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A quem serve o Mecanismo de Comércio de Emissões da UE?

O capitalismo mais verde, baseado numa racionalidade neoliberal, financeira e não ecológica, implica, pois, resultados negativos muito concretos, particularmente para o ambiente e para os trabalhadores.

Créditos / Ursula von der Leyen / Twitter

A evidência científica do fenómeno das alterações climáticas e dos riscos que acarretam (cuja discussão já se fazia há várias décadas) ganhou capacitação institucional com a formação do IPCC1 em 1988 e da Convenção-Quadro das Nações Unidas em 1994 (que se reúne periodicamente desde aí, para introduzir novas políticas e avaliar os desenvolvimentos globais do fenómeno). A emissão global de gases com efeito de estufa (GEE) (medidos em carbono-equivalente), resultado da atividade humana (sobretudo da queima de combustíveis fósseis, para a produção de energia e nos transportes, mas também da indústria transformadora e agricultura) teria que ser reduzida a um nível que não contribuísse para aumentar a temperatura média do planeta a um ponto de não-retorno para a vida humana na Terra. 

A operacionalização desse objectivo foi realizada através do Protocolo de Quioto (assinado em 1997 e que entrou em vigor em 2005, sendo em 2015 substituído pelo Acordo de Paris). Este protocolo introduzia três instrumentos que deveriam ser utilizados para promover essa redução global de carbono, entre eles o Mecanismo de Comércio Internacional de Emissões (ETS), imposto pelos EUA, mesmo que este país não tenha ratificado o acordo. Estes instrumentos foram apresentados como inovadores (em comparação com outras políticas ambientais de âmbito global) porque faziam utilização de mecanismos de mercado para atingir objectivos de redução de emissões.

É o ETS – especificamente da sua aplicação na União Europeia (UE) e no contexto da votação no Parlamento Europeu da proposta de Directiva que reformula o regime de comércio de licenças de emissão da UE (ETS da UE)  – que nos merece uma análise mais específica neste artigo.

O ETS da UE usa um sistema de fixação de «limites máximos» para a tonelagem de carbono que pode ser produzida pelas empresas poluidoras, estabelecendo um tecto que deve ser reduzido ao longo dos anos, garantindo que as metas de emissões de GEE sejam tratadas também como um tecto para a ambição climática e não como uma base referencial. São estabelecidas um conjunto de licenças, distribuídas ponderadamente pelos Estados-membros (EM) da UE.

Os EM, por sua vez, atribuem licenças às empresas emissoras de carbono. Se alguma destas empresas emite além das licenças de carbono a si atribuídas terá de comprar licenças a outras empresas poluidoras, a fim de evitar pesadas multas. 

Este sistema seria indutor do investimento em «tecnologias verdes», que não apenas reduziriam as emissões de GEE – evitando a compra de emissões a outras empresas –, como poderiam permitir que as licenças não utilizadas fossem colocadas no mercado aberto (onde até pessoas individuais podem investir) e gerar receita. 

O ETS da UE entrou em funcionamento em 2005 e está agora na sua quarta fase (entre 2021 e 2030). As duas primeiras fases (2005-2007 e 2008-2012) funcionaram num sistema de atribuição de licenças gratuitas, baseadas nas emissões históricas dos diversos sectores. Em resposta a um intenso lobby empresarial, esta atribuição inicial foi muito generosa para as indústrias mais poluentes.

A atribuição de licenças permitiu ainda às indústrias poluidoras a internalização dos preços das licenças que recebiam de forma gratuita nos preços finais dos seus produtos, maximizando lucros (os produtores de eletricidade obtiveram lucros extraordinários médios de 47 mil milhões de euros durante a segunda fase), sem daí resultar qualquer alteração no perfil produtivo estrutural. O esquema falhou, portanto, em fornecer incentivos convincentes para as empresas investirem em tecnologias mais ecológicas e relaxou assim todo o princípio de «pagar para poluir».

Neste período foi também prática corrente em alguns dos EM, de modo a cumprir os seus objectivos de redução de emissões legalmente vinculativos, a compra de créditos de compensação de carbono a países em desenvolvimento. Assim, em vez de reduzirem as suas próprias emissões de carbono em casa, o ETS da UE encorajou as empresas a compensar as suas obrigações investindo em países terceiros, «exportando» as suas reduções de carbono juridicamente vinculativas.

