|Julian Assange

Assange e a miséria do jornalismo

Perante a mascarada de justiça que prossegue num tribunal de Old Bailey, evaporam-se os princípios deontológicos e as normas éticas de uma profissão essencial para a dignidade de qualquer ser humano.

Activistas dos direitos humanos manifestaram-se em apoio de Julian Assange em frente à embaixada britânica em Bruxelas, Bélgica, a 7 de Setembro de 2020. O fundador do Wikileaks, que se encontra preso no Reino Unido, contesta a partir de hoje, num tribunal londrino, um pedido de extradição apresentado pelos EUA por ter exposto segredos militares relacionados com crimes de guerra cometidos por este país no Afeganistão e no Iraque
Julian Assange contesta num tribunal londrino, desde 7 de Setembro passado, um pedido de extradição apresentado pelos EUA por ter exposto segredos militares relacionados com crimes cometidos por este país Créditos EPA/OLIVIER HOSLET / LUSA

O silêncio guardado pela comunicação social corporativa em relação ao linchamento judicial de Julian Assange e da liberdade de informação que está a decorrer em Londres testemunha o estado de miséria a que chegou o jornalismo dominante, capturado pelos grandes interesses minoritários e elitistas que controlam o mundo.

Perante a mascarada de justiça que prossegue num tribunal de Old Bailey para crucificar o homem que contribuiu para demonstrar alguns dos mais incontestáveis crimes contra a humanidade que têm vindo a ser cometidos em nome da democracia, das liberdades e dos direitos humanos, evaporam-se os mais básicos princípios deontológicos e as mais elementares normas éticas de uma profissão que é essencial para a dignidade de qualquer ser humano, sob qualquer sistema político e em qualquer lugar do mundo. O martírio de Assange é relatado e desmontado apenas por jornalistas e comentadores submetidos a uma espécie de clandestinidade mediática, barrados pelo muro espesso de silêncio, manipulação e mentira montado pelos proprietários dos meios de informação dominantes e alimentado pelas suas hierarquias de mercenários.

Vingança e intimidação

Em termos formais, o que está em causa no julgamento do fundador do website WikiLeaks em Londres é um pedido de extradição apresentado pela justiça norte-americana para que Assange venha a ser julgado nos Estados Unidos por uma panóplia de supostos crimes, os mais sonantes dos quais são a espionagem e a conspiração. A seriedade do processo é tal que a sentença do julgamento em território norte-americano é conhecida por antecipação: 175 anos de reclusão. Sem dúvida, um caso de viciação em que o resultado é divulgado antes de se iniciar o jogo.

«Tal como o silêncio do sistema mediático corporativo enxovalha o jornalismo, a criação e funcionamento do tribunal de Londres para julgar o pedido de extradição de Assange deixa de rastos o conceito de justiça»

Na prática, estamos perante a um assalto vingativo contra alguém que expôs os crimes e os métodos de propaganda suja praticados pelos Estados Unidos e muitos dos seus aliados – designadamente através das guerras sem fim – para gerirem a pretendida globalização imperial e neoliberal; e testemunhamos um assalto desapiedado contra a liberdade de informação através da intimidação dos jornalistas que levam a sério o seu ofício, doa a quem doer.

O julgamento do pedido de extradição apresentado pelos Estados Unidos é mais uma etapa de um caminho repleto de atrocidades processuais contra Assange, a começar por um caso de alegado assédio sexual praticado na Suécia e que foi – como está hoje provado – totalmente montado pela polícia sueca, certamente não apenas por iniciativa própria. Um percurso que prosseguiu com o penoso refúgio de anos na Embaixada do Equador em Londres, a traição do governo deste país chefiado pelo colaborador da CIA Lenin Moreno e o posterior internamento, em condições insalubres, na prisão de Belmarsh na capital britânica, por suposta falta a uma audiência de um tribunal. Uma prisão onde Julian Assange é submetido a «tortura psicológica», como denunciou o relator especial das Nações Unidas sobre a tortura, Nils Metzer – sem que isso tenha sido suficiente para soltar a verve do secretário-geral da organização sobre a gravidade do assunto.

Jornalismo e oportunismo

«Assange não é jornalista», alegam mercenários da propaganda dominante como pretexto para se eximirem à solidariedade corporativa que lhes assentaria muito bem em termos de hipocrisia mas os forçaria a abordar segundo perspectivas mais objectivas a mascarada de justiça que acontece em Londres.

Ser ou não ser jornalista levar-nos-ia muito longe, não sendo esta a questão de fundo do que está em causa.

«O que melhor traduz, porém, a hipocrisia e o oportunismo da comunicação corporativa em relação ao papel jornalístico de Julian Assange é [que] usaram, abusaram e lucraram das mensagens a que tiveram acesso sem qualquer esforço e depois, como agora é evidente, traíram vergonhosamente o mensageiro»

Julian Assange é fundador e director de WikiLeaks, um website jornalístico com matérias editadas, designadamente para omitir identificações que deixariam pessoas à mercê de eventuais consequências do seu envolvimento em casos reproduzidos pela publicação. Parte da acusação bastante fluida construída pelos Estados Unidos para o processo de extradição tem falsamente a ver com isso: a publicação de materiais resultantes de fugas de informação de organismos públicos prejudicaria funcionários inocentes. No tribunal, porém, os advogados de acusação não conseguiram ainda dar um único exemplo da utilização indevida por WikiLeaks de identificações de pessoas associadas aos documentos.

