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Os incêndios, a pandemia e as coincidências

Rescaldo de incêndio florestal. Foto de arquivo (2017)
CréditosManuel de Almeida / Agência Lusa

Estamos a caminhar para o fim do Verão em Portugal, o que, apesar de ser um acontecimento banal e previsível, traz consigo um leque interessantíssimo das tradicionais peças jornalísticas com o balanço da estação.

Normalmente, este compêndio informativo de grande relevo é uma género de salada de fruta de vários acontecimentos mais ou menos relevantes, dispostos num espécie de check-list de factos para quem andou distraído.

Vulgarmente, temos acontecimentos desportivos, incidentes com celebridades ou pseudocelebridades, umas filmagens de algumas praias com alguns números sobre o turismo, fait-divers da política nacional e internacional, e os incêndios de Verão.

Em suma, um compêndio, ao bom estilo das extintas edições Europa-América, do mais relevante que aconteceu na estação.

De todos os pontos supracitados, aquele que por norma me desperta uma maior intranquilidade é o tópico dos incêndios florestais. É certo que, normalmente, este tema tem uma acérrima cobertura jornalística durante o Verão, com dezenas de entrevistas desconcertantes a pessoas que foram vítimas de incêndios e dezenas de especialistas a falar sobre isso.

É verdade, todos os anos jornalistas, comentadores e especialistas nos brindam com uma série de lugares comuns, dizem-nos estarmos perante tragédias desmedidas, que as áreas afectadas irão demorar anos a recuperar. Salientam que a floresta portuguesa tem um valor incalculável e, por fim, deixam a sua lista de acções, aquilo a que eu gosto de chamar o momento «temos que».

Temos que investir na prevenção no ordenamento de território, temos de ter mais meios materiais e humanos de combate aos incêndios, etc., depois agradece-se, fecha-se a peça e para o ano há mais.

«Segundo um estudo de 2014 do Departamento de Gestão de Áreas Classificadas, Públicas e de Proteção Florestal do ICNF de 2003 a 2013, excluindo todas as investigações inconclusivas (cujo peso ainda é bastante significativo), as causas apuradas de incêndio dividem-se em negligente (56%), intencional (42%) e natural (2%)»

Como já aguardo ansioso esta interessante matéria jornalística, cedo iniciei a minha pesquisa pelos dados dos incêndios. Contudo, ao deparar-me com os primeiros números oficiais sobre os incêndios e os escritos sobre esta temática, fiquei na dúvida de se ir repetir, este ano, o ciclo informativo sobre o tema.

Dados provisórios do Instituto da Conservação da Natureza das Florestas (ICNF), divulgados pela agência Lusa, indicam que, comparando o período entre 1 de Janeiro e 31 de Agosto de 2020 com os dados dos últimos dez anos, assistiu-se a uma redução de dois dos principais indicadores deste flagelo: o número de incêndios (redução de 48%) e a área ardida (redução de 57%). O ICNF salienta que, até 31 de Agosto, este é o valor mais baixo em número de incêndios e o quarto mais reduzido de área ardida desde 2010.

No que respeita ao número de incêndios, 87% ocorreram em áreas inferiores a um hectare, tendo ocorrido apenas sete fogos com área igual ao superior a mil hectares, que resultaram em mais de 31 mil hectares do total de área ardida.

No meu entender, os números são ainda bastante expressivos, pese embora a redução. É relevante mencionar que os últimos anos, especialmente 2017, foram particularmente duros neste capítulo e que, a manter-se o paradigma desses anos, seria muito mais do que um dado estatístico, seria uma verdadeira calamidade.

Segundo um estudo de 2014 do Departamento de Gestão de Áreas Classificadas, Públicas e de Proteção Florestal do ICNF de 2003 a 2013, excluindo todas as investigações inconclusivas (cujo peso ainda é bastante significativo), as causas apuradas de incêndio dividem-se em negligente (56%), intencional (42%) e natural (2%).