Na terceira fase (2013-2020) do ETS da UE, as licenças passaram a ser leiloadas (ainda que as licenças gratuitas se tenham mantido para alguns sectores da indústria, e altas compensações foram asseguradas para alguns sectores muito poluentes que garantiam o investimento em instrumentos «sustentáveis», sendo que muitos deles são, no mínimo, questionáveis, como o sequestro artificial de carbono). Mais uma vez, o que se assistiu foi a repassagem dos preços das licenças para os consumidores, não se tendo assistido a uma mudança da estrutura produtiva implantada.

A quarta fase estabeleceu novos limites máximos de emissão para os sectores já abrangidos nas fases anteriores, introduziu novos sistemas de leilão e alargou o ETS da UE a novos sectores. No entanto, no essencial, mantém-se um sistema de atribuição de auxílios aos grandes poluidores.

Para além da já mencionada contribuição para impedir mudanças estruturais no perfil produtivo dos países, são vários os problemas identificados neste sistema. Ainda que os seus defensores apontem que as emissões de GEE foram reduzidas no espaço da UE, é mais provável que essa redução se deva a factores outros além do comércio de emissões, como a combinação de aumento da incorporação de energias renováveis e a um maior investimento na eficiência energética, a desaceleração económica provocada pela crise 2008-2012, pela política de austeridade e pela pandemia, ou a uma mudança de combustível (de carvão para gás, por exemplo) em resposta a outras políticas e variáveis económicas.

Por outro lado, sendo as licenças de carbono uma «permissão para poluir no futuro», que tende a ser estimada por procuração e não realmente medida, é susceptível a fraudes e a uma lógica especulativa de casino. Mesmo após a exposição de uma fraude no valor de 5 mil milhões de euros em IVA e outros escândalos que envolvem licenças roubadas e reutilizadas, o lado financeiro do ETS da UE permanece sub-regulamentado, de acordo com o Tribunal de Contas da UE. A definição legal de licenças de emissão não é suficientemente clara, o Registro de Licenças carece de controles fiduciários adequados e a cooperação entre a Comissão Europeia e os reguladores financeiros nacionais é deficiente.

A insistência na utilidade do ETS da UE e na sua valorização enquanto único instrumento capaz para atingir objectivos ambiciosos ofusca a necessidade de uma abordagem normativa, através da regulamentação, sustentado num conjunto alargado de políticas estratégicas que visem uma efetiva redução de emissões de GEE.

O Parlamento Europeu aprovou, recentemente, mais uma revisão ao ETS da UE, como parte do pacote «Fit for 55». A sua revisão, agora com intuito de actualização e adaptação aos objectivos climáticos acordados na UE até 2030, inclui, entre outros aspectos, as diminuições maiores e mais rápidas de licenças no mercado, o fim de mais um pacote de licenças gratuitas.

Finalmente, e de acordo com os desígnios do mercado, aprovaram o alargamento do ETS ao sector marítimo e ao sector da construção, aumentando as fontes de rendimento para as empresas poluentes. No melhor exemplo das lavagens de imagem das políticas da UE, criaram uma suposta compensação dos impactos sociais do ETS da UE (assumindo que há uma transferência das externalidades ambientais para as populações), criaram um Fundo Social Climático, na dependência de uma rentabilidade que nunca existiu – e que agora, por passos de mágica, começaria a existir.

Do ponto de vista dos resultados ambientais, perspectiva-se que esta alteração tenha tanto impacto como as outras, sendo mais uma fuga para frente para não se enfrentar o fracasso efectivo do ETS da UE. Em articulação com outros processos de espoliação e desenvolvimento desigual em curso, os mercados de carbono contribuem para as tendências sociais, económicas e ambientais perversas que se desenrolam no âmbito do regime de acumulação capitalista. Esta revisão servirá para exacerbar desigualdades já existentes, aumentando as oportunidades de acumulação de capital por uns em oposição a outros; para subsidiar actividades económicas destruidoras dos recursos naturais e poluentes; e distribuir a exposição aos efeitos negativos das actividades produtivas de forma desigual, através de processos de expropriação.

O processo de implantação e hegemonização dos instrumentos de mercado (como o ETS da UE) como a solução, supostamente eficaz, para a redução da poluição e a resolução dos problemas ambientais, insere-se num estabelecido processo de  precificação da natureza, mercantilizando os chamados «preguiçosos activos ecossistémicos», transformando «capital natural» em valor de troca, garantindo oportunidades quase ilimitadas de lucros e acumulação de capital. 

A necessidade neoliberal imperativa de tudo ter um preço, apresentada como a fonte final de conhecimento para informar a tomada de decisões ambientais, serve para justificar que apenas os sinais de preços e do sistema de «troca» comunicam «informações» de forma mais eficaz a quem tem de tomar acção. Negam assim a necessidade e a eficácia da regulamentação na defesa dos ecossistemas e na gestão dos recursos naturais. Mas, como a escassez aumenta o valor de troca no mercado, a destruição do meio ambiente e a mercantilização de novos «bens» naturais (como sumidouros de carbono) inevitavelmente aumentarão as oportunidades de lucro para alguns em detrimento dos povos.

