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Os enigmas da purga monstruosa na Arábia Saudita

Se, regra geral, é difícil decifrar as diplomacias árabes e os seus efeitos, a tarefa transforma-se num enigma de grau muito mais elevado em plena purga política e religiosa atingindo a casta dirigente da Arábia Saudita, o mais poderoso e influente país árabe.

Imagem de Saad Hariri numa rua de Beirute (Líbano), 14 de Novembro de 2017
Imagem de Saad Hariri numa rua de Beirute (Líbano), 14 de Novembro de 2017CréditosWael Hamzeh/EPA / Agência Lusa

A demissão forçada e possível sequestro do primeiro-ministro libanês, Saad Hariri, e a humilhação a que o presidente francês, Emmanuel Macron, foi submetido em visita relâmpago a Riade são episódios colaterais, embora importantes, da enorme purga político-religiosa em curso na Arábia Saudita desde a noite de 4 para 5 de Novembro.

Os acontecimentos em Riade, com supervisão em directo do presidente norte-americano, Donald Trump, pelo menos na fase mais crítica do arranque do golpe palaciano conduzido pelo príncipe herdeiro, Mohammed Ben Salman, poderão ter repercussões profundas no regime da mais poderosa petroditadura do Golfo, principal aliada das potências ocidentais sobretudo quando se trata de manipular a arma do terrorismo dito «fundamentalista islâmico», não apenas no Médio Oriente mas em qualquer lugar do mundo onde lhes seja conveniente. Repercussões essas que, se consolidadas, poderão ter um impacto regional e internacional dentro de um cenário com apreciável margem de imprevisibilidade.

Mohammed Ben Salman, com apenas 32 anos e uma presença muito recente na intriga política própria da família Saud, proprietária da Arábia Saudita – na verdade uma nação privada – é filho do monarca no trono desde Janeiro de 2015, Salman Ben Abdul Aziz Al-Saud, um dos sete filhos do fundador da monarquia e do país, Abdul Aziz Al-Saud.

Depois de ter entrado a matar nas suas funções de herdeiro do trono, expressão que deve ser entendida à letra pois mandou decapitar o chefe da oposição e desencadeou a sangrenta agressão ao Iémen, Mohammed Ben Salman iniciou uma monstruosa purga nos aparelhos político e religioso do regime no dia 4 deste mês.

Em dois dias afastou os principais rivais na linha de acesso ao trono, tirando de cena as figuras proeminentes dos clãs Fahd, do anterior rei Abdallah, e Nayef, a que pertence o ministro do Interior, entretanto demitido e detido. O príncipe Muteb, chefe da Guarda Real e patriarca do clã Fahd, foi demitido e preso; o seu filho, o príncipe Mansour, faleceu na queda de um helicóptero em Abha, precisamente no dia 4 de Novembro.

Ao mesmo tempo, Mohammed Ben Salman criou e instalou-se à cabeça de uma Comissão Anticorrupção e publicou uma designada «lei antiterrorista» que penaliza fortemente as «difamações» e os «insultos» ao rei e ao príncipe herdeiro. Onze príncipes, quatro ministros, dezenas de ex-ministros foram detidos à luz destes novos mecanismos, entre as cerca de 1300 figuras do regime colocadas sob custódia, a maioria no hotel Ritz-Carlton em Riade.

Lugar para onde foi conduzido igualmente Walid Ben Talal, um dos homens mais ricos do mundo, grande accionista do Citygroup, da Apple, do Twitter, da Eurodisney e embaixador secreto da Arábia Saudita em Israel. Dois países aliados que não têm relações diplomáticas formais.

Ciente de que necessita de apoio popular para contrapor a este terramoto no interior de uma sanguinária família real, o herdeiro do trono vinha preparando terreno através de medidas de grande impacto nos jovens – 70% da população – ordenando a abertura dos cinemas e permitindo a realização de concertos, até então proibidos; e nas mulheres, autorizando-as a conduzir veículos a partir do próximo ano.

Com o mesmo intuito, o de amainar a sensação de opressão social, estendeu a convulsão ao sector religioso, prometendo transformar o waahbismo numa religião «normal» e expurgar os hadiths ou citações atribuídas ao Profeta Maomé das suas passagens violentas e contraditórias, o que afronta as mais tradicionais e fundamentalistas práticas muçulmanas.

Na sequência das promessas do jovem Mohammed Ben Salman, mais de mil imãs e teólogos foram presos. Em dois dias, o número de detidos no âmbito da gigantesca purga eleva-se a quase 2500 figuras de relevo no regime confessional.

Entre eles o primeiro-ministro libanês, Saad Hariri, membro da família real saudita. De facto, não é filho biológico de Rafic Hariri, o anterior chefe de governo do Líbano assassinado, e cuja morte foi um dos pretextos da guerra contra a Síria, mas sim um bastardo do clã Fahad, agora debaixo de fogo em Riade.

