Esta proposta ia, aliás, de par com o propósito anunciado pelo Movimento das Forças Armadas de promover a melhoria das condições de vida dos trabalhadores e do povo.

Quais foram os efeitos imediatos para a vida dos trabalhadores portugueses com a fixação do salário mínimo em 3300 escudos? O que dava para comprar com esse valor em Maio de 1974?

Para os trabalhadores que tinham os salários mais baixos, a criação do SMN teve como efeito imediato a melhoria das suas condições de vida. Em sectores em que era comum que o casal tivesse emprego na mesma empresa, como acontecia habitualmente no sector têxtil, esse efeito de melhoria pronunciada das condições de vida fez-se sentir ainda com mais força.

Como efeito da melhoria salarial, foi comum nos sectores mais recuados da economia, como o têxtil e vestuário, o calçado e o comércio, ouvir as pessoas comentar que tinham podido finalmente comprar mobília ou electrodomésticos.

Em muitas famílias, os rendimentos subiram para o dobro, ou até mais, pela criação do SMN. Muitos trabalhadores puderam melhorar as suas condições de habitação.

O decreto que estabelece o salário mínimo determina, ainda, um conjunto de outras medidas. Que importância tiveram naquele momento?

O conjunto de medidas que foram tomadas naquele momento (congelamento das rendas de casa, proibição de aumento dos preços dos produtos, congelamento transitório de ordenados acima de certo patamar, etc.) foram uma importante afirmação política. Havia, semanas volvidas sobre o 25 de Abril, nomeadamente em importantes empresas da cintura industrial de Lisboa e da região de Setúbal, processos de autêntica sabotagem económica.

Tentando dar combate a tais situações, o Movimento das Forças Armadas fizera nomear delegados da Junta de Salvação Nacional junto das grandes empresas industriais. Recordo uma reunião que tive com vários desses delegados, em que fui confrontado com a perplexidade desses oficiais perante reivindicações da mais absoluta igualdade salarial na empresa. Oito mil escudos mensais para toda a gente era a reivindicação avançada em algumas dessas empresas.

Se não tivessem sido tomadas medidas legislativas, decerto as desigualdades salariais não somente se manteriam como iriam agravar-se.

Como foi recebida a proposta pelos patrões e quais os efeitos sobre a economia nacional?

A criação do SMN suscitou uma primeira reação de susto por parte do patronato. Talvez tenha havido uma natural ideia de que o SMN ameaçava a vida das empresas. Mas depressa esses receios foram ultrapassados.

Os grandes patrões terão hesitado entre a cooperação com o novo regime ou a sabotagem económica. Cedo perceberam que não lhes restava escolha – tinham de cooperar com a nova ordem política e social se queriam manter os seus lucros.

O aumento da procura interna compensou o impacto salarial da criação do salário mínimo. Portugal viveu em 1974/75, como todo o mundo capitalista, os efeitos da crise petrolífera de 1973. Por efeito dessa crise, houve em muitos países quebras mais ou menos graves da produção. Surpreendentemente, em Portugal, nas condições presumidamente perturbadoras de uma revolução, a quebra foi menos acentuada do que a que ocorreu em outros países. Em consequência de tudo, o país desenvolveu-se economicamente.

É de referir que a primeira reacção foi, na Madeira, por exemplo, de verdadeiro alarme. Em Junho de 1974 designei um delegado extraordinário do Ministério do Trabalho que devia visitar a Madeira e localmente ajudar à implementação do SMN no arquipélago. Cedo fui surpreendido.

Por proposta do ministro sem Pasta Francisco Sá Carneiro interrompemos uma reunião do Conselho de Ministros para que eu pudesse atender o oficial superior que representava a Junta de Salvação Nacional na Madeira. Queria ele, acompanhado e com o apoio do meu delegado extraordinário, pedir-me que suspendesse a aplicação do SMN na Madeira. Alegadamente, a economia da Região soçobraria se o SMN fosse por diante. Defendi que não, que não soçobraria, pensava eu, mas que de qualquer modo era muito difícil discriminar uma região e que patrões e trabalhadores saberiam localmente encontrar a melhor forma de resolver problemas. Ao meu delegado, pedi que regressasse de imediato a Lisboa.

A economia madeirense, como sabemos, resistiu e prosperou e desde há anos que, por decisão das autoridades regionais, o salário mínimo vigente na Madeira é mais alto do que o SMN em vigor no Continente – tal como, aliás, acontece também nos Açores.

Como olha para a evolução do valor do salário mínimo desde 1974, particularmente nos últimos anos?

O SMN português, comparativamente com os de outros países europeus, traduz uma franca situação de desfavor dos trabalhadores portugueses face a países do Norte e Centro da Europa. Uma análise cuidada demonstrará que os portugueses foram gravemente atingidos pelo Tratado de Maastricht.

Impor a todos os países o mesmo limite de inflação anual de 3% foi condenar os mais atrasados, como Portugal, ao eterno atraso. Só não foi uma medida absurda porque foi, certamente, uma deliberada, consciente medida de coação.

Tudo foi agravado nos tempos da troika, quando durante quatro anos o SMN foi congelado. As últimas actualizações do valor do SMN embora não sendo as desejáveis, vão no entanto no sentido correcto, de atenuar desigualdades e reparar injustiças.

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