«Deixando de parte as causas naturais, tendo em conta a sua baixa expressão, verificamos que maioritariamente os fogos são causados por negligência: queimas agrícolas descontroladas, beatas, fogueiras e outros trabalhos florestais. E intencionalidade: queimas agrícolas ilegais, motivos agrícolas, vandalismo e interesses económicos. É sabido que o preço pago pela madeira queimada é mais baixo do que o da madeira convencional, e que as necessidades do mercado para este produto são tanto maiores quanto maior for o crescimento da economia»

Deixando de parte as causas naturais, tendo em conta a sua baixa expressão, verificamos que maioritariamente os fogos são causados por negligência: queimas agrícolas descontroladas, beatas, fogueiras e outros trabalhos florestais. E intencionalidade: queimas agrícolas ilegais, motivos agrícolas, vandalismo e interesses económicos.

É sabido que o preço pago pela madeira queimada é mais baixo do que o da madeira convencional, e que as necessidades do mercado para este produto são tanto maiores quanto maior for o crescimento da economia.

Tomemos como exemplo a logística e o transporte: aqui existem dois tipos de produtos essenciais que são tanto mais necessários quanto maior forem as quantidades de mercadoria transportada e armazenada, paletes de madeira e cartonagem para embalamento e co-packing.

É fácil perceber que, quanto mais produtos movimentar a economia, maior será a necessidade deste tipo de material. Ambos os produtos partilham a mesma matéria prima, a madeira. Oscilações negativas nos volumes que o mercado movimenta provocam uma forte desvalorização neste tipo de produtos.

Pese embora os esforços de alguns partidos (PCP e PEV) para estabilizar o preço da madeira queimada e evitar a desvalorização deste produto, que particularmente penaliza os pequenos produtores, ainda existe muito oportunismo comercial responsável por explorar as debilidades dos produtores de madeira de zonas afectadas pelos incêndios.

Como é sabido por todos, e será seguramente recordado pelos meios de comunicação no compêndio de notícias deste fim de Verão, este período ficou fortemente marcado pela pandemia Covid-19 e pela sua influência na economia.

O desaceleramento da economia reduziu e restringiu os padrões de consumo, provocando uma desvalorização dos artigos de suporte logístico referidos.

«A confirmarem-se as perspectivas do ICNF para este ano podemos estar perante duas hipóteses (ou as duas em simultâneo): ou, pela primeira vez nos últimos dez anos em Portugal, as medidas de prevenção, fiscalização e combate a incêndios tão apregoadas foram aplicadas com maior sucesso; ou, por outro lado, a estagnação da economia provocada pela pandemia veio ajudar a desvanecer alguns interesses económicos que, em anos anteriores, seriam responsáveis por estes flagelos»

A Altri (conglomerado português que se dedica à produção de pasta de eucalipto), por exemplo, anunciou recentemente que, apesar de ter aumentado a sua produção e vendas, teve um resultado líquido inferior em 81% comparativamente ao mesmo período do ano passado.

Em comunicado à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) o grupo explica que esta quebra tem como origem, quase na sua totalidade, a quebra de 30% dos preços da pasta de papel nos mercados internacionais, motivado pela pandemia Covid-19.

Com todos estes dados, não consigo deixar de fazer uma pergunta. Será que esta aparente quebra do número de incêndios terá alguma correlação com o impacto da pandemia?

Não estou obviamente a procurar incriminar ninguém, contudo não deixa de ser curioso que, no período em que se registou um abrandamento tão abrupto da economia, se tenha registado também uma melhoria dos indicadores em matéria de incêndios.

A confirmarem-se as perspectivas do ICNF para este ano podemos estar perante duas hipóteses (ou as duas em simultâneo): ou, pela primeira vez nos últimos 10 anos em Portugal, as medidas de prevenção, fiscalização e combate a incêndios tão apregoadas foram aplicadas com maior sucesso; ou, por outro lado, a estagnação da economia provocada pela pandemia veio ajudar a desvanecer alguns interesses económicos que, em anos anteriores, seriam responsáveis por estes flagelos.

No século XIX, no Velho Oeste estadunidense, existia uma tradição em várias tabernas locais. Estas forneciam comida de graça aos clientes que compravam pelo menos uma bebida. Ora o que acontecia vulgarmente é que muitos dos alimentos oferecidos eram bastante salgados, como por exemplo presunto e queijo, o que levava o cliente a, na grande maioria dos casos, consumir mais do que uma bebida.

Diz a lenda que esta é a origem da expressão «não há almoços grátis». Neste caso particular resta-nos esperar para ver se existiu ou não almoço e se ninguém vai ter problemas de hipertensão no futuro, provocados pela ingestão de sal em excesso.

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