«A Casa Branca revelou, entretanto, que o presidente Trump esteve ao telefone com Mohammed Ben Salman no dia 4 à tarde, o que significa altas horas da noite na Arábia Saudita, portanto enquanto decorriam as detenções (...)»

Esta razão parece ser a causa próxima do seu sequestro, que o presidente libanês, Michel Aoun, e o secretário-geral do Hezbollah, Mohammed Nasralah, qualificaram como «uma ingerência grosseira nos assuntos internos libaneses». Em boa verdade, a ingerência é muito anterior, desde que, através das duplas nacionalidades de Rafic e Saad Hariri, a Arábia Saudita passou a tutelar grande parte da política e das actividades financeiras do Líbano.

Os factos revelam que o discurso de demissão lido por Saad Harari em Riade foi também o veículo usado por Mohammed Ben Salman para expor ao Médio Oriente e ao mundo a motivação fundamental das mudanças sauditas em curso: transformar o Irão no inimigo principal, transferindo a essência dos conflitos regionais do âmbito entre sunitas e xiitas para o da confrontação entre árabes e persas.

«Onde o Irão está presente, semeia a divisão e destruição», leu Hariri. «Infelizmente», acrescentou, «cheguei à conclusão de que os meus compatriotas estão nas mãos do Irão, que procura retirar o Líbano do seu ambiente árabe». Antes de comunicar ao presidente libanês, por telefone, a sua demissão, Hariri profetizou «que o Irão e os seus acólitos (uma referência ao Hezbollah) serão derrotados; as mãos que agridem os Estados árabes serão cortadas e o mal irá voltar-se contra quem o pratica».

A Casa Branca revelou, entretanto, que o presidente Trump esteve ao telefone com Mohammed Ben Salman no dia 4 à tarde, o que significa altas horas da noite na Arábia Saudita, portanto enquanto decorriam as detenções. Logo a seguir foi anunciado que a oferta pública de compra do gigante petrolífero saudita Aramco decorrerá afinal na Bolsa de Nova Iorque e não em Riade.

Na mesma noite, a resistência houthi iemenita, agora apoiada pelos Guardas da Revolução iranianos – o que tem provocado sucessivas derrotas às tropas invasoras sauditas – lançou um míssil balístico, de origem iraniana, contra o aeroporto da capital do reino de Saud. O episódio é interpretado como uma mensagem de Teerão informando que tomou nota do conteúdo do discurso lido pelo primeiro-ministro libanês demissionário.

Texto esse que confirma a permanente falsificação processual em torno do assassínio de Rafic Hariri; só assim é possível que as acusações incriminando anteriormente o ex-presidente libanês Emile Lahud, o Hezbollah e a Síria tenham sido agora transferidas directamente para o Irão, ao sabor das conveniências do novo homem forte de Riade.

De que modo as transformações executadas – ainda não consolidadas, tendo em conta o historial de intriga da família Saud – poderão influenciar a situação no Médio Oriente, especialmente em matérias como as guerras em curso, o apoio aos terroristas, a elevação de tom das ameaças de Trump contra o Irão e a agressão internacional contra a Síria?

É difícil ter uma perspectiva fiável, ainda que o apelo à «unidade árabe» numa orientação racista anti-persa, perceptível na mensagem do príncipe herdeiro saudita lida pelo primeiro-ministro libanês demissionário, possa provocar alterações que não sejam apenas pontuais e transitórias.

É certo que prossegue o cerco dos outros países do Golfo ao Qatar, sobrecarregado pelo ónus, agora formalmente exclusivo, do apoio ao terrorismo. Pelo menos é o que deve inferir-se das circunstâncias da humilhação a que o presidente francês foi sujeito pelos novos poderes sauditas durante a sua recente viagem ao Golfo.

Tentando intermediar em favor de Saad Hariri, Emmanuel Macron pretendeu fazer uma escala em Riade, quando em rota para os Emirados Árabes Unidos, de modo a avistar-se com o rei Salman, intenção que foi rejeitada por este; no regresso, conseguiu apenas encontrar-se brevemente com o príncipe herdeiro saudita, que não levou em conta os pedidos relacionados com Hariri e fez questão de acompanhar o visitante de regresso ao avião, de modo a que não se encontrasse com o chefe demissionário do governo libanês.

Diz-se nos bastidores diplomáticos que, entre outras razões, o poder saudita não se esqueceu das tomadas de posição favoráveis ao Qatar tomadas por Macron durante a campanha eleitoral. É difícil perceber se este episódio corresponde apenas a uma situação conjuntural em termos de relações internacionais, embora seja muito pouco prestigiante para o presidente francês na sua primeira tentativa de mediação diplomática.

Uma coisa é certa entre tanta incerteza. Se, regra geral, é difícil decifrar as diplomacias árabes e os seus efeitos, a tarefa transforma-se num enigma de grau muito mais elevado em plena purga política e religiosa atingindo a casta dirigente da Arábia Saudita, o mais poderoso e influente país árabe.

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