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|comunicação social

Máquinas chinfrinantes

A infestação de comentadores intelectuais que decidem colaborar com a concretização dos objectivos dos poderes dominantes em troca de vantagens curriculares e económicas é uma espécie endémica nas sociedades actuais que crestam a democracia.

CréditosGeorge Grosz

Uma das revelações mais interessantes e simultaneamente mais preocupantes da guerra na Ucrânia e do genocídio que Israel está a realizar na Faixa de Gaza é a quantidade de idiotas úteis arrebanhados nos corpos docentes das nossas faculdades, recrutados como comentadores que debitam com o maior à-vontade os mais variegados dislates na procura de alinhar e reproduzir a voz do dono que atravessa o Atlântico, procurando que os seus vassalos dela sejam arautos. Tal é a ânsia de mostrar serviço na mineração de prebendas que a mais das vezes essas vozes são tão canhestras que se expõem ao despautério. Por cá, a mediocridade corrente mais acentua a disfuncionalidade. Os desenvolvimentos no terreno tornam ainda mais evidente essa realidade em que, para essa turbamulta, os antecedentes históricos são aplainados ou mesmo completamente obliterados. Em relação à Ucrânia, a deriva nazi-fascista pós-Maidan é rasurada, como apagadas são quaisquer referências à programada subversão dos Acordos de Minsk, a guerra ter sido iniciada em 2014, oito anos antes da invasão pela Federação Russa que preveniu a iminente razia das populações russófonas. Ouvi-los argumentar, quando na Ucrânia a fase actual da tão anunciada contra-ofensiva é um fracasso indisfarçável, os avanços russos são por razões tácticas lentos mas seguros, as acções militares ucranianas parecem ter mais objectivos espectaculares do que razões estratégicas para abrilhantar as conversas em família de Zelensky, é um exercício em que a ficção é tão manifesta que até tem laivos ridículos.

«[...] comentadores que debitam com o maior à-vontade os mais variegados dislates na procura de alinhar e reproduzir a voz do dono que atravessa o Atlântico, procurando que os seus vassalos dela sejam arautos.»

Em paralelo, o genocídio dos palestinianos por Israel em Gaza, o apertar do cerco do estado policial na Cisjordânia é para essa gente uma consequência das acções do Hamas em 7 de Outubro, como isso surgisse do nada. Nunca referem a política colonial posta em prática por Israel desde a sua invenção, a sua defesa de uma raça diferente e superior, política que tinham aplaudido aos nazis, que lhes retribuíram entusiasticamente os encómios1.

Nem sequer mencionam que nada disto é novo, repete com maior brutalidade a campanha, com meios aéreos e terrestres, de 2009, quando Israel usou como agora uma força militar desproporcionada durante 32 dias contra o Hamas e os civis em Gaza, o que foi objecto de uma missão da ONU, dirigida pelo judeu Goldstone, para documentar as violações dos direitos humanos cometidas durante esse conflito. Ontem como hoje, o governo israelita recusou toda a colaboração por a missão não se conformar com a ortodoxia sionista, que nunca cumpriu qualquer resolução das mais de uma centena que a ONU produziu criticando a política de colonatos, os bloqueios a Gaza, os muros na Cisjordânia, entre outros graves atentados, sempre com o objectivo de inviabilizar a política dos dois Estados. Tudo isso é omisso nas parlapatices desses comentadores encartados pelas oligarquias que controlam a comunicação social e contaminam a de serviço público pago por todos nós contribuintes.

O que é deveras inquietante é saber-se que muita dessa gente tem lugares destacados no professorado, estampa na lapela mestrados e doutoramentos, dá aulas em que deve sebentar com maior pormenor as asnices que difunde nos espaços mediáticos, dirige teses, viaja a perorar pela estranja em colóquios e seminários onde o pensamento inútil é preponderante mas abrilhanta currículos. Paleios que não devem ser muito diferentes das parvoidades que debitam com grande desplante, até arrogância, quando lhes concedem tempo de antena.

«O conformismo em relação à cultura prevalecente é recompensado, a ascensão no professorado e social é garantida dependendo sobretudo das técnicas de mobilidade pelos corredores dos poderes.»

É aflitivo, mesmo angustiante ouvi-los, percebendo-se que essa gente de cabeça minguante está colonizada pelo pensamento anglo-saxónico dominante nas ciências humanas, sendo bem conhecida a sua decadência, que é uma consequência das relações subservientes entre os intelectuais e o poder nos Estados Unidos da América do Norte (EUA) e na Grã-Bretanha, que conduziu, com cada vez menos excepções, à míngua, mesmo morte das elites progressistas.

Essa tropa fandanga de teóricos críticos, por cá como por lá, sabe muitíssimo bem, tem isso bem interiorizado, que é impossível contestar ou debater publicamente as convenções e as estruturas estabelecidas. O conformismo em relação à cultura prevalecente é recompensado, a ascensão no professorado e social é garantida dependendo sobretudo das técnicas de mobilidade pelos corredores dos poderes.

