«O projecto do mercado comum, tal como nos foi apresentado, é baseado no liberalismo clássico do século XIX, segundo o qual a concorrência pura e simples resolve todos os problemas. A abdicação de uma democracia pode ser conseguida de duas formas, ou pelo recurso a uma ditadura interna, concentrando todos os poderes num único homem providencial, ou por delegação desses poderes numa autoridade externa, a qual em nome da técnica, exercerá na realidade o poder político, que em nome de uma economia saudável facilmente irá impor uma política orçamental, social e finalmente uma política.»
Em 1957, em pleno debate sobre o Tratado de Roma na Assembleia Nacional francesa, o antigo primeiro-ministro francês e figura de referência da resistência ao nazi-fascismo, Pierre Mendès France, criticava assim o projecto de integração associado à Comunidade Económica Europeia (CEE). No seu último livro publicado em vida, Não Há Mapa Cor-de-Rosa, o historiador José Medeiros Ferreira, ministro dos Negócios Estrangeiros aquando do pedido de adesão de Portugal à CEE, classificou esta crítica como um «alerta sonoro e actual».
De facto, 60 anos depois, a abdicação das democracias foi quase total, sobretudo nos países mais periféricos da actual União Europeia (UE), de que Portugal é um exemplo. O projecto do mercado comum continha já um claro enviesamento económico liberal, radicalizado, entre outros, pelo Acto Único de 1987, implicando a abdicação total pelas democracias de instrumentos de política comercial, industrial e de controlo de capitais, esvaziando os anteriormente mais robustos sectores empresariais dos estados. Tudo em nome de uma regulação supranacional, conforme à expansão das forças de mercado, favorável aos grandes interesses capitalistas, preponderantes nas economias políticas dos países centrais.
«O mercado passou a chamar-se único e único era agora o pensamento subjacente às políticas.»
O mercado passou a chamar-se único e único era agora o pensamento subjacente às políticas. Com Maastricht, mercado único passou a rimar com moeda única, implicando critérios de convergência nominal e, a partir de 1997, um Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), impondo uma política orçamental tendencialmente de austeridade. E isto num momento em que a social-democracia ainda era maioritária nos governos. As democracias abdicavam de política monetária e cambial, da ligação entre o Tesouro e um Banco Central agora impedido de funcionar como prestamista de último recurso dos estados. A soberania monetária dava lugar à integral dependência face aos mercados financeiros, supostamente os repositórios da eficiência económica, e face a regras orçamentais, vigiadas por burocratas em Bruxelas, convencidos que a melhor política seria a ausência de política económica dos estados.
Para lá das rematadas ilusões sobre a sua eventual reforma progressista, a UE emerge como a mais completa materialização do projecto neoliberal à escala de um continente: reduzir tanto quanto possível o impacto da democracia política na economia capitalista, revertendo as conquistas que tinham sido alcançadas em fases de menor integração pelas classes trabalhadoras, de resto ajudadas pela presença internacional de movimentos socialistas e comunistas fortes, verdadeiros espectros que os pais e herdeiros da integração europeia sempre procuraram esconjurar, contando para isso com ajuda do poder imperial norte-americano. Na ausência de instrumentos de política económica nos espaços onde está a democracia, os direitos sociais e laborais tornaram-se nas variáveis de ajustamento, particularmente no contexto de crises económicas desta forma também mais recorrentes e intensas. A UE proíbe as políticas económicas de pleno emprego, fragilizando os estados sociais nacionais e as forças sindicais, que são uma das suas bases. A UE cria as condições para uma corrida para o fundo, por exemplo, em matéria de taxação de um capital com maior mobilidade e maior possibilidade de chantagem política.
A última crise financeira internacional do neoliberalismo, iniciada em 2007-2008, revelou as consequências danosas da submissão dos estados à finança privada. Para quem ainda estivesse distraído, revelou também a verdadeira face de uma UE que encarou a crise como uma oportunidade para reforçar o lastro institucional pós-democrático: troikas, semestre europeu, tratado orçamental, união bancária são outros tantos instrumentos de crescente condicionamento supranacional da soberania democrática.
«Do ponto de vista dos combates pela memória, indissociáveis de um projecto de futuro para o País, é imperioso reconhecer que o início da integração europeia não deve ser celebrado.»
Portugal pagou um preço elevado por esta integração, pela obsessão com o pelotão da frente: o euro, expressão máxima de regras desadequadas à nossa estrutura socioeconómica, está associado a quase duas décadas de estagnação, a taxas de desemprego que chegaram ao dobro do máximo histórico anterior, ao colapso do investimento, ao mesmo tempo que a dependência crescente do país se manifestou numa dívida externa, pública e privada, recorde, uma combinação sem precedentes históricos. De forma associada, um número crescente de sectores económicos estratégicos acabou nas mãos do capital estrangeiro.
O máximo que a força democrática nacional consegue na presente correlação de forças é travar temporariamente esta trajectória. Alterá-la, exige desafiar e desmontar toda a estrutura de constrangimentos externos que foi deliberadamente criada com a cumplicidade das elites dominantes nacionais; no fundo, exige passar da abdicação da democracia à reconquista democrática, ou seja, à recuperação de instrumentos de política económica, a sua base material.
Do ponto de vista dos combates pela memória, indissociáveis de um projecto de futuro para o País, é imperioso reconhecer que o início da integração europeia não deve ser celebrado. Celebradas devem ser, isso sim, as tradições emancipatórias, nacionais e internacionais, de onde surgiram as vozes que alertaram a tempo e horas para o caminho que estava sendo trilhado de abdicação da soberania.
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