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Eleitos, mais votados e coisas do género

Nesta ressaca tumultuosa e sem rumo depois da eleição de Donald Trump, há quem se entretenha a lamentar-se com o facto de o presidente norte-americano ter tido menos votos que a candidata.

Créditos / Kevin Hagen/EPA Agência Lusa

Nesta ressaca tumultuosa e sem rumo depois da eleição de Donald Trump, onde só Wall Street parece saber onde se situam os pontos cardeais e mal consegue disfarçar a euforia, há quem se entretenha a lamentar-se com o facto de o presidente norte-americano ter tido menos votos que a candidata; por incrível que pareça, existem até ignorâncias militantes e memórias curtas que tratam tal inequívoca aberração como se ela fosse coisa nova e não fizesse parte, desde sempre, das habilidosas manipulações instituídas como lei em países que, por sinal, têm por hábito fiscalizar a democracia dos outros.

No fim das contas, ainda não foi assim há tanto tempo que George W. Bush chegou à Casa Branca com menos votos que o candidato Albert Gore. Também não é preciso torturar a memória para testemunhar que os conservadores britânicos alcançam sumptuosas maiorias absolutas com menos votos que os trabalhistas; ou que ainda recentemente os fascistas britânicos do UKIP não foram além de quatro deputados com poucos votos menos que o partido então chefiado por David Cameron, e que recebeu via verde para governar confortavelmente em maioria.

Discutir este tema no calor pós-eleitoral, com tudo consumado, é o mesmo que tentar mudar as regras em pleno jogo ou chorar um penalty não assinalado. É mais uma das reacções inconsequentes que proliferam, e encontram amplo eco mediático, no âmbito do movimento anárquico que parece ter os contornos de uma campanha inofensiva contra Trump.

No entanto, ainda bem que tal artimanha eleitoral vem à baila, porventura reflectindo até as inquietações de espíritos que, paradoxalmente, se empenham tanto em alterar a lei eleitoral portuguesa.

As mesmas almas que talvez achem justificado que o primeiro-ministro italiano faça chantagem sobre o eleitorado, ameaçando demitir-se se não forem aprovadas reformas constitucionais que abrangem também o novo sistema eleitoral.

A alegação de Renzi é a mesma que se ouve entre os portugueses contra a lei eleitoral em vigor: é preciso encontrar maiorias de governo fáceis e fortes, para garantir a estabilidade; isto é, o campo da decisão política é entregue a dois partidos que pensam mais ou menos da mesma maneira; os outros ficam reduzidos a pó, transformados em insignificantes figurantes.

«É certo que a autocracia global económico-financeira tem vindo a despir a política de quaisquer princípios»

A um grupo político do «arco da governação» bastará chegar em primeiro, com qualquer percentagem, para ter uma esmagadora maioria de deputados, pelo que os votos nas outras opções vão para o lixo, não correspondem a qualquer voz activa. Em nome da democracia eficaz comete-se um gigantesco atentado ao direito de expressão democrática.

Quando se pretende alterar a lei eleitoral em Portugal, ferindo de morte a proporcionalidade, é realmente a garantia de uma distorção de vontades que se procura – em nome da estabilidade – criando mecanismos que poderão dar vitórias parlamentares a quem não teve a vitória eleitoral. Tal como aconteceu agora com Trump, antes com Bush e vigora quase sempre no Reino Unido em benefício dos conservadores. São leis talhadas à medida para reduzirem ao silêncio parlamentar muitas vozes que representam e asseguram a pluralidade social e política.

Nos Estados Unidos, ganhar por um voto ou por cinco milhões num Estado vale exactamente a mesma coisa: a totalidade dos delegados desse Estado para a escolha do presidente. Aplicada esta distorção ao universo dos Estados torna-se possível que o vencedor em número de delegados tenha muito menos votos que o derrotado.

No Reino Unido acontece mais ou menos o mesmo nas circunscrições eleitorais, traçadas em tempos onde os conservadores eram senhores do sistema político. Ganhar circunscrições por um voto ou por 50 mil é o mesmo: elege-se apenas o vencedor como deputado. Em termos finais torna-se possível uma distorção como acontece nos Estados Unidos.

Em Portugal, a aplicação do método d'Hondt assegura uma proporcionalidade representativa muito mais próxima das vontades expressas pelo corpo eleitoral. Insistir na criação de círculos para eleição uninominal, com o argumento de que os eleitos são individuais e ficam muito mais responsáveis perante os eleitores, equivalerá a abrir as portas a situações que originaram o caso de Trump e outros do mesmo quilate.

Defender uma suposta representatividade em detrimento da proporcionalidade é o caminho para a fraude democrática em nome da perpetuação «estável» no poder das mesmas forças e dos mesmos interesses.

Reflectir a sério nos mecanismos eleitorais não pode nem deve fazer-se em termos casuísticos e circunstanciais, só porque num dado momento proporcionou uma conjugação de aberrações que deu à luz um ogre como Donald Trump. Muito menos coerente é condenar em casa dos outros, e perante uma determinada contrariedade, aquilo que se defende e deseja em própria casa.

É certo que a autocracia global económico-financeira tem vindo a despir a política de quaisquer princípios. Ainda assim, que não se leve a mal colocar alguns pontos de coerência no caos de argumentação avulsa que por aí prolifera.

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