Julian Assange foi agraciado, entretanto, com prémios jornalísticos atribuídos por diversas entidades de múltiplas nacionalidades – o que o coloca inquestionavelmente na área de intervenção do jornalismo.

O que melhor traduz, porém, a hipocrisia e o oportunismo da comunicação corporativa em relação ao papel jornalístico de Julian Assange é o facto de os meios de informação dominantes ditos «de referência», sem excepção, terem reproduzido, com absoluta confiança, matérias divulgadas por WikiLeaks e que deixaram a galáxia de poder global bastante comprometida. Esses meios cumpriram parcialmente o seu dever recorrendo a WikiLeaks como fonte fidedigna. Isto é, usaram, abusaram e lucraram das mensagens a que tiveram acesso sem qualquer esforço e depois, como agora é evidente, traíram vergonhosamente o mensageiro.

Na prática, os New York Times ou Washington Post, os El País, Le Monde, Spiegel, BBC, Sky, Reuters, AFP, CBS, CNN e correlativos não tiveram qualquer pudor e reticência em recorrer ao WikiLeaks de Assange como acervo de fontes acima de quaisquer suspeitas mas agora silenciam uma estratégia de linchamento assumida pelas castas dominantes que pretende punir, tornar ilegítimas e silenciar essas riquíssimas fontes de jornalismo livre.

Paródia de justiça e baixa política

Tal como o silêncio do sistema mediático corporativo enxovalha o jornalismo, a criação e funcionamento do tribunal de Londres para julgar o pedido de extradição de Assange deixa de rastos o conceito de justiça.

«as figuras coroadas da chamada «civilização ocidental» preparam-se para enclausurar alguém que simboliza o jornalismo livre e, por isso, naturalmente incómodo. Pretendem isolá-lo numa pequena cela por um horizonte temporal de 175 anos e deitar a chave hora – afinal uma variante agravada e sádica da simples pena de morte»

O modo como se processa o «julgamento» é aberrante em termos de desequilíbrio entre acusação e defesa, o processo foi instruído por uma juíza, Emma Arbuthnot, carregada de incompatibilidades – por exemplo, o marido é membro de um grupo de pressão do governo dos Estados Unidos –, Julian Assange está forçado ao silêncio absoluto, segregado numa jaula de vidro blindado. Fica claramente explicado que, para o regime de tendência global, um bom jornalista livre é um jornalista enjaulado e calado. Além disso, os advogados de defesa não podem utilizar mensagens de Assange na sua argumentação, sob pena de serem, eles próprios, criminalizados. Acresce que a defesa não teve acesso ao teor das acusações, que vão variando com o andamento do «julgamento», e os juízes rejeitaram todos os pedidos de adiamento, impedindo que os advogados de Assange pudessem adaptar a sua estratégia ao aparecimento de dados novos.

Nada mais existe do que um arremedo de justiça como caminho para a sentença pré-estabelecida: a extradição do fundador de WikiLeaks para os Estados Unidos e para a morte lenta. Trata-se de tentar cobrir com um invólucro de «justiça» a vingança e a punição letal contra o homem que, sem cometer ilegalidades, recorrendo apenas à divulgação de informação qualificada que lhe foi cedida por fontes de dentro do sistema, desvendou os crimes e os métodos arbitrários e violentos usados pela elite dominante em nome do monopólio da «democracia» e dos «direitos humanos».

Entretanto chegou ao tribunal londrino a informação de que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, estaria disposto a «perdoar» a Assange caso este identificasse a fonte das informações obtidas no interior do Partido Democrata e que, por exemplo, deixaram a ex-secretária de Estado e ex-candidata presidencial, Hillary Clinton, atolada num muito comprometedor pântano de emails. Com esta manobra Trump quererá provar que a fonte pertence ao próprio Partido Democrata; e a Comissão Nacional deste partido continua a argumentar que as informações divulgadas por WikiLeaks foram fabricadas pelos serviços secretos russos. Uma trica doméstica em tempos eleitorais.

Ora o que tem isto a ver com justiça? Os acontecimentos vêm confirmar que o processo em torno de Assange não passa de política, uma política reles, perigosa e criminosa. Isto é, o presidente dos Estados Unidos pode passar por cima do tribunal de Londres, do processo instruído e outorgar «perdão» a um réu a ser julgado noutro país desde que este quebre uma norma básica do jornalismo que ainda o é: manter o anonimato das fontes. Se alguma coisa tem a ver com justiça neste processo, é apenas com uma arbitrária justiça imperial.

Entretanto, praticamente sem que o mundo se aperceba disso e com a cumplicidade daqueles que usurparam e desmantelaram o nobre ofício de jornalista, as figuras coroadas da chamada «civilização ocidental» preparam-se para enclausurar alguém que simboliza o jornalismo livre e, por isso, naturalmente incómodo. Pretendem isolá-lo numa pequena cela por um horizonte temporal de 175 anos e deitar a chave hora – afinal uma variante agravada e sádica da simples pena de morte.

Os jornalistas livres e independentes e os cidadãos em geral considerem-se avisados.

José Goulão, Exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril

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