Com a justificação de que apenas a integração mercantil possibilitaria a protecção dos recursos naturais, a gestão sustentável do ambiente biofísico ou a salvação do planeta tal como o conhecemos, sob o capitalismo, as  crises ambientais e económicas têm a mesma fórmula de resolução, forjando novas relações com a natureza e o meio ambiente. As soluções apontadas pelo sistema capitalista devem, assim, criar novas oportunidades de lucro para serem efectivas. 

O principal objectivo das abordagens baseadas no mercado para as mudanças climáticas é, pois, «internalizar» mais e mais os custos da acção predadora capitalista, numa tentativa de «obter os preços certos». Este processo, além de assentar em fundamentos económicos discutíveis (desde logo, os métodos utilizados para imputar uma disponibilidade de consumo de um serviço/produto que não existe verdadeiramente enquanto mercadoria, criando potencialmente bolhas especulativas), é falacioso do ponto de vista dos objectivos declarados de preservação: ao transformar as leis da natureza em leis do capital, sujeita os ecossistemas terrestres à dinâmica fagocitária de acumulação do capital global, o que, por definição, contraria uma gestão racional e sustentável desses ecossistemas, além de imputar os custos ambientais à sociedade e à própria natureza.

Paralelamente, como parte dos processos de acumulação, a financeirização da natureza implica um radical e global processo de expropriação e uma inversão dos princípios de gestão, onde o dever de preservação é substituído pelo direito a poluir, com base nos princípios do poluidor e utilizador-pagador.  Estes dois fenómenos legitimam outras formas de exploração, como a da afirmação de um renovado colonialismo2 ou a já mencionada deslocação da responsabilidade pela depleção ambiental do sistema histórico que a promove para o consumidor – com a culpabilização da acção individual como o móbil da poluição e da sua resolução.

Desprovidas de poder, alcançado apenas por via da normatização/regulamentação pelas mãos do poder político, as populações que sofrem as consequências de externalidades negativas (de mais um mercado, incluindo as alterações climáticas) têm cada vez mais dificuldade em sobreviver às crises ambientais. As crises ambientais são também um exemplo que resultam da persistente tendência de esgotar os recursos naturais e com isso gerar as tais externalidades.

A tentativa do capitalismo para parecer mais verde, o chamado greening é por isso nada mais que mais um passo em frente na sua ânsia e natureza de acumulação. Como tão bem descreveram Marx e Engels, «o capitalismo tende a promover o processo económico para além dos limites do crescimento controlável», como consequência são as conhecidas crises do capitalismo que forçam medidas para garantir a continuação da acumulação capitalista. O capitalismo mais verde, baseado numa racionalidade neoliberal, financeira e não ecológica, implica, pois, resultados negativos muito concretos, particularmente para o ambiente e para os trabalhadores.

O filósofo britânico Mark Fisher escreveu que «é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo». Não se pretende com isto justificar nenhum tipo de conformismo com o fim de um e a perpetuação do outro, mas tão somente destacar a capacidade da naturalização simbólica do capitalismo, enquanto sistema que tem na mercadoria a sua essência, mercantilizando inclusivamente os recursos naturais e a poluição.

A suposta inevitabilidade de políticas económicas liberalizantes e a ocultação de alternativas sistémicas tem capturado inclusivamente parte da esquerda mundial e uma parte muito significativa do movimento ecologista, que, ao exigir acriticamente o cumprimento das soluções defendidas por interesses essencialmente estranhos aos do desenvolvimento global sustentável se compromete paradoxalmente com a exploração irracional dos recursos naturais e da vida na Terra.

O ETS, cada vez mais útil ao grande capital europeu e cada vez mais apoiado por quem diz que se opõe aos seus interesses, é um exemplo de que a exploração não abrandou e que a ânsia de garantir indefinidamente mais-valias não oferece a solução que os trabalhadores, as populações historicamente oprimidas e os ecossistemas terrestres necessitam. Quando se materializam novas expansões nesta política, o fundamental é insistir em romper com ela. 

Afirmar que o capitalismo não é verde, ou apresentar o socialismo como alternativa à barbárie potencialmente extintiva que nos oferece o sistema dominante, não são vocalizações de circunstância. A urgência ambiental torna imperativo mudar o mundo e é preciso gritá-lo.

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