Russell Jacoby desnuda com agudeza o estado pantanoso do ensino universitário nessas áreas nos EUA, que se propagou pelas academias, as cidadelas dos valores ocidentais: «O problema é que os professores garantem o seu estatuto desde que não exprimam ideias impopulares, controversas. Só assim é que têm direito à cátedra […]. Pela sua inércia conservadora, a universidade contemporânea tornou-se o lugar mais refractário à procura da verdade. O conceito de professor catedrático, professor agregado, a que anteriormente se dava grande valor, é hoje um conceito vazio, sem sentido»2.

A questão é muitíssimo grave, está na ordem do dia. Actualmente exprimir um pensamento autónomo, sobretudo se for de esquerda, nas áreas das ciências humanas é praticamente garantir a ruína instantânea de uma carreira académica e em outras áreas profissionais. As portas fecham-se, as subvenções emagrecem ou mesmo desaparecem, os textos de opinião, a participação em debates na rádio e na televisão são cada vez mais escassos, quando existem, é para mascarar um pluralismo declinante, basta compulsar, para não ir mais longe, os meios de comunicação social de há 25 anos e os de hoje, alinhar os tempos de antena concedidos aos políticos e comentadores, aquilatar o poder discricionário de directores e editores que asfixia o jornalismo. Maioritariamente de direita, são activos tóxicos da democracia mesmo a mais formal, injectando-a de populismos que a corroem tendendo para um novo fascismo de fachada democrática, na sua mais suave presença e enquanto as crises dos superiores interesses económicos o permitirem e não exigirem soluções mais musculadas.

«A questão é muitíssimo grave, está na ordem do dia. Actualmente exprimir um pensamento autónomo, sobretudo se for de esquerda, nas áreas das ciências humanas é praticamente garantir a ruína instantânea de uma carreira académica e em outras áreas profissionais.»

Nada disto é novo, vulgarizou-se perigosamente com os membros das elites progressistas a submeterem-se a considerações pragmáticas quando querem manter-se próximos ou sentar-se nos círculos do poder, como Edward Said, já em 1996, teorizava no seu livro Des Intelectuels e du Pouvoir: «Em minha opinião nada é mais repreensível que esta disposição (dos intelectuais) de fugir, esta deserção característica de posições de princípio que se sabem ser pertinentemente justas. Este medo de parecer ser muito político e reivindicativo, esta necessidade de aprovação por parte de quem detém a autoridade; este desejo de manter uma reputação de objectividade e de moderação com a esperança de ser procurado, consultado ou de se sentar nalgum comité de prestígio, para se conservar na corrente dominante, receber talvez um diploma, uma espórtula, uma embaixada.

Este modo de pensar e comportamental é, por excelência, corruptor; mais que qualquer outra coisa desnatura, neutraliza e finalmente assassina qualquer vida intelectualmente apaixonada, é o que tais práticas efectivam.»3

«Este é o grande drama da nossa época que tem que ser enfrentado sem detenças nem ilusões pelas esquerdas que sabem que a dominação capitalista, por mais hegemónica que seja a sua imagem, não é eterna»

Esta infestação de comentadores intelectuais que decidem colaborar com a concretização dos objectivos dos poderes dominantes em troca de vantagens curriculares e económicas, fechando os olhos às realidades, calcando as verdades, renunciando a qualquer réstia de ética, é uma espécie endémica nas sociedades actuais que crestam a democracia, mesmo a mais imprecisa, na Europa e no continente americano, o que é bem visível pelos avanços da direita e extrema-direita, pela propagação dos populismos de mais baixa extracção, com bastante culpas das esquerdas tibuteantes que se aliaram e aliam a sectores demoliberais para neutralizar a luta de classes, contribuindo para salvar o capitalismo nas suas metamorfoses do liberalismo clássico ao neoliberalismo, surfando pela alienação e estupidificação adubada por esses enxames que invadem academias, comunicação social, redes sociais. Este é o grande drama da nossa época que tem que ser enfrentado sem detenças nem ilusões pelas esquerdas que sabem que a dominação capitalista, por mais hegemónica que seja a sua imagem, não é eterna, que as lutas políticas, sociais e económicas não se podem limitar a mudanças sociais sem o objectivo de mudanças estruturais.

  • 1. A Federação Sionista da Alemanha, em 1933, enviou uma declaração ao Congresso do Partido Nacional-Socialista em que afirmava que «um renascimento da vida nacional como o que está a acontecer na vida alemã […] deve também acontecer na nação judaica. A base de um novo Estado Nazi deve também ocorrer na formação de um Estado Nacional Judaico. Com os princípios de um novo Estado Nazi fundado no princípio da raça, devemos enquadrar a nossa comunidade com natureza similar para que se possa estruturar e desenvolver uma Pátria Judaica».
  • 2. Russell Jacoby, The End of Utopia, Politics and Culture in a Age of Apathy, Basic Books, 2000, p. 63-64.
  • 3. Edward W. Said, Des Intelectuelles e du Pouvoir, Seuil, 1996. p. 116